Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Plínio Bortolotti

‘Dois acontecimentos brutais esta semana evidenciaram, mais uma vez, o pior lado da Polícia Militar do Ceará. Na quinta-feira os jornais noticiaram uma desastrada operação policial que terminou com três pessoas inocentes feridas, uma delas gravemente, pois ficará paraplégica, segundo os médicos. Perseguindo os ladrões de um caixa eletrônico, policiais militares metralharam, ‘por engano’, o carro em que estavam dois casais, um deles de turistas espanhóis.

Na edição de sexta-feira, o noticiário informava sobre outra tragédia: a fuzilaria de um bando armado contra dois suspeitos – um deles morreu e outro foi parar no hospital, gravemente ferido, com nove balas no corpo. Acusados de terem assaltado, dias antes, uma dupla de policiais, os suspeitos foram presos pelo ‘serviço reservado’ da PM (cujos integrantes não usam fardas) e estavam sendo conduzidos no porta-malas de um carro ‘descaracterizado’, isto é, sem nada que indicasse que era um veículo policial. Segundo o relato da PM, os suspeitos estavam sendo levados a um hospital, pois um deles levara um tiro no pé, quando teriam sido atacados por 10 homens armados, que teriam rendido os policiais, dando início ao massacre.

Abstraindo-se o fato de as duas histórias ainda precisarem de mais esclarecimento, por qual motivo abordo o assunto na coluna, se os jornais vêm reproduzindo as informações divulgadas pela Polícia e também publicando o que diz o ‘outro lado’?

Tenho debatido insistentemente com a Redação a necessidade de os repórteres terem atitude mais questionadora frente aos fatos que cobrem. Em uma parcela das notícias o que vejo é a reprodução acrítica de depoimento de autoridades; a publicação de versões pouco verificadas e a falta de pesquisa para contextualizar os fatos. O saudável exercício da dúvida; o confronto daquilo que se ouve das fontes com a realidade; o questionamento a afirmações destituídas de arrimo, são fundamentos que deveriam fazer parte do repertório de qualquer jornalista.

Vejamos o primeiro caso, em que a polícia fez a abordagem ‘desastrosa’, como registrou este jornal. A primeira atitude da hierarquia da Polícia Militar foi justificá-la: ‘De acordo com o supervisor de Policiamento da Capital, major PM Ricardo Moura, a Hilux abordada era a errada, mas o procedimento adotado pelos policiais foi o correto’, registrou O Povo (quinta-feira). É difícil compreender a lógica do major, mas, em frente. No mesmo dia, o jornal Diário do Nordeste publicou declaração do comandante do Policiamento da Capital, coronel Carlos Alberto Serra: ‘O procedimento adotado pelos policiais foi correto e dentro da lei’. O problema é que atirar em civis inocentes, ‘dentro da lei’, parece ser uma constante nas ações da PM.

Pedi ao Banco de Dados do O Povo um levantamento, de dezembro até hoje, 10 meses portanto, sobre casos parecidos, o resultado é este (a data entre colchetes é da edição do dia em que a notícia foi publicada): 1) na avenida da Universidade, dois homens, suspeitos de atropelarem um ciclista são perseguidos pela polícia; um deles leva um tiro das costas, o outro fica ferido na barriga e na mão; no carro deles conta-se a marca de 16 balas [26/12/2006]; 2) na avenida Domingos Olímpio, um sargento desentende-se com um motorista e descarrega o revólver na van que ele conduzia, lotada de passageiros: ninguém fica ferido [2/3]; 3) um ônibus com passageiros é seqüestrado na Vila União; a polícia persegue o veículo e dispara contra os assaltantes: ninguém sai ferido [8/6]; 4) uma van, com 10 passageiros, é seqüestrada na avenida Antônio Sales e desviada para o bairro Serrinha; a polícia persegue e atira, um dos passageiros, estudante universitário, leva um tiro na cabeça e morre [14/6]; 5) segundo a versão da polícia, dois adolescentes haviam assaltado um depósito de construção no bairro Olavo Oliveira, PMs os perseguem disparando as armas: duas pessoas são atingidas por ‘balas perdidas’, um homem morre e outro fica ferido; os assaltantes fogem [16/9]; 6) em Iguatu, dois irmãos, de moto, não param em uma barreira policial; são fuzilados: um morre e outro fica ferido, eles teriam sido ‘confundidos’ com ‘pistoleiros’ [22/9].

O balanço, incluindo o caso mais recente: a) três mortos e sete feridos, todos inocentes do móvel da perseguição; b) a cada 43 dias, no período visto, aconteceu uma ‘abordagem desastrada’, demonstrando ser esse um comportamento regular nas ações da PM; c) com esse modo de agir, a polícia mata ou fere uma pessoa inocente a cada 30 dias. Creio que os leitores precisariam saber disso para fazer um juízo mais completo sobre o assunto.

Quanto ao segundo caso, sem contar brutalidade com que os dois suspeitos foram atingidos, choca na matéria (edição de sexta-feira, pág. 2), o trecho informando que o ‘serviço reservado’ não usa carros oficiais, por isso, os suspeitos estavam sendo conduzidos no porta-malas do veículo ‘descaracterizado’. Um deles, com um tiro no pé, sangrava muito. Segundo o jornal Diário do Nordeste, os suspeitos estavam presos desde o dia anterior e a polícia havia passado ‘algumas horas com os dois na viatura’, à procura de um ‘terceiro envolvido’ no assalto aos PMs.

Fui adiante, verifiquei o artigo 144 da Constituição Brasileira, que diz o seguinte, no parágrafo 4º: ‘Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares’. No parágrafo 5º: ‘Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública…’ Se constitucionalmente não é sua atribuição, como policiais militares, de um certo ‘serviço reservado’ podem estar fazendo investigações, sem farda, usando carro ‘descaracterizado’ e métodos inaceitáveis em um Estado Democrático de Direito?

É desse confronto com a realidade e para essas perguntas que, creio, os jornalistas deveriam exigir explicações das autoridades constituídas.’