‘Todo mundo fugiu’, me diz por telefone o jornalista Helio Barros, do jornal de língua portuguesa Semanário. Seus olhos seguem na janela a fumaça do mercado se queimando. Díli está praticamente deserta: a capital de Timor Leste fora abandonada por dezenas de milhares de habitantes. Rumores davam conta de que a cidade estaria sujeita a um ataque, semanas antes de o país completar quatro anos de independência oficial no dia 20 de maio.
‘Os jornalistas e os gráficos fugiram, minha família foi para as montanhas, todo mundo fugiu’, o repórter me conta.
No Brasil, os jornais praticamente ignoraram. Mas, em 28 de abril, manifestações de apoio a ex-militares haviam deixado pelo menos cinco mortos e 80 feridos em Díli. Cerca de duas mil pessoas saíram às ruas da capital naquela data para apoiar 591 soldados afastados do exército – um terço do contingente das Forças de Defesa de Timor Leste. Os militares reclamavam de maus-tratos e discriminação no critério de promoções das forças armadas.
Aos soldados afastados juntaram-se grupos de jovens manifestantes, que entraram em confronto com a polícia, atacaram edifícios, queimaram 45 casas e deixaram 116 parcialmente destruídas. Traumatizada por um passado de violência durante a ocupação indonésia [ver remissões abaixo], a população timorense não viu alternativa senão fugir. Fugiram da forma que puderam. Uns caminharam, olhos redondos amedrontados, suas coisinhas amarradas no corpo ou em trouxas na cabeça rumo às montanhas, no interior do país. Outros foram em caminhões com famílias inteiras levando consigo seus poucos pertences. Carros deixavam a cidade com passageiros espremidos feito sardinhas em lata.
Até o prédio do governo foi evacuado. Alguns relataram o recebimento de mensagens-texto nos telefones celulares que anunciavam, sem remetente, a ocorrência de um ataque. Mil pessoas buscaram asilo no edifício da ONU, o ‘Obrigado Barracks’. O aeroporto ficou vazio, a não ser por alguns estrangeiros que partiam para a Indonésia.
As comunicações também falharam. O aumento expressivo no número de ligações – eram cerca de 10 mil chamadas a cada 15 minutos – inviabilizou o sistema de telefonia celular da Timor Telecom, comprometendo o principal meio de comunicação da cidade. Agências internacionais usavam o rádio para atualizar informações de segurança e proteger suas equipes.
Genocídio ignorado
Mas o rádio não atingia muitas comunidades do interior, as ondas barradas pela geografia montanhosa. O boca-a-boca tornou-se assim o principal meio de comunicação entre os distritos do país. Altos funcionários governamentais passaram a fazer uso de mensageiros para trocar informações.
Mesmo depois que a cidade se acalmou, o medo era ainda um sentimento palpável na população timorense, afirmou o ministro dos Negócios Estrangeiros e Cooperação de Timor Leste, o prêmio Nobel da Paz José Ramos-Horta, em discurso no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Prevista para terminar em 20 de maio, a atual missão da ONU no país teve o mandato estendido por pelo menos mais um mês devido aos conflitos.
Sua presença é tida como fundamental durante as celebrações da independência, assim como nas eleições presidenciais e legislativas programadas para maio de 2007. A presença da ONU também contribuirá para um clima de segurança durante o esperado Congresso Nacional da Fretilin, o partido do presidente Xanana Gusmão. Lideranças da Fretilin se reúnem de 17 a 19 de maio para eleger o novo secretário-geral do partido, o maior do país, e que tem suas origens no movimento de resistência contra a Indonésia.
Trauma e coragem
O clima de pânico em Timor Leste reflete um trauma da população local, vítima de longa e trágica história de dominação estrangeira. O país foi colonizado pelos portugueses no século 16, enfrentou breve ocupação japonesa (1942-1945), passou novamente para o domínio português e tentava declarar a independência quando foi impedido por uma violenta ocupação indonésia (1975-1999).
Esta foi praticamente ignorada pela mídia ocidental, embora tenha resultado na morte de cerca de 200 mil pessoas, um terço da população timorense na época. A invasão indonésia contou com o apoio calado de países como Inglaterra, Austrália, Canadá e Estados Unidos, que tinham no general Suharto um importante aliado na luta anticomunista. Os timorenses resistiram de forma admirável. Em 30 de agosto de 1999, votaram pela independência em referendo supervisionado pela ONU. Mas a Indonésia não deixou por menos: desocupando o país, fez questão de destruí-lo. Quase duas mil pessoas foram assassinadas em poucos dias por milícias antiindependência, que também queimaram 90% da infra-estrutura de Timor Leste. Foi assim que terminou o período mais triste da história recente do país.
Ajuda financeira
Tropas de paz internacionais lideradas pela Austrália foram enviadas a Timor Leste em 20 de setembro de 1999, e forças brasileiras se uniram a elas. O território passou a ser administrado pela ONU em missão chefiada pelo diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto mais tarde em atentado no Iraque. Timor Leste foi reconhecido internacionalmente como Estado independente em 20 de maio de 2002, tornando-se o país mais jovem do mundo. E celebra quatro anos em alguns dias.
Para o Brasil, é país-irmão. Faz parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – após a independência, o português tornou-se idioma oficial de Timor Leste juntamente com o tetum, principal língua local. Como a história dá voltas, a língua do colonizador português foi considerada uma forma de resistência pela guerrilha timorense, já que seu uso era proibido durante a ocupação indonésia (na verdade, poucos timorenses sabem falar português hoje em dia).
Timor Leste é a nação que recebeu maior ajuda financeira do Brasil nos últimos cinco anos. A Agência Brasileira de Cooperação investiu US$ 5 milhões no país durante o período, em áreas como educação, agricultura, formação profissional e desenvolvimento institucional. Essas trocas geraram novos laços: cerca de 250 brasileiros residem no país atualmente. Assim como o Brasil, Timor Leste é produtor de café e possui ricas reservas de petróleo (a Petrobras vem estudando investimentos ali).
Com carinho, do Brasil
Mas, apesar da pouca idade, Timor Leste carrega o triste peso de ser o país mais pobre da Ásia. Quarenta por cento da população de um milhão de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Metade dos timorenses não tem acesso a água potável e as oportunidades de trabalho são reduzidas. Apesar da ajuda internacional, problemas institucionais são ainda um grande desafio, como no caso do exército e da polícia. A falta de solução pode gerar conflitos como os de 28 de abril.
Dias depois dos incidentes, as comunicações ainda falham. Esforço-me para escutar Helio Barros lá do outro lado do mundo. Ruídos no telefone arranham o ouvido como estação de rádio sem sintonia. ‘Não tem ninguém aqui’, insiste o repórter timorense – ele aponta, eu imagino, para o vazio da redação do Semanário. E volta os olhos para a janela, a fumaça do mercado se queimando.
‘Por que você ficou?’, eu lhe pergunto. ‘Porque quando as coisas se acalmarem e o jornal voltar a sair eu vou escrever sobre o que aconteceu aqui’, ele me explica. Então escrevo a ele, com carinho, do Brasil. Para que a gente não se esqueça de lembrar Timor Leste.
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Jornalista