‘Escravos contemporâneos não são vistos com pesadas bolas ferro acorrentadas aos tornozelos. As amarras que retêm trabalhadores aprisionados em propriedades rurais são muito mais sutis: uma conta sempre devedora a favor do patrão ou a retenção de documentos pessoais. Esses são os motivos que levam à maioria dos casos de privação de liberdade encontrados pelos auditores do Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), relatados nas matérias da Agência Brasil sobre o assunto.
Entre 30 de maio e 25 de setembro de 2007 a Agência publicou 35 matérias e um infográfico sobre trabalho escravo. Uma delas, Libertados no Paraná 28 trabalhadores rurais em situação análoga à de escravos, publicada em 10 de julho, foi motivo da mensagem enviada pelo leitor João Guilherme Duda, que considerou o texto da reportagem ‘contraditório com a sua manchete’. Ele diz: ‘No texto fala-se em desrespeito a normas trabalhistas. Na manchete fala-se em libertação’. O leitor pergunta se foi constatado que os trabalhadores estavam presos a dívidas, tal como ocorre no Pará? Ou houve mero trabalho informal e desrespeito à NR-35/MTE? Tentou-se ouvir os advogados da empresa? Por fim, conclui o leitor: ‘É verdade que todo o trabalho rural informal é visto pelo MPT [Ministério Público do Trabalho] como análogo ao escravo, mas o jornalista não pode ampliar o exagero de uma das partes de um contencioso judicial para extremar e falar em ‘libertação’’.
A Agência Brasil deu a seguinte resposta: ‘Não há contradição entre o título e o conteúdo da reportagem. Conforme o relato, os trabalhadores viviam situação exata que caracteriza o trabalho escravo contemporâneo, no entender dos organismos internacionais e da legislação brasileira. Cito um trecho da reportagem: ‘um deles mantinha os trabalhadores em situação de servidão por dívida e o outro, por retenção dolosa de documentos’’.
Para esclarecer ao leitor o uso de expressões como trabalho escravo e libertação, a redação da Agência se refere a ‘organismos internacionais’ e à ‘legislação brasileira’. No entanto, nas matérias os leitores não encontram essa informação, daí talvez decorrerem as dúvidas levantadas pelo João Guilherme.
Quais são os direitos dos trabalhadores consagrados na Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário? Quais são os conceitos de trabalho escravo, trabalho degradante e privação de liberdade, entre outros, definidos na Convenção? Seria interessante produzir matérias didáticas explicando isso, pois há sempre uma tentativa de advogados de defesa de proprietários flagrados pela Justiça do Trabalho, em provável situação de desrespeito à lei, de manipular esses conceitos e transformar o assunto em uma discussão lingüística em suas declarações à imprensa.
Na matéria Trabalhadores escravos libertados relatam vida na ‘prisão’, publicada em 4 de julho, a assessoria de imprensa da Pará Pastoril Agrícola (Pagrisa) alega não utilizar ‘trabalhadores em situação análoga à escravidão’.
Na cobertura da Agência também falta uma matéria didática do tipo ‘Entenda qual é o papel do Estado na fiscalização do trabalho escravo’, explicando como são feitas as fiscalizações e quais os instrumentos e recursos utilizados, além de quais as possíveis punições previstas na lei para os condenados. Seria importante ainda recuperar o caso dos fiscais do trabalho assassinados na estrada de Unaí-GO. Ele é simbólico de como tentar inibir a ação fiscalizatória do Estado, já que esta semana o assunto voltou à pauta da Agência com a matéria ‘Desqualificada’ por senadores, fiscalização contra trabalho escravo suspende atividades, publicada em 24 de setembro.
A notícia de que a Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) suspendeu por tempo indeterminado as ações do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, depois que uma Comissão Temporária Externa do Senado ‘desqualificou’ o trabalho dos fiscais federais, dá a dimensão do quadro político-institucional que envolve a questão. Mas as razões que levaram o governo, sob pretexto de ‘interferências políticas’, a suspender a fiscalização de uma política pública do Estado brasileiro não ficaram claras.
O assunto vinha sendo tratado desde 1° de agosto, quando a Agência publicou a matéria Comissão condena pressão sobre grupo que combate trabalho escravo, na qual expunha a discussão sobre a ação do Estado brasileiro no combate ao trabalho escravo. Trazia o endereço para o leitor acessar a íntegra de uma nota de apoio às atividades do grupo assinada pelos integrantes da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). Mas a matéria fala apenas que a nota foi motivada ‘pelas pressões sofridas pelo Grupo Móvel após operação na empresa Pagrisa’. Quais foram essas pressões e feitas por quem não é informado.
As matérias conseguem contextualizar o assunto com base nas relações de produção, pelas quais o trabalhador teoricamente tem a liberdade de vender sua mão-de-obra para quem quiser, por um preço justo, desde que haja oferta suficiente de emprego. Esse, porém, não é o caso dos municípios de onde se origina a maior parte dos trabalhadores libertos. A reportagem mostra como a falta de condições de trabalho e renda leva as pessoas dessas localidades a serem capturadas facilmente por propostas ‘tentadoras’ de emprego feitas pelos ‘gatos’, contratados pelos donos das fazendas para agenciar trabalhadores.
O caso emblemático da Pará Pastoril Agrícola (Pagrisa), que deu origem à atual polêmica entre o grupo de fiscalização e os senadores, foi tratado em 15 das 35 matérias analisadas pela Ouvidoria. Nas 15 matérias foram ouvidas 27 fontes. Dentre elas, 11 defenderam a empresa. Além de quatro fontes da própria empresa, a Comissão Temporária Externa do Senado e seus integrantes foram citados quatro vezes; o ministro do Trabalho e a assessoria do MTE, duas vezes; e a presidente da OAB do Pará, uma vez. Entre as fontes que denunciaram o emprego de mão-de-obra escrava estão: o coordenador do grupo móvel (quatro vezes); o coordenador da Campanha de Combate ao Trabalho Escravo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) (duas vezes); um trabalhador libertado; a secretária da Secretaria de Inspeção do Trabalho do MTE; a assessoria de imprensa da Procuradoria da República no Pará; a Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e um dos seus integrantes, que representa a ONG Repórter Brasil; a coordenadora do Projeto de Combate à Mão-de-Obra Escrava da OIT; a BR Distribuidora da Petrobrás (numa nota); o secretário da Fazenda do Estado do Pará; o ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos; e o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.
A quantidade e a diversidade de fontes ouvidas pela reportagem mostram uma cobertura equilibrada e aprofundada sobre o caso.
No dia 25 de setembro as matérias trataram de repercutir a decisão tomada pela secretária de Inspeção do Trabalho, Ruth Vilela, de suspender o trabalho do grupo de fiscalização.
A reportagem ouviu na matéria: Lupi afirma que fiscalização contra trabalho escravo será retomada quando houver ‘segurança’, o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, que não garantiu o funcionamento do grupo de trabalho e declarou que os fiscais voltarão à ativa quando se sentirem seguros. Mas a matéria não explica por que os fiscais estão se sentindo inseguros nem qual é a responsabilidade do ministro em relação à segurança de seus subordinados. Na matéria, o ministro dá a seguinte explicação: ‘O trabalho foi suspenso porque houve uma pressão muito forte na Pagrisa do Pará, que fez com que os auditores se sentissem inseguros no seu trabalho’. No entanto, o argumento deixa o leitor mais uma vez sem saber no que se constitui essa ‘pressão muito forte’ de uma empresa privada sobre o governo e quais ameaças deixaram os auditores inseguros. O jornalismo tem a obrigação de informar e o cidadão tem o direito de ser informado quando e como a autonomia do Estado e a segurança de seus servidores estão ameaçadas.
A cobertura da Agência pode aprofundar a apuração e explicar quais são as atribuições de uma Comissão Temporária Externa do Senado e também qual a relação dos cinco senadores que constituem a comissão com as bancadas de interesse* de que participam. O cidadão precisa dessas informações para entender o papel desempenhado pelos senadores que visitaram a fazenda da Pagrisa, depois foram recebidos pelo ministro Carlos Lupi e desqualificaram a atuação do grupo do Ministério do Trabalho e Emprego, levando à paralisação de suas atividades. Também seria importante para o cidadão saber quais os projetos pendentes de aprovação no Congresso Nacional sobre o tema, como é o caso da PEC do Trabalho Escravo que aguarda há três anos para ser votada.
O debate continuará nos próximos dias nas matérias da Agência Brasil sob a vigilância atenta de seus leitores até que o episódio seja esclarecido. Até lá não haverá notícias sobre a suposta libertação de escravos no Brasil do século XXI.
Até a próxima semana.
* [Bancada de interesse, segundo o cientista político Edélcio Vigna de Oliveira, é uma bancada suprapartidária, um grupo de interesse incomum, pois atua dentro do Estado sendo parte do aparelho de Estado. Porém, seus fins são os mesmos de qualquer grupo social de interesse: atuar em favor de interesses setoriais. Todavia, essa bancada interfere diretamente no processo decisório. Tornando-se, assim, um grupo de pressão.]’