Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A guerrilha urbana vista de longe

Homens livres governados por presidiários, este foi o contexto assustador que irrompeu na sexta-feira (12/5), em São Paulo. Por mais que as autoridades tentassem disfarçar, quem estava em posição de força para as negociações, que tinham o fim de suspender a guerrilha urbana iniciada no fim de semana, não eram as forças de segurança do estado, eram os presidiários.

O país está parecendo ao contrário: não foram os bandidos que procuraram a polícia para entendimentos; foi a polícia quem os procurou. E eles disseram que infelizmente não seria mais possível suspender as chacinas de policiais e de seus familiares, pois a ordem já tinha sido dada. ‘Quanto piores forem as condições dos presos nos presídios, pior será a condição dos cidadãos nas ruas (…) Isso é muito difícil de ser entendido, quase impossível’, como bem observou o jornalista Paulo Sant’Anna (Zero Hora, 15/5/06).

Aborrecido com veículos que insistiam em repetir tudo de novo – o já noticiado, já dito, já mostrado, já escrito, em textos enfadonhos, pois ficou moda todos os jornais se parecerem, por mais candentes que sejam os temas – saí das leituras do fim de semana com a impressão de que um dos melhores textos sobre a megarrebelião que assolara o país trazia a assinatura de um cronista do Brasil meridional.

É Paulo Sant’Anna, nascido Francisco Paulo Sant’Anna, em Porto Alegre, aos 15 de junho de 1939. Exemplar daqueles a quem o governo chama de ‘estudantes que trabalham’, quando na verdade são ‘trabalhadores que estudam’, pois seu principal ofício quando universitários não é estudar, é trabalhar para pagar a faculdade, Paulo Sant’Anna foi até vendedor de feira antes de formar-se em Direito.

Não sei se exerce a advocacia, se já a exerceu, se foi promotor ou juiz, mas inspetor e delegado de polícia ele foi, tendo desempenhado tais funções em Arroio dos Ratos, Tapes, São Jerônimo e Porto Alegre.

Dístico positivista

Quando aborda as questões da criminalidade, tem, pois, café no bule, aquele ‘saber de experiências feito’, de que fala Camões, aliado à agudeza de sua conhecida inteligência, lastreada por leituras que, sendo andaimes, não aparecem no texto, pois ele não as ostenta.

Diz ele em Zero Hora, na citada coluna:

‘Quando me dei conta da extensão da megarrebelião dos presos de São Paulo, que a estenderam para as ruas num banho de sangue incomparável, lembrei-me de um dístico que lia todos os dias no frontispício de um pórtico que havia e talvez ainda haja num templo positivista da Avenida João Pessoa, na calçada oposta à do antigo Cinema Avenida: ‘Os vivos serão sempre e cada vez mais governados pelos mortos’’.

E parodiando a lembrança, acrescenta:

‘Mas o dístico positivista do templo da nossa Avenida João Pessoa (…) bem que poderia ser substituído por este: ‘Os homens livres serão sempre e cada vez mais dominados pelos presidiários’’.

Graça alcançada

Paulo Sant’Anna foi para este escritor, durante muito tempo, apenas o feroz torcedor do Grêmio na Sala de Redação da Rádio Gaúcha. Passei toda a década de 1970 no Rio Grande do Sul, entre Porto Alegre e Ijuí, era fácil ler Paulo Sant’Anna todos os dias e tenho orgulho de ter sido colega de turma, no mestrado da UFRGS, de intelectuais como Lya Luft, Antônio Hohlfeldt (atual vice-governador do RS), Sergius Gonzaga, Lygia Aberbuck e Flávio Loureiro Chaves, além da companhia, à beira de copos e pratos, de Joaquim Felizardo, Jefferson Barros, Roque Jacoby (hoje, secretário de estado da Cultura), Voltaire Schilling etc.

Mas veio o destino, ele passou a defender o Grêmio em colunas da Zero Hora (em 1971), e deu-se ali naquele espaço a transformação. E fui morar em São Paulo, para trabalhar na Universidade Federal de São Carlos e assim poder fazer o doutorado em Letras na USP, na capital paulista.

Na década seguinte, Paulo Sant’Anna abordava qualquer assunto em suas crônicas, não mais o futebol apenas, o que este torcedor do Internacional considera uma graça alcançada do Menino Jesus de Praga, pois tão bem escrevia ele sobre o seu querido Grêmio, e tão fã eu era de seus textos, sem que ele nunca tivesse sabido disto, que, não fosse o direito ao contraditório, de Luis Fernando Verissimo, fanático defensor do Internacional, talvez eu fraquejasse nos amores pelo ‘perigo vermelho’, principalmente depois do tricampeonato nacional, quando cessou o brilho de estrelas como Paulo César Carpegiani, Falcão e Valdomiro (este dois, catarinenses como eu, aceitos como gaúchos honorários naquele terrum) e o Internacional só não perdeu para o Íbis, ó dor!

Vício e virtude

Estas lembranças me vieram à mente quando procurava bons textos na imprensa sobre o tema da megarrebelião de presidiários que resultou, até domingo, em mais de quinhentas notícias no mundo! Ninguém perde por procurar, ainda mais agora que a banda larga da Internet favorece a busca.

Quem quiser o melhor texto sobre os terríveis eventos da guerrilha urbana patrocinada pelos presidiários no fim de semana, busque a crônica de Paulo Sant’Anna na edição de Zero Hora de segunda-feira (15/5). É exemplo de texto bem escrito, com clareza, concisão, coesão textual e objetividade, qualidades que um gourmet da língua portuguesa aprecia degustar.

Para terminar este artigo que já se alonga, lembro Paulo Sant’Anna, então adepto ativo do vício de fumar (sabemos que o vício exige iniciativa e persistência, não é como a virtude, que consiste no mais das vezes em deixar de fazer alguma coisa), prestando a última homenagem a Mário Quintana, também fumante pertinaz. Vendo-se de repente sem os devidos subsídios do vício, surrupia um dos cigarros que admiradores deixaram ao lado do caixão do poeta, no velório.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, diretor do Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro