Não apenas a mídia e o governo se sentiram inseguros ante atos e discursos protagonizados pela mais recente aparição política na América do Sul, o presidente da Bolívia, Evo Morales. Também ao quadro bem pode somar-se boa parte da população, pouco habituada (e, quem sabe, jamais) à vivência de conflitos nos quais o Brasil estivesse em foco. Não há, na história da República, página a registrar tal fato. A memória acerca de situações de tensão reporta ao já distante período imperial. Assim é que, à entrada em cena do conflito, governo, mídia e setores da população se viram em completa atmosfera de indefinição, no tocante a que papel o país deveria adotar. Em função da quase total inexperiência histórica, não foram poucos os atropelos gerados.
De imediato, aflorou, em alguns principais jornais do país, a perigosa retórica patriótica. Felizmente, a sensatez, em tempo hábil, prevaleceu em nome de uma postura mais madura. No âmbito político, afora declarações aqui e ali de pouca têmpera, a questão se foi encaminhando para o ajuste devido. O tema passou a ser tratado menos como uma questão de governo e mais como um problema de empresa/Estado.
Tentativas houve, partindo de vários setores da sociedade, em favor de uma irresponsável elevação de temperatura. Estas, originadas das mais diversificadas motivações (econômicas, políticas e emocionais), não encontrando apoio maior, seguiram o rumo do estancamento. O que, portanto, até aqui, se pode extrair como possível ensinamento a respeito da singular situação? Essa é a questão.
Excitação e pasmaceira
Discursos dos mais deformados perfis tiveram lugar. Os reacionários, de imediato, apareceram para satanizar a esquerda, esquecendo-se de que as guerras promovidas no mundo sempre foram (e são) construções das tradicionais forças de direita. É a direita, pelo seu imaginário conservador e por sua imaginação voltada para a apropriação das riquezas, que, na engenharia da guerra, amplia o poder de dominação.
É bom que se compreenda que o governo boliviano, a despeito do excesso praticado ao ocupar a empresa brasileira com tropas do Exército, não confrontou exatamente o Brasil. Apenas adotou medidas autoprotecionistas, decorrentes do compromisso de campanha eleitoral e da defesa de uma população absolutamente carente e quase flagelada. Igualmente, como é sabido, houve o tempero cinematográfico do presidente boliviano, em função de se avizinharem eleições parlamentares que, voltadas para a Assembléia Constituinte, significam um ponto estratégico para o futuro do próprio governo. Enfim, jogo de cena que, num certo grau, projetou internacionalmente a figura de Morales.
Vale lembrar que o presidente brasileiro, pouco após a posse, também fez das suas bravatas com igual intuito. Vamos, pois, assentar a poeira e esfriar o caldeirão.
A média da população brasileira talvez não entenda bem os procedimentos de Morales por não ter vivido jamais, ao longo de sua história, a experiência de um governante, efetivamente comprometido com a legião de pobres, assumir sua condição de liderança, colocando-a a serviço da causa maior, sem que, para tanto, tivesse de recorrer a armas. Com os recursos políticos e jurídicos de que dispõe, Morales simplesmente procura implementar um plano de governo capaz de atender minimamente às demandas internas nas quais se encontram amplos contingentes populacionais destituídos de mínimas condições de sobrevivência.
A economia boliviana é rudimentar, além de ser o único país na América do Sul sem saída para o mar, o que lhe dificulta enormemente a já acanhada política de exportação. A mídia brasileira, embora, num segundo momento, mais centrada numa postura de equilíbrio, por outro lado não soube contextualizar e interpretar as razões mais profundas em que se apóia a lógica política de Morales. Igualmente, a mídia preferiu ignorar outro modo de ler a intervenção de Hugo Chávez. É prudente, portanto, que se amplie o olhar para um momento histórico, capaz de recriar alguma excitação, aspecto sempre preferível à pasmaceira tropical. É aí que parece existir uma mídia temerosa em balizar as reais ocorrências.
Figurino traduzido
Inúmeras matérias tentaram lançar no ar clima de intriga, ao declararem como indevida a presença de Chávez na contenda de interesses entre os governos brasileiro e boliviano. A exemplo da trama concebida por Shakespeare na tragédia Otelo, a mídia brasileira optou por representar personagem de Iago, disposto a despertar a ira do rei mouro contra a amada Desdêmona.
Felizmente, ninguém mordeu a isca. O rei mouro não precisou matar a amada. Chávez procurou capitalizar politicamente o conflito. Estará errado? Lula viveu os momentos nos quais se tornara a referência maior na América Latina. Pelo que fez e pelo que deixou de fazer, sua luminosidade foi baixando enquanto a de outro acendia. Agora, com a chegada de Morales, cuja sintonia com a política de Chávez parece inquestionável, o presidente venezuelano, receoso de possível fragilização de Morales, procurou fortalecê-lo. Cumpriu, pois, seu papel na estratégia que adotou. Em situações dessa ordem é que o político mostra sua competência quanto a como posicionar-se.
Na política, a astúcia não perdoa a ingenuidade. De outro lado, reconheça-se que o governo brasileiro, passado o susto inicial, soube encontrar o equilíbrio e reconhecer que a Petrobras, ao conseguir um contrato extremamente vantajoso, tem agora de o revisar, reajustando-o a patamares justos.
Quantos governantes brasileiros perderam o momento histórico de, sensibilizando a população, assumir atitudes mais enérgicas contra abusos internos e externos de toda a ordem? São escolhas cujo perfil define rumos de uma nação. Na arena dos interesses, contratos existem tanto para serem mantidos quanto para sofrerem alterações. Se a democracia é o melhor dos regimes para consolidar contratos, também é a democracia o regime ideal para renegociações.
É isto que está ocorrendo na relação conflitiva entre Brasil e Bolívia. É necessário ter-se clareza quanto ao fato do que representa, à frente de um governo, um líder político majoritariamente eleito por pobres. Chávez e Morales traduzem esse figurino. Que lição, portanto, eles ensinam?
A experiência da aprendizagem
Em síntese, antes que surja alguma voz estranha para equivocadamente mencionar o retorno do populismo na América Latina, o que é uma leitura absolutamente errada, vale assinalar que Chávez e Morales, com seus desempenhos, mostram que, para governar, se oferecem dois caminhos:
1.
A economia dita os atos políticos;2.
A lógica política determina procedimentos econômicos.Chávez e Morales se situam na primeira. O surgimento de tensões em áreas da América do Sul decorre fundamentalmente do fato exposto. Quanto mais surgirem governantes com o perfil dos citados, mais questões de conflitos irão à mesa de negociações. Assim é regulado o jogo democrático.
O que, talvez, esteja gerando incômodos é o reconhecimento de que, na América do Sul, parece ter início o processo de perda da inocência. Como tal, a perda assusta alguns e desestabiliza outros. Os assustados imediatamente recorrem a retóricas contra o ‘populismo’, discursos a favor do ‘patriotismo’ e conclamações direcionadas ao ‘ufanismo’.
O Brasil precisa urgentemente compreender que não se age como grande contra quem nada tem para agir submisso com quem tudo tem. Ainda há tempo para se aprender, mesmo que tardiamente.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, Rio de Janeiro)