Os desencontros da semana passada envolvendo Brasil e Bolívia, na área de exploração de gás natural, chamaram a atenção pelo aspecto político. Mas há uma questão energética presente neste caso que não costuma ser considerada.
De certa forma, é parte da tradição brasileira, em termos de visão de mundo e de planejamento, um olhar específico para cada um dos problemas da realidade nacional, sem uma consideração mais ampla e articulada. O desafio, aqui, é menos de providências práticas e mais de conscientização social em direção a uma cultura científica mais ampla, capaz de permitir desdobramentos mais promissores ao longo de um tempo maior. Até porque, em última instância, é a natureza do conjunto das mentalidades que estabelece a diferença entre um país desenvolvido e outro subdesenvolvido.
Se não formos capazes de alterar as mentalidades, abrindo espaço para conceitos mais promissores, não nos libertaremos das amarras do subdesenvolvimento, com todas as conseqüências dramáticas desta condição. Entre elas o banditismo, a corrupção e a violência social.
Energia, para retomar nosso ponto inicial, é um recurso de fundamental importância e embora intuitivamente a maioria das pessoas se dê conta disso, certamente há carência de uma visão mais consciente sobre um significado mais amplo sobre esse conceito. Uma referência capaz de permitir acesso a uma ‘inteligibilidade possível’ para questões que vão além da vida prática e permitir acesso a uma dimensão lúdica o que, em última instância, deveria ser a experiência de viver.
Ficção científica
Um ponto de partida interessante para uma apreciação do significado do uso de energia num cenário mais amplo é o que ficou conhecido como ‘civilizações Kardashev’.
Nicolai Kardashev é um astrofísico russo, autor de um modelo de classificação para possíveis civilizações alienígenas com base no consumo de energia. Fez o que o historiador da ciência Eduardo Dorneles Barcelos, recentemente falecido, chamou de ‘um dos passos iniciais na elaboração de uma exossociologia – o estudo geral das sociedades, terrestres e extraterrestres’.
O marxismo, conjugado à análise exobiológica, ainda de acordo com Barcelos, levou cientistas soviéticos a procurar leis gerais do desenvolvimento das sociedades tecnológicas, aquelas capazes de construir máquinas e equipamentos como forma de se prescindir do trabalho humano, exceto por um quantum de criatividade científica inicial para engendrar esses equipamentos e que ainda são de origem humana.
Na consideração de Kardashev, partilhando opinião com outros cientistas, a distinção entre civilizações tecnológicas está em seu estágio econômico, onde o consumo de energia é tradicionalmente um mecanismo de referência.
Kardashev divide as civilizações tecnológicas em três padrões:
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No primeiro está a nossa própria civilização, na qual recursos tradicionais como lenha e carvão ainda são largamente consumidos como forma de obtenção de energia.**
Um segundo tipo, envolvendo uma civilização mais adiantada, sugaria toda a energia liberada por sua estrela-mãe, um sol, em torno do qual esse mundo eventualmente orbite.**
Um terceiro padrão demandaria a energia produzida por toda sua galáxia de origem. Se fôssemos uma civilização de terceiro nível consumiríamos a energia produzida por todas as estrelas da Via Láctea, a galáxia de que somos parte, e que reúne de 100 a 200 bilhões de estrelas.Um consumo de energia neste padrão permitiria a uma sociedade desse tipo façanhas que talvez nem mesmo a ficção científica tenha sido capaz de avaliar.
Energia potencial
Os números considerados por Kardashev estimam que a humanidade, com padrão de consumo de energia entre 3% a 4% ao ano, atingiria o nível de consumo de segundo tipo ao final de um período de 3.200 anos. Para chegarmos ao nível três teríamos que esperar por quase o dobro deste tempo, ou seja, 5.800 anos.
Estes cálculos levam em conta um crescimento linear do padrão de consumo de energia e pode ser alterado temporalmente para demandas mais aceleradas.
O modelo de Kardashev, de que participa também o físico inglês naturalizado norte-americano Freeman Dyson, enfrentou contestações por levar em conta um paralelismo etnocentrista. Ou seja, não basta extrapolar padrões conhecidos, de nossa própria civilização, para cenários desconhecidos e obter um resultado confiável sobre aquilo que se deseja saber.
Questões dessa natureza poderiam ser freqüentes nos jornais se tivéssemos mais espaço para o jornalismo científico. Mas aqui ainda somos de uma indigência lamentável. Os grandes jornais brasileiros têm suplementos para cobrir as áreas mais variadas, do turismo à informática e agricultura, passando pelas banalidades da TV. Nenhum deles mantém um caderno de ciência, o que evidencia a mentalidade dos gestores das redações, confinados aos limites da política e economia como se, numa sociedade do conhecimento, política e economia fossem imunes à força transformadora da ciência.
Uma abertura para ciência permitiria aos jornais uma cobertura mais criativa de ocorrências que, como os desencontros com a Bolívia, restringem-se apenas e tão-somente aos limites da economia, do sistema de produção. Como se o sistema produtivo, em si, fosse a essência da vida e a razão de estarmos aqui.
Uma cobertura mais produtiva permitiria sensibilizar os leitores para a primeira lei da termodinância, segundo a qual a energia não pode ser nem criada nem destruída, mas apenas transformada. Assim, uma usina hidrelétrica não gera energia, mas viabiliza sua transformação. A energia potencial das águas, deslocando-se de um ponto mais elevado para um menos elevado, movimentando as turbinas, ‘produz’ energia elétrica.
Já as águas do rio, para alimentarem as nascentes e correrem de montante a jusante, dependem da evaporação e a usina de força para isso é a energia solar.
14 bilhões de anos
O coração do Sol tem sua própria usina de força, de origem gravitacional, pela conversão de hidrogênio em hélio e eliminação de uma sobra de massa nesse processo que obedece à equação de Albert Einstein: E = m.C2, onde a energia equivale a massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado. Mesmo a energia dos nossos corpos, da nossa voz, do movimento que fazemos com os olhos para ler um texto como este. Toda essa energia vem do Sol.
Retiramos essa energia dos alimentos que consumimos, de origem vegetal ou animal. As folhas das árvores não são outra coisa senão antenas para captação de energia para a fotossíntese e os animais que consumimos, como peixes e aves, também integram uma cadeia alimentar com base nos vegetais.
Em última instância, toda a energia, a que está presente no coração das estrelas, movimentando nossos músculos e presente no vento que sopra no final da tarde originou-se com o Universo, há uns 14 bilhões de anos.
E desde então não cessou de transformar-se.