Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mário Magalhães

‘Quem acredita em neutralidade jornalística deveria reparar na valiosa e involuntária contribuição da Folha para exterminar tal crença.

No dia 25 de novembro, o jornal apresentou em Mundo um estudo que monitorou TVs e rádios da Venezuela na campanha do referendo sobre mudanças constitucionais.

Seis dias depois, Brasil reeditou por engano o mesmo texto em parte dos exemplares. A investigação acadêmica confirmou que o noticiário é parcial, porém menos que em pleitos anteriores.

Mundo titulou com tons sombrios: ‘Mídia venezuelana cobre mal referendo’. Brasil iluminou o progresso: ‘Cobertura do referendo está mais imparcial, revela estudo’.

A partir da mesma matéria-prima, o jornal ofereceu duas sínteses, ambas corretas: a depender da página, o conteúdo era positivo ou negativo. Isso ocorreu porque neutralidade e objetividade jornalísticas são entidades de ficção.

O ‘Manual da Redação’ da Folha ensina: ‘Não existe objetividade em jornalismo. Ao escolher um assunto, redigir um texto e editá-lo, o jornalista toma decisões em larga medida subjetivas, influenciadas por suas posições pessoais, hábitos e emoções’.

Acrescento: cultura, idiossincrasias e opiniões das organizações jornalísticas também impactam as opções.

Ainda assim, na mesma Redação, conheceram-se interpretações opostas. Uma considerou que deveria destacar a essência da reportagem -a cobertura é partidária; outra, a novidade: há evolução.

O leitor que alcançou o ponto final recebeu o conjunto de informações para formar seu próprio juízo. O que só passou os olhos pelo alto foi influenciado com vigor pelo intermediário -o autor do título.

Mesmo sem existir quimicamente pura, a objetividade é uma qualidade que se deve perseguir, notadamente em alguns gêneros do jornalismo -não é função de reportagem ‘fazer cabeças’, mas informar. O guia ético do ‘New York Times’ recomenda ser tão imparcial ‘quanto possível’.

Cobrado pela distorção que a paixão pelo Botafogo causaria em seus comentários, João Saldanha retrucava: ‘Ninguém é filho de chocadeira; todo mundo tem opinião’.’

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‘Seu Barriga assombra o jornalismo’, copyright Folha de S. Paulo, 6/12/07.

‘Volta e meia os oponentes do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, fustigam-no aqui no Brasil com imagens do antigo seriado de humor mexicano ‘Chaves’. Um dos personagens do programa, Seu Barriga, costumava ser alvejado com boladas pelo menino Chaves.

Na segunda-feira, o espectro do Seu Barriga alvejou o jornalismo na cobertura do referendo venezuelano sobre a reforma constitucional. Aprovada, ela permitiria a reeleição ilimitada de Chávez.

O diário ‘O Estado de S. Paulo’ amanheceu com o anúncio do triunfo do ‘sim’ chavista: ‘Referendo aumenta poderes de Chávez’. Como se soube de madrugada, o ‘não’ se impôs.

Uma ‘barriga’ antológica. Como define o ‘Manual’, ‘barriga’ é a ‘publicação de grave erro de informação’.

Em contraste, inspirada pela virtude da cautela, a Folha pisou no freio. Título na primeira página da edição concluída às 21h22: ‘Boca-de-urna dá vitória a Chávez em referendo’.

Na mais tardia, à 1h34, leu-se a manchete prudente: ‘Referendo na Venezuela tem disputa acirrada’. E abaixo: ‘Pesquisas de boca-de-urna indicam vitória de Chávez, mas governo evita comemorar antes do resultado final’.

Na terça, descobriu-se que a Folha também cometeu a sua barriga, bem como muito do jornalismo nacional e estrangeiro: a pesquisa de boca-de-urna do instituto Datanálisis não existia -era cascata de fontes governamentais. O jornal se baseou na agência noticiosa Efe, que errou.

Tivesse mais cautela, a Folha só informaria sobre o levantamento após checar. Em um pleito polarizado, com batalhas da informação determinantes para o desfecho da guerra, o ceticismo, essa outra virtude jornalística, nunca é demais.’

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‘Padre Júlio, megafone e cochichos’, copyright Folha de S. Paulo, 9/12/07.

‘Acima da dobra da primeira página da sua edição mais nobre, a dominical, a Folha estampou em 28 de outubro o título ‘Ex-interno diz que fazia sexo por dinheiro com padre’. Em Brasil, emendou: ‘Ex-interno afirma que fazia sexo com padre Júlio’.

No dia 29 passado, o jornal informou sem alarde, longe da capa, em rodapé de Cotidiano: ‘Detento recua e nega relação íntima com padre’.

Ao contrário do que pensaram alguns leitores que me procuraram, o ex-interno da primeira notícia, Anderson Batista, não é o detento da segunda, Marcos José de Lima.

Mesmo assim, pareceu desigual a abordagem dos fatos: quando um depoente fez declaração ruim para Lancelotti, o jornal noticiou com megafone; quando outro fez uma boa, informou-se com cochichos.

A cobertura é legítima e aborda questões de interesse público, como suposta extorsão, suposto uso de verbas oficiais e suposta prática de pedofilia. O padre não foi nem indiciado, nem acusado e muito menos condenado. A Folha deveria resgatar o equilíbrio.

A Redação comentou: ‘Os casos são diferentes. O primeiro, de 28 de outubro, trata do ex-interno da Febem que foi acusado pelo padre de tentativa de extorsão. Foi publicado na primeira página, da mesma forma que as acusações do padre Júlio tinham sido publicadas. O segundo caso, de novembro, é um outro acusador, cujas denúncias nunca receberam destaque na Folha -nem na primeira página nem em Cotidiano. Por isso, quando ele recuou, suas declarações também não foram editadas com destaque’.’