Todos sabemos, por experiência própria ou de terceiros, que a humildade não costuma ser o predicado mais forte dos jornalistas. Generalizações são quase sempre perigosas, mas corro o risco, sendo assim também eu pouco ou nada humilde. Ocorre que a vaidade (que, como pregou Vieira aos peixes, ‘entre os vícios é o pescador mais astuto’) integra e por vezes parece definir as personalidades de muitos dos que têm sua parte no latifúndio do espaço público. Sejam jornalistas (bóias-frias, parceleiros ou posseiros) ou presidentes (sociólogos ou operários).
Uns estão de passagem, são notícia hoje, talvez não amanhã. Outros… bem, nós outros queremos permanecer, ou pelo menos manter o emprego, a reputação e o espírito crítico, se possível tudo ao mesmo tempo. E alguns ainda querem sobretudo aparecer, e fazem da profissão um meio de projeção, um trampolim, uma via para o alpinismo social. Mas esse é outro esporte, mais radical.
Há duas semanas, sinto falta da seção ‘Autocrítica’ na página 2 de O Globo. Desde 2003, o jornalista Luiz Garcia observava os desvios gramaticais e estilísticos na edição do dia anterior, comentava-os e propunha possíveis correções. Muito útil e instrutivo, mas acabou. (Por quê?) Desde o dia 2 o espaço está ocupado por textos que se propõem a deixar o leitor ‘Por dentro do Globo‘. É uma espécie de making of do jornal, que expõe algo do lado humano dos profissionais e das rotinas da redação. Big Brother e Vídeo Show são paralelos impróprios mas inevitáveis.
Pois O Globo trocou a autocrítica pela auto-referência. Nada mais global. Naqueles mesmos dias, fórmula semelhante estreava no Globo Repórter, e depois no Fantástico. Na série Profissão Repórter, jornalistas iniciantes aparecem em ação nas próprias reportagens que conduzem. Em tempo: em 10/5 O Globo tornou a publicar a ‘Autocrítica’, sem a chancela de Luiz Garcia.
O assunto em pauta disputa a atenção do espectador com registros do comportamento do repórter, como num reality show. Assim, vemos o profissional estreante esforçar-se por dominar o meio televisão, sua linguagem e suas exigências. Inclusive a voz colocada, o cabelo arrumado, as caras e bocas esperadas.
Excepcionalidade
Os bastidores do trabalho do qual a aparição do repórter na tela é a ponta do iceberg – pauta, pesquisa, produção, e a edição –, aparentemente, não rendem imagens ou narrativas atraentes. O interesse recai sobre a figura do foca e seu desempenho frente à câmera. Na matéria, o que é dito conta menos do que o como é dito, e o como abrange o personagem em que o repórter se transforma.
É da natureza do meio a espetacularização, dizem certos críticos. Outros acham saudável que as entranhas do jornal ou do telejornalismo se exponham ‘transparentemente’ ao público. Mesmo quando se trata de apenas mais uma versão, em lugar de fatos que realmente importam.
Houve um tempo, não tão distante, em que a maioria dos textos de jornal não era assinada, e repórter em quadro era uma excepcionalidade que pedia justificativa. Cada vez mais, é tudo parte do mesmo show.
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Jornalista, Rio de Janeiro