Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Português assassinado a tecladas

Na era dos insensatos, eis que surge mais um besteirol, a que os apressados de sempre já deram até nome: idioma cibernético.

Recapitulemos, pois a memória não é o forte de nosso povo. O rádio parecia dispensar a alfabetização. Tudo poderia ser ensinado exclusivamente pela fala. A década de 1920 prometia resolver o grande impasse: para que ensinar a ler e a escrever? Bastava usufruir dos benefícios do Marquês de Pombal, que nem sequer era citado, pois em país católico como o nosso, como reconhecer mérito a estadista que expulsara daqui os jesuítas, professores de nossas primeiras escolas? Mas foi ele o principal responsável por termos uma língua que cobre todo o território nacional, ensejando-nos avisar o distinto público que dia tal haverá vacina.

Depois veio a televisão. Daí, sim, era a pá de cal. As verbas para o ensino deveriam ser diminuídas ainda mais, pois era possível aprender e ensinar pela televisão. Os governos deveriam investir em televisão, como de fato o fizeram, e não em escolas!

E no auge da hegemonia da televisão, veio outro Plano Marshall. O sociólogo canadense Herbert Marshall McLuhan, falecido em 1981, aos 70 anos, celebrizou-se ao anunciar o fim do livro. Que meio usou para divulgar a sua profecia? Um livro!

Para quê?

A conquista seguinte foi a internet. A Humanidade encheu-se de navegadores nos mares da rede mundial, invento tecnológico concebido para o caso de uma guerra nuclear, então uma ameaça ainda mais aterradora do que podemos supor. Cessada a Guerra Fria, porém, virou brinquedinho e instrumento dos que podem ter acesso a uma linha telefônica e a um provedor, mais ou menos 10% da Humanidade.

O último que passou na escalada foi o telefone celular, que, como sabemos, ainda é usado também para falar, mas essa função primordial foi rebaixada: celular é para tirar fotos, gravar conversar e, principalmente, enviar torpedos. Em resumo, nunca as pessoas escreveram tanto!

Surgiu, porém, um problema. O carro estava diante dos bois. Os pequenos burgueses tinham internet e celular, mas não dominavam a língua escrita. E por isso criaram a deles. Nada espantoso. Também os habitantes das periferias não dominam a norma culta da língua e criam suas gírias, devidamente circunscritas a cada grupo de usuários. Assim, dois traficantes conversam num bar carioca e o policial ao lado não sabe de que estão falando, o que estão combinando.

Mas eis que, abruptamente, irrompeu nas legendas da rede Telecine, nas TVs a cabo Net e Sky, o Cyber Movie, em que as legendas dos filmes são escritas na mesma pobreza vocabular e desarrumação comum aos ágrafos que se beneficiaram das novas tecnologias.

Para eles, vale o que todo mundo vê na televisão: a tecnologia vai bem – alta definição de cores, som estereofônico, cenários exemplares etc – tudo muito bonito, mas para quê? Para aqueles programas? A tecnologia andou bem e rapidamente. A escrita ficou para trás, pois a escola foi abandonada.

Glossário mínimo

O que não se pode entender é que respeitados intelectuais considerem normal o que está ocorrendo: equivale a ir ao médico, este constatar disfunção em órgão essencial e diagnosticar: ah, está indo ao banheiro mais vezes do que deveria? Altere seu cronograma diário e adapte-se às novas exigências de seu organismo, que acaba de entrar na era pós-moderna, a era do vale-tudo. Agora, as visitas ao banheiro serão de hora em hora.

Pois na dita linguagem cibernética a língua portuguesa está sofrendo de diarréia e tenesmo ao mesmo tempo. Ora o jovem diz demais e confusamente, economizando em letras, mas se perdendo em prolixias, ora está preso ao reduzido universo vocabular que o vitima principalmente na escola. Como aprender um texto sofisticado, se professores e livros, por melhores que sejam, não conseguem contato com repolhos e alfaces ali matriculados?

Falemos a verdade aos jovens, eles gostam da conversa clara. Com o glossário presente nas mensagens instantâneas do ICQ, do Messenger e dos torpedos, não é possível pensar. Somente a dispensa de vírgulas e pontos já levaria ao caos a comunicação, fim principal que os usuários querem atingir. E se se restringirem à linguagem cibernética perderão via de acesso indispensável ao êxito no trabalho, no amor, na vida: a capacidade de entender e de serem entendidos.

Não bastasse o conceito equivocado do novo idioma, perguntemos: o que se economiza – a economia é a regra básica da elegância, e por motivos de beleza e saúde, os jovens vivem fazendo regime – com a substituição de ‘não é brincadeira’ por ‘Ñ eh brincadeira’? ‘De jeito nenhum’ por ‘Djeito nenhum’? ‘Não vou correr com vocês’ por ‘Ñ vou correr c/ vcs?’?

O glossário mínimo do novo idioma abrevia hora com ‘hr’. Mas por quê, se já temos ‘h’? ‘Onde’ virou ‘ond’. ‘Novidade’ virou ‘9idade’.

O preço da exclusão

O sintoma: falhamos em tudo na educação dos jovens, vitimados por tantas carências, como vemos todos os dias. Comecemos a reconhecer que sequer lhes transmitimos a língua que herdamos de nossos pais e professores num tempo em que a família e a escola tinham mais atenção.

A norma culta da língua portuguesa não tem mais quem a defenda nem em legendas de filmes na televisão! A confusão é geral. E a escola deu, por atos, palavras e omissões, grande contribuição ao atual descalabro de que o idioma cibernético é um dos mais óbvios sintomas.

Demos telefones celulares também aos pobres, que podem comprá-los bem baratinhos e em suaves prestações no crediário. Não lhes demos o direito de comprar livros com tamanhas facilidades. Para exemplificar: se os livros fossem alardeados e promovidos como são celulares e computadores, o idioma cibernético não teria lugar.

Ainda hoje é muito fácil comprar um automóvel ou um bicho de estimação. Vá o prezado leitor comprar um trator ou uma vaca leiteira, para ver como será atendido no crediário. É quase uma irresponsabilidade tratar de assunto tão complexo em tão poucas linhas. Mas o contexto é este: os sem-terra e os sem-livro habitam o mesmo Brasil. Fora da Galáxia Gutenberg, todo mundo será marginal e como tal será tratado.

Assim como a gíria não livra os meninos pobres dos seculares males sociais, o idioma cibernético não os livrará da marginalidade em que vivem, da falsa cultura em que se movem, da pobreza vocabular que os leva a esses terríveis insucessos numa simples redação de vestibular.

Nós lhes negamos o código, a chave da porta de entrada. E eles é que estão pagando o preço da exclusão. Que pelo menos nós, os letrados, não nos desculpemos com auto-indulgências que não nos ajudam a compreendê-los, apenas nos eximem de responsabilidades.