A reabertura do Diário de Notícias na novela Senhora do Destino não é apenas o ponto alto da homenagem que o escritor Aguinaldo Silva presta a três mulheres que assumiram o comando de importantes jornais cariocas no período da ditadura. É também uma mensagem de fé no ideal de liberdade que sustenta o sonho humano desde a Antiguidade. A volta do matutino silenciado pela repressão (na vida real, o jornal mortalmente atingido pelo golpe militar foi o Correio da Manhã) é uma reverência à memória dos que tombaram na defesa desse ideal.
Em 1953, com a morte do jornalista Orlando Dantas, proprietário do Diário de Notícias, assume o comando da empresa sua mulher, Ondina Portela Ribeiro Dantas. Morou cinco anos na França, era musicista e sob o pseudônimo de D’Or assinava uma coluna de música no jornal. Ondina tinha idéias socialistas e dedicava-se à assistência social.
No ano seguinte, o Jornal do Brasil perde seu comandante, o empresário Ernesto Pereira Carneiro. Católico, benfeitor de obras de caridade, ganhou um título papalino de conde. Não tinha filhos, e coube à viúva e única herdeira, Maurina Dunschee de Abranches – a condessa Pereira Carneiro, como era mais conhecida – assumir a propriedade do jornal.
Repressão e arbitrariedade
Nove anos depois, em 1963, morre em Estocolmo o jornalista Paulo Bittencourt, dono do Correio da Manhã. Em testamento, ele deixa o jornal para Niomar Moniz Sodré, sua mulher de segundas núpcias. Niomar viveu muito tempo no exterior com Paulo Bittencourt. Colecionadora de arte e amiga de artistas, deve-se a ela a criação do Museu de Arte Moderna do Rio.
Chamam a atenção as circunstâncias em que se deram a ascensão dessas mulheres: a propriedade dos jornais obtida por herança, o fato de, ainda distante do movimento feminista, ocuparem terreno de exclusivo predomínio masculino, a mesma origem nordestina (Niomar e Ondina eram da Bahia, e Maurina do Maranhão), e, finalmente, nenhuma tinha experiência empresarial.
Os pontos convergentes de sua história, no entanto, cessam aí. Consolidado o golpe de 64, a ditadura tira a máscara e sua primeira providência foi calar a imprensa. Começa um longo período de repressão e arbitrariedade, sucedem-se as prisões e os quartéis ficam abarrotados de presos políticos. Instaura-se a tortura, a resistência age na clandestinidade.
Insubmissa, rebelde
A essa altura, Ondina Dantas já não estava mais em cena. O despreparo convenceu-a a passar o leme às mãos do filho mais velho, João Ribeiro Dantas. Inexperiente também, derrotado num frustrado apoio a Jânio Quadros, de quem esperava um cargo, viu o Diário de Notícias perder espaço e anunciantes, até encerrar suas atividades em 1970.
Mais pragmática, a condessa Pereira Carneiro manteve a tradição oposicionista do Jornal do Brasil e pouco interferiria no processo da Redação. Delegou a direção ao genro, casado com a filha de seu primeiro casamento, e conduziria a travessia no olho da tormenta, até sua morte em 1984. Teve o mérito de apoiar firmemente uma reforma gráfica e editorial que projetou o jornal na vanguarda da renovação da imprensa na época.
Depois de precipitar a renúncia de João Goulart com os editoriais ‘Basta’ e ‘Fora’ no Correio da Manhã de 31 de março e 1º de abril de 1964, Niomar opôs-se frontalmente aos militares. Com isso, permaneceu o tempo todo na linha de tiro da repressão. Por contrariar determinações da censura, o jornal teve a circulação suspensa inúmeras vezes e chegou a ter 12 censores ao mesmo tempo revezando-se na leitura de todos os textos do dia.
Temperamental, insubmissa, rebelde, com um gosto pelo confronto e a contestação – assim era Niomar Moniz Sodré. Sua presença era um incômodo. Perseguida, era submetida a constrangimentos e ameaças. Presa no Regimento Caetano Faria na edição do AI-5, recusou-se a usar o uniforme dos presos comuns. Ameaçou ficar nua e criou um impasse, só resolvido com a intervenção do comando. Evidentemente, não vestiu o uniforme.
Calado e irreconhecível
Sob a pressão dos militares, os anunciantes começaram a abandonar o jornal. Agravavam-se as dificuldades financeiras. Diante desse cerco implacável, era iminente o desmoronamento econômico, para o qual contribuiria também, entre outras razões, um quinhão do temperamentalismo de Niomar. Ante a brutalidade da ditadura, o Correio da Manhã caiu sem se entregar. Niomar ganhou grandeza política, mas pagou sua aventura com os destroços de um patrimônio que nunca mais será recuperado.
A homenagem de Senhora do destino a essas três mulheres é centrada na personagem Josefa Duarte, cujo perfil, sem cunho biográfico, é mais próximo de Niomar Moniz Sodré vivendo os passos finais de sua tortuosa caminhada. A reabertura do Diário de Notícias (criptônimo do Correio da Manhã) soa como cantata bachiana celebrando a ressurreição. Seu eco distante injeta um sopro na memória daqueles que lá estiveram e até hoje sonham com o retorno do jornal que um dia foi um dos orgulhos da imprensa brasileira.
O Correio da Manhã, que nasceu brigando contra o aumento dos bilhetes de bonde da Cia. São Cristóvão no ano inaugural do século 20, circulou pela última vez, calado e irreconhecível, em julho de 1974. Sem nome no expediente, sem despedida. Tinha minguadas oito páginas.
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Jornalista