‘Imaginem um empresário pagar um profissional para criticar o próprio produto que a empresa dele fabrica. Este homem chamava-se Demócrito Rocha Dummar. O cargo de ombudsman (ou ouvidor, para os mais puristas da língua portuguesa) chegou a ser modismo no início dos anos 90 na imprensa brasileira. Hoje, só O Povo e Folha de S. Paulo mantêm esta função, ingrata e desgastante, mas também necessária e desafiadora.
Os outros jornais que o implantaram desistiram no começo ou no meio do caminho. Não agüentaram o rojão. Demócrito não só criou o cargo no O Povo, mas o fortaleceu, tornando-o irreversível e prestigiando todos os jornalistas que passaram por essa posição.
Toda a tenacidade, no entanto, tinha um objetivo: a preocupação com a qualidade do jornal que, em Demócrito, um empresário de comunicação de novo tipo, chegava a ser uma obsessão. ‘Temos de ser um misto de sonhadores e de empresários racionais. Por isso, a atividade de uma empresa jornalística é tão apaixonante, como em nenhuma outra empresa’, dizia ele.
São poucos, no Brasil, os dirigentes de veículos de comunicação iguais a Demócrito. Com o seu desaparecimento, a imprensa cearense – e brasileira – perde um referencial de modernidade, no sentido mais libertário e humanista do termo.
Era um entusiasta da liberdade e um homem fascinado pelas inovações tecnológicas. A gente se entusiasmava ao conversar com ele. Estava sempre atento às inovações e gostava de desafios. Dou meu testemunho pessoal: em quase quatro meses no cargo, nunca o presidente do O Povo fez qualquer interferência no meu trabalho. Deixava-me – como também deixava os outros jornalistas que passaram por este cargo – bem à vontade para fazer a crítica do jornal e encaminhar as reclamações dos leitores à Redação, por mais contundentes que elas fossem.
Em duas ocasiões, tive, pessoalmente, oportunidade de verificar o que estou afirmando: a primeira quando critiquei, neste espaço, em termos enérgicos, um editorial do jornal considerado por mim, e por alguns leitores, excessivamente elogioso a uma determinada instituição e, a segunda, quando publiquei nesta coluna a crítica de um leitor a um acidente ocorrido no Verão Vida & Arte, evento promovido pelo O Povo. Nessas duas ocasiões, ele só se manifestou porque foi procurado por este ombudsman que o ouviu sobre os dois episódios. Mas, em nenhum momento, ele interferiu no meu texto nem insinuou uma possível orientação sobre como eu deveria tratar esses dois temas. Ao contrário, deixou-me inteiramente à vontade para abordar esses assuntos da maneira que eu achasse mais conveniente.
Legado
Demócrito Dummar nunca se envolveu em política partidária, embora tenha sido neto de Demócrito Rocha, constituinte de 1934 e sobrinho por afinidade de Paulo Sarasate (casado com sua tia, Albanisa Sarasate), deputado federal, governador e senador. Convites não lhe faltaram, mas ele preferia fazer política de uma maneira mais ampla: a defesa em favor do desenvolvimento do Ceará, da democracia, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. Eram essas as bandeiras que ele fazia questão que o jornal levantasse em editoriais e em todas as campanhas promovidas pelo O Povo.
Um homem ousado com um olhar sempre voltado para o futuro. É o legado que deixa Demócrito Rocha Dummar. O Ceará e o Brasil perdem um grande homem, um espírito superior. ‘Apenas a matéria vida era tão fina,’ como diz Caetano Veloso na canção Cajuína.
Fortaleza
O 282º aniversário de Fortaleza ainda é tema de debates. O leitor, arquiteto e urbanista Nelson Serra e Neves assim analisou o caderno especial publicado pelo O Povo:
‘Faltou, a nosso ver, o necessário aprofundamento das questões urbanas mais prementes da capital, como a violência de Fortaleza, o desemprego, a proliferação das habitações subnormais em áreas de risco, a degradação do meio ambiente, a depredação e destruição da cultura e do patrimônio histórico.
‘Muitos destes problemas’, prossegue Serra e Neves, ‘como sabemos, são decorrentes da migração rural-urbana, tendo como razão as condições precárias de sobrevivência em outros municípios do Estado pela escassez de emprego, equipamentos de saúde, educação e serviços. A Capital exerce seu poder de atração, concentrando o poder político e a maioria dos investimentos públicos, tendo, portanto uma qualidade de vida superior aos demais municípios, apesar de todos os problemas decorrentes de seu crescimento desordenado.’
‘Esta problemática’, acrescenta o arquiteto e urbanista, ‘como extrapola os limites municipais, exige pensar a gestão e o planejamento de Fortaleza, no contexto regional e metropolitano, de forma a minimizar as desigualdades marcantes entre a capital e os demais municípios’.
Finaliza: ‘Desta forma, seria importante este prestigioso jornal promover, em matérias futuras, debates e entrevistas que servissem de subsídios para a discussão com a sociedade sobre as condições institucionais e as políticas de interiorização do desenvolvimento visando as cidades interioranas e demais municípios da RMF capazes de viabilizar Fortaleza como ‘a cidade dos nossos desejos’, a cidade que todos nós queremos ter’.’