‘A má reputação da imprensa e dos jornalistas não data do século XIX’. (François Moureau, professor da Universidade de Paris IV, na apresentação do livro)
O conceito de que a imprensa é o quarto poder é brandido a toda hora sem que nos demos conta do autor original da frase, o escritor e orador irlandês Edmund Burke (1729-1797), contemporâneo do escritor francês François Voltaire (1694-1778), ainda que 35 anos mais novo do autor deste Conselhos a um jornalista, livro absolutamente providencial, trazido agora aos leitores brasileiros. A tradução é de Márcia Valéria Martinez de Aguiar; Juvenal Savian Filho fez a tradução das citações latinas.
Burke imaginou que a imprensa exerceria forte influência sobre as votações do primeiro poder (o Legislativo), sobre as ações do segundo (o Executivo) e sobre as decisões do terceiro (o Judiciário).
Nascido em Dublin, tornou-se muito conhecido dos leitores pelo best-seller que escreveu contra a Revolução Francesa, obra reacionária que obteve grande sucesso. Sua frase, entretanto, emblemática para a imprensa, foi retomada pelo historiador e crítico escocês Thomas Carlyle (1795-1881), que se encarregou de divulgá-la mundo afora.
Mas antes que a imprensa fosse transformada na Bastilha hoje temida pelos três poderes, o autor de Conselhos a um jornalista foi encarcerado na Bastille, a cidadela militar transformada em prisão estatal, que depois daria nome à Praça da Bastilha, em Paris, onde também esteve preso o Marquês de Sade.
As revoluções mudam o estado das coisas. No dia 14 de julho de 1789, o povo invadiu a Bastilha e libertou os encarcerados. No ano seguinte, a prisão foi destruída. E, a partir de 1830, o dia da tomada da Bastilha foi transformado na maior data nacional francesa.
Estudo de caso
Doravante seria conveniente que todas as redações tivessem um exemplar de Conselhos a um jornalista e que todos os cursos de Jornalismo, que ainda não o incluíram na bibliografia, o introduzissem como leitura obrigatória em algumas das disciplinas, não apenas da habilitação em Jornalismo, mas também naquelas do núcleo comum a outras habilitações de domínio conexo, como é o caso de Publicidade & Propaganda, reunidas sob a rubrica geral de Comunicação Social.
E o que diz Voltaire de tão pertinente neste livro? Acrísio Tôrres dá o tom, logo nas primeiras páginas [ver abaixo o texto de apresentação], da importância dos textos selecionados do Jornal de política e de literatura e da Gazeta literária da Europa. Lembra o apresentador que o século das luzes teve em Voltaire e em Thomas Paine (1737-1809) os pioneiros da ‘grande batalha contra a tirania espiritual que dominava o mundo (…) fundada na superstição, no fanatismo, na intolerância, na injustiça, na simonia, nos milagres, na tolice’.
Muitos dos erros cometidos ainda hoje, diariamente em nossa imprensa, poderiam ser evitados se, por exemplo, os resenhistas de livros, filmes, peças de teatro, cedês e programas de televisão prestassem atenção um conselho que aparece logo à pág. 15:
‘Nunca digas como o odioso autor das Observações [Observações sobre os escritores modernos, da autoria do abade Desfontaines e outros; não nos esqueçamos de que Voltaire foi sobretudo um anticlerical] e de tantas outras brochuras: `A peça é excelente, ou ela é ruim, ou tal ato é impertinente, tal papel é lamentável´. (…) Não é teu juízo que pedem, mas o relato de um processo que o público deve julgar’.
Quantas vezes nossos resenhistas, investidos de procuração que ninguém lhes deu, determinam que o leitor de seu comentário não leia um livro, não vá a um filme, não veja uma peça?
Para aqueles que referem ou comentam livros para alicerçar suas idéias, deixa um estudo de caso, ensinando como bom professor, que uma obra muito em voga, o Testamento político do cardeal Richelieu, provavelmente nem era da autoria do célebre conselheiro do rei.
Chutes e pontapés
E por quê? Voltaire dá 12 razões, entre as quais a de que o manuscrito, publicado 30 anos depois da morte do cardeal, jamais fora visto por herdeiros ou ministros e nunca foi apresentado por editor algum; porque o estilo discrepa de todos os outros escritos de Richelieu; porque a assinatura não confere; porque o tom é falso, pois o cardeal era um homem bem educado e aconselhava não um delfim, mas um monarca já idoso; porque no texto o cardeal apregoa a necessidade de sermos castos, quando ele teve muitas amantes.
‘Um bom jornalista deve saber ao menos inglês e italiano, pois há muitas obras de gênio nessas línguas, e o gênio quase nunca é traduzido’. Temos como essencial que um jornalista domine três línguas, mas ele acrescenta também o grego como indispensável: ‘Não é permitido a um jornalista ignorá-lo’.
Sem este conhecimento, diz ele, o jornalista terá de muitas palavras francesas apenas uma idéia confusa. E propõe um teste simples.
‘Escolhe dois jovens, dos quais um saiba essa língua [a grega] e outro não; dos quais nem um nem outro tenha a menor noção de anatomia; que ouçam dizer que um homem está com diabetes, que outro deve sofrer uma paracentese, que outro ainda tem anquilose ou uma bubonocele: aquele que sabe grego entenderá imediatamente do que se trata, porque percebe como essas palavras são compostas; o outro não entenderá absolutamente nada’.
Entre os conselhos, o de ler a Bíblia, observando como figuras de linguagem como a prosopopéia, favorita de escritores hebreus, representam recursos poderosos de narração. ‘Eles personificam a Judéia e a Babilônia e representam suas filhas desoladas exprimindo-se com as vozes patéticas da dor.’
Um jornalista (ou quem escreve para a imprensa) jamais escreverá do mesmo jeito depois de ler este livro. Se tiver também o cuidado de si, vai tratar de desasnar-se um pouco mais antes de continuar escrevendo como escreve e sobre o que escreve.
Infelizmente a imprensa brasileira está cheia de ignorantes, não apenas de outras línguas, mas da portuguesa e parecem escrever, não com as mãos, mas com os pés, tal é a quantidade de pontapés e chutes que dão na língua-mãe. E esses costumam ficar furiosos, não consigo mesmos e com os erros que cometem, mas com quem lhes aponta os tropeços.
Elemento essencial
O grande milagre, porém, é que, entre acertos e erros, nossa imprensa tem sido autora de feitos gloriosos. Não fosse o Visconde de Taunay, a trágica Retirada da Laguna teria sido apenas um relato confinado a anais militares; não fosse o engenheiro militar Euclides da Cunha cobrir para O Estado de S.Paulo a campanha de Canudos, estaríamos privados de uma monumental reportagem.
Ainda hoje é possível resgatar a cada dia textos de boa qualidade espalhados em milhares de publicações, mas ainda obra de uma minoria que demonstra ter a prática de ler antes de escrever. Sabemos que vários jornalistas não lêem sequer o jornal onde trabalham, o que, aliás, é repetido nas universidades, onde professores não lêem o que escreveram seus colegas vizinhos de porta!
O resumo dos conselhos de Voltaire é que, antes de escrever, é preciso ler, pesquisar, pensar. Podem parecer óbvios ou insólitos muitos de seus conselhos, mas uma coisa é inquestionável: é livro essencial à formação de jornalistas, dentro ou fora dos circuitos escolares, dispensados ou não do diploma universitário.
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Voltaire, o jornalista
Acrísio Tôrres (*)
[Apresentação de Conselhos a um jornalista, de François Voltaire, 169 pp., Editora Martins Fontes, São Paulo, 2006; intertítulos da redação do OI]
Teve início com Voltaire, com Thomas Paine, no século XVIII, a grande batalha contra a tirania espiritual que dominava o mundo ocidental. Tirania espiritual fundada na superstição, no fanatismo, na intolerância, na injustiça, na simonia, nos milagres, na tolice. Natural, o sucesso de um homem como Voltaire deve ser medido pelos serviços prestados a seus semelhantes como nos casos Calas, Sirven, La Barre. Tem razão Victor Cousin em defini-lo como ‘o filósofo amigo da humanidade’.
Tinha Voltaire consciência do bem que procurou fazer aos homens. ‘Fiz um pouco de bem, esta a minha melhor obra’ [verso de Voltaire em Épître à Horace]. Num instante de justo orgulho, disse: ‘Que importa que eu não tenha um cetro? Tenho uma pena!’ ‘E estava com a razão’, diz Van Loon, em Tolérance. E acrescenta: ‘Tinha não só uma pena, muitas penas. Era um inimigo nato dos gansos e usava mais penas do que duas dúzias de escritores comuns; pertencia à classe de literatos gigantes que, sozinhos e sob as circunstâncias mais adversas, podem produzir tanto quanto um sindicato inteiro de escritores modernos’.
Em carta a Voltaire, diz Frederico II: ‘Não, por certo, não é um homem só que faz o trabalho prodigioso atribuído ao senhor De Voltaire’. Para o rei da Prússia, era obra de uma academia inteira, e ‘a obra dessa academia se publica sob o nome de Voltaire’. Nessa obra, provou, diz Condorcet, ‘amar com paixão o gênero humano’. Foi incansável. No fim da vida ainda pedia um barrete, almofadas e muito café para poder terminar mais uma obra, O preço da justiça [Projeto ‘Voltaire vive’, Martins Fontes], antes da hora inevitável de descanso e de escuridão.
Chuva de brochuras
No fundo do grande escritor, fermentava, pois, uma natureza de jornalista. Tinha necessidade de permanente contato com a opinião pública, na ‘ânsia de orientá-la através da inteligência’. Em mais de dez mil cartas (10.732, na edição Garnier), abrangendo pessoas das mais diversas condições sociais, abordando os mais diferentes assuntos, Voltaire agia como um autêntico jornalista na difusão de suas idéias de ordem política, social ou literária.
Nunca, até o século XVIII e depois desse século, nunca se tinha visto tão admirável, surpreendente confusão de propaganda produzida por um só homem, Voltaire. Nunca a filosofia fora exposta com tanta clareza, com tanta vida; ou, como disse Émile Faguet, ‘um caos de idéias claras’. Escreve tão bem que não se percebe estar escrevendo filosofia. Tanto que confessa ele, de si mesmo, expressar-se com absoluta clareza: ‘Sou como os pequenos regatos, transparentes por não serem profundos’.
Escreveu Will Durant que, assim, Voltaire era muito lido: ‘Todo o mundo, mesmo o clero, adquiria os seus panfletos. Muitos deles tiveram tiragem de 300 mil exemplares vendidos’. E acrescenta Durant: ‘Nunca se havia visto nada como isso na história da literatura’. Imensa quantidade de panfletos, histórias, diálogos, cartas, diatribes, sátiras, sermões, versos, contos, fábulas, comentários e ensaios. Tudo isso assinado com seu próprio nome ou com dezenas de pseudônimos.
É em Ferney que Voltaire reina, domina. É aí que surge o imortal, eterno Voltaire. É aí, ao abrigo do seu quadrilátero de ‘covis’, que pode dizer tudo o que pensa. Disse: ‘Meu ofício é dizer o que penso’. Escreveu André Maurois, em Voltaire: ‘Durante vinte anos, de Ferney, desaba sobre a Europa uma chuva de brochuras impressas sob milhares de nomes, interditas, seqüestradas, condenadas, renegadas, mas vendidas, lidas, admiradas por todos os cérebros pensantes da época’.
Edições de bolso
‘Mas – diz André Maurois – a maior parte dessa produção se compõe de panfletos, folhetos e diálogos que fazem de Voltaire o maior jornalista que já se conheceu.’ Maurois o compara a Addison, poeta trágico, também do século XVIII, na Inglaterra, e que Voltaire põe acima de Shakespeare [ver Cartas filosóficas, XVIII. Martins Fontes]. Era Addison um dos redatores do Spectator, precursor do Times. ‘Pode-se imaginar, diz Maurois, o poder sobre a opinião de um jornalista de gênio que pôde, durante mais de vinte anos, perturbar, agitar e dominar a França’.
Na introdução ao Tratado sobre a tolerância [Projeto ‘Voltaire vive’. Martins Fontes], de Voltaire, René Pomeau distingue a Epístola de tolerância, de Locke, do Tratado. Locke redigiu a Epístola em latim e, com toda a evidência, ‘dirige-se a um público de doutos’. O Tratado, de Voltaire, ao contrário, ‘visa ao grande público’. Escreve Pomeau: ‘Faz parte de uma estratégia voltairiana que se esforça por mobilizar a opinião pública. Daí a divisão da obra em capítulos curtos, entremeados de ditos espirituosos e que apelam, no final, para a emoção’. É o jornalista; é, diz Benda, ‘a vocação de jornalista’.
Todas essas publicações em edições de bolso, pocket. Escreveu Voltaire: ‘Livros grandes estão fora de moda’. Deste modo, semana após semana, mês após mês, incansavelmente, Voltaire surpreendia o mundo com a fertilidade de seu pensamento. Tamanha, magnífica energia justificava nele o que dissera de D’Alembert: ‘Senhor o multiforme’, e levou Frederico II a escrever: ‘Há em Ferney filósofos que traduzem Newton, (…) há Corneilles, Catulos, Tucídides, Cíceros, e a obra dessa academia se publica sob o nome de Voltaire’. Há aí, diz Brunetière, em verdade, ‘vinte Voltaires’.
(*) Escritor e professor da UnB, coordenador do Projeto Voltaire Vive
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Escritor, doutor em Letras pela USP e professor da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro), onde dirige o Curso de Comunicação Social