‘PARA SER PRECISO , quase sempre: em nove dos 12 domingos passados, três em cada quatro, a Folha publicou resultados de pesquisas do Datafolha.
Manchetes anunciaram que a desordem nos aeroportos e a tragédia de Congonhas não abalaram a popularidade do presidente Lula; que o ex-governador Alckmin é o favorito para prefeito de São Paulo; que os brasileiros são avessos à malhação; que a maioria dos fumantes não consegue largar o cigarro; e como andam os hábitos da família nacional.
A Primeira Página também alardeou levantamentos sobre a qualidade dos hospitais, conforme o diagnóstico dos médicos; os craques e os clubes de futebol mais queridos; e os cursos de MBA (pós-graduação) preferidos.
A Revista da Folha, sem chamada na capa do jornal, expôs o que os habitantes da maior cidade do Brasil acham de homossexuais exercerem certos cargos e funções.
Enfim, um belo trabalho. Mas do belo instituto que é o Datafolha, não do jornalismo.
A função jornalística essencial é informar, contribuir para que os leitores, no caso de veículos impressos, saibam mais sobre as coisas. E não divulgar pesquisas sobre o que eles -ou a opinião pública- pensam disso e daquilo, embora os números por vezes sejam relevantes.
É possível que a predominância das empreitadas do Datafolha no jornal configure uma ‘teoria da dependência’. Se o jornalismo fraqueja, e falta contar boas histórias, a pesquisa tapa o buraco.
Como anotei em uma crítica diária (leitura em www.folha.com.br/ombudsman), ‘é inegável o fascínio da Folha por porcentagens. Mas o destaque às pesquisas talvez indique a ausência de reportagens que possam rivalizar pelo espaço mais nobre do jornal [a Primeira Página]’. Em 23 de setembro, não fossem as conclusões sobre fumantes, a opção seria ‘Lançamento de ações impulsiona a formalização’, manchete sem encanto.
As edições dominicais são as mais caprichadas -por isso é ainda mais preocupante a Datadependência. Começam a ser planejadas nas segundas às 15h, em reuniões numa sala da Redação.
O ‘Manual da Redação’ de 1987 tratou delas: ‘Na tradição dos matutinos, é a maior edição da semana, tanto em número de páginas editoriais quanto em volume de publicidade. É a edição em que aparecem mais textos ‘de leitura’: reportagens investigativas, análises mais longas, material de pesquisa mais elaborado’.
O ‘material de pesquisa’ não é de opinião pública, mas jornalístico. E não custa ponderar que ‘reportagem investigativa’ é pleonasmo.
A escassez de reportagens de fôlego nos últimos meses transformou o jornal de domingo em transmissor assíduo de pesquisas. Elas são um trunfo valioso em momentos determinados, como campanhas eleitorais. Se vulgarizadas como recurso jornalístico, perdem o viço.
Pesquisa de opinião é negócio de instituto de pesquisas. O do jornal é jornalismo: escolher assuntos, garimpar informações, revelar histórias e conflitar idéias.’
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‘Não há almoço de graça’, copyright Folha de S. Paulo, 28/10/07.
‘A TAM faz 56 vôos semanais de São Paulo para Buenos Aires. A Gol, 28. A Aerolineas Argentinas, 27. A LAN, sete. A British Airways, quatro.
Embora com 3% das 122 decolagens, a British foi a única companhia aérea citada na reportagem principal de Turismo da quinta retrasada, dedicada a Buenos Aires. Dado sobre a ocupação de suas aeronaves comprova o sucesso da operação para a Argentina.
Não há mesmo obrigação de considerar e noticiar apenas as empresas que voam mais.
Na página cujo relato trata de hotéis, os eleitos para serem fotografados foram o Hyatt, o Faena e o Alvear. A seleção de imagens é parte do ofício de editar. O serviço, adiante, enumerou 20 hotéis.
Quem sabe as opções foram mera coincidência, estatisticamente isso é uma hipótese.
A coincidência incontestável foi o destaque para quem pagou a viagem dos dois autores dos textos. Outros, não a Folha, bancaram as despesas de transporte e hospedagem.
O repórter foi convidado do Hyatt. A repórter, da British e, segundo nota de rodapé, da ‘rede de hotéis Leading’ -à qual são associados, de alguma forma, o Faena e o Alvear. A Folha, em vez de informar de modo transparente que a repórter fora convidada do Faena, disse que o anfitrião era a rede Leading, cuja relação com o hotel os leitores ignoram. Só a descobri na internet.
É jornalisticamente questionável a incidência de viagens ‘a convite’ na cobertura sobre turismo nas publicações brasileiras, a Folha incluída.
O esclarecimento sobre a condição de ‘jornalista convidado’ é uma conquista da qual a Folha foi pioneira.
Mas não elimina o problema da conexão entre quem publica e quem paga. Se o jornal custeasse a viagem, não haveria restrição à escolha das fotos dos hotéis divulgados.
Não é o que pensa o editor de Turismo, Silvio Cioffi, que na crítica diária do ombudsman respondeu a comentários meus: ‘Gostaria de esclarecer que os relatos jornalísticos não deram atenção ‘apenas aos patrocinadores da viagem’. Um repórter viajou a convite do hotel Faena, outro do Hyatt’.
‘Resolvemos incluir o Alvear e, como sempre fazemos, respeitando o ‘Manual’, incluímos nesta edição a menção aos convites -com transparência. Publicamos ainda, com destaque e pluralismo, exatos 31 pacotes de viagens para a capital argentina e serviço bem apurado de 20 hotéis e albergues (a partir de US$ 9/dia).’
‘Idem os preços e sites de todas as companhias aéreas que voam para Buenos Aires (são 120 vôos semanais). Crítica, a edição dá título ainda para furtos de carteira, passaportes e máquina de foto.’
O serviço foi amplo, mas a deferência em textos e fotos foi para os patrocinadores. Jornalismo de serviço não deve ser promocional. Seu papel é ajudar o leitor-turista a se guiar e evitar armadilhas.
O tom do caderno foi tão oba-oba que a Primeira Página do jornal titulou: ‘Buenos Aires – Agrada a todos os gostos e bolsos’. Discordo: há quem não goste e quem não tenha dinheiro para viajar.’