Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O paraíso jornalístico do presidente

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva reconheceu, na época da reeleição, haver dado poucas entrevistas no primeiro mandato, mas acrescentou uma ressalva: havia feito muitos discursos. No seu estranho raciocínio, a freqüência dos pronunciamentos compensava, ou quase, a escassez de entrevistas. Essa contabilidade parece denunciar uma concepção particular do trabalho jornalístico. A função básica do repórter, deve imaginar o presidente, não é buscar respostas para uma lista própria de perguntas. É ouvir as palavras da autoridade. A esta compete escolher o assunto e a extensão do esclarecimento. Se o governante discursa, para que interrogá-lo?


Essa concepção nunca foi declarada, mas parece evidente e é compatível com a história do governo Lula. Explica, em boa parte, a pouca disposição de enfrentar, com regularidade, um grupo de entrevistadores. Esse é um ritual freqüente para governantes, nas democracias avançadas. Combina também com as tentativas de controle (ou ‘democratização’, no dialeto falado nos círculos do poder) dos meios de comunicação.


A aversão a entrevistas talvez se explique também pela insegurança em relação a perguntas não programadas. Presidentes dispostos a reuniões com a imprensa devem estar prontos para tratar de assuntos variados e para enfrentar questões inesperadas. Em geral, são capazes de contornar as indagações embaraçosas, mas para isso precisam de algum jogo de cintura, adquirido por meio da experiência. Há respostas – e não perguntas – indiscretas, dizia há 30 anos o então ministro Mário Henrique Simonsen. Respostas indiscretas a autoridade só dá se quiser.


Reprodução de palavras


Desde a reeleição, o presidente Lula tem falado mais com a imprensa, mas quase sempre em posição vantajosa. Em ocasiões especiais, depois de eventos públicos ou de reuniões, tem-se deixado cercar por bandos de repórteres. É a situação mais confortável para a autoridade. Os jornalistas são forçados a competir desordenadamente para fazer perguntas curtas, no meio de uma confusão de pessoas e de microfones.


Nesses momentos, as questões são previsíveis e o entrevistado responde como quer, sem chance de repique. Entrevistas desse tipo são em geral pouco produtivas e servem apenas para a gravação ou anotação de algumas declarações esparsas e pouco esclarecedoras. Servem mais para preencher tempo nos noticiários de TV e contém pouca informação para os leitores mais curiosos.


Mas a imprensa brasileira, é preciso reconhecer, entra facilmente nesse jogo. A maior parte do noticiário sobre os grandes temas é mero registro de declarações. Se as palavras tiverem algum peso retórico, alguma agressividade, ou algum toque pitoresco, podem valer manchete ou pelo menos uma boa posição na primeira página. Sua qualidade informativa é raramente avaliada pelos editores. Não se jogam fora declarações de autoridades do primeiro escalão, mesmo quando pouco informativas.


Também isso confere uma vantagem preciosa ao presidente, aos ministros e aos diretores de grandes autarquias. Com o jornalismo reduzido à coleta e à reprodução de palavras, qualquer coisa pode merecer espaço nos jornais ou nos sites das agências. Qual a novidade, quando um diretor do Banco Central promete novos cortes de juros, se a inflação continuar em queda? Nenhuma, é claro, mas isso não impede a divulgação da ‘notícia’.


Atenção especial


Para um presidente amante da própria voz, esse é o paraíso jornalístico. Longos discursos, freqüentemente vazios e desconexos, podem ganhar destaque, como se fossem grandes novidades. Repórteres e editores entregam-se a um esforço comovente para descobrir uma abertura e um título, naquele emaranhado de expressões vagas e confusas. Poderiam fazer algo melhor e mais informativo, se exercitassem o humor e tratassem o discurso de acordo com seu mérito real. Mas não o fazem, para ‘não brigar com a notícia’.


Num país como o Brasil, governo e autoridades são, inevitavelmente, assuntos importantes para os meios de comunicação. As instituições são instáveis e a democracia ainda se consolida. A economia depende, ainda, de uma formatação legal duradoura e da formulação de políticas de longo alcance pelo setor público.


Isso impõe a editores, pauteiros e repórteres uma atenção especial à definição de políticas e às decisões governamentais. Mais do que seus colegas de economias mais avançadas e mais estáveis, eles devem ficar de olho em todos os setores e ramos do governo. Não basta cobrir a vida dos mercados, porque o governo é uma parte importante do decantado ‘lado real da economia’. Para realizar esse trabalho, é preciso reduzir o espaço do jornalismo declaratório. Quando isso ocorrer, o falatório presidencial terá o espaço proporcional à sua importância.

******

Jornalista