Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Estado de S. Paulo


LIBERDADE DE IMPRENSA
O Estado de S. Paulo


A luta do ‘Estado’ contra a censura


‘A história da resistência dos jornais O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde
à censura, nos anos do regime militar, é um dos principais temas da exposição
1968 – 40 Anos Utópicos e Rebeldes – A Geração Que Disse Não, aberta anteontem
na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. A convite do Ministério da Cultura e da
Secretaria Especial de Direitos Humanos, os dois jornais reuniram documentos,
fotos, vídeos, painéis e coleções para narrar o que tem sido considerada por
políticos e historiadores uma das mais belas páginas da história da luta pela
liberdade de imprensa no País.


A mostra, intitulada 1968 – Mordaça no Estadão, é a mais ampla já organizada
sobre o tema. Permite ao visitante compreender desde os métodos de ação dos
censores à estratégia adotada pela direção dos jornais para indicar ao leitor
que o material de reportagem e opinião estava sob censura.


Sob a ditadura, enquanto quase todos os jornais do País aceitaram a
determinação para que o material vetado pelos censores fosse substituído por
outro, dando a impressão de normalidade democrática, o Estado recusou-se a
participar disso. Passou a preencher os espaços vagos com trechos do épico Os
Lusíadas, de Luís de Camões. O JT mostrou idêntica combatividade, recorrendo
porém a inusitadas receitas culinárias.


Logo os leitores perceberam que algo estava errado; e com o passar do tempo o
poema se transformou em sinônimo de censura e também ‘símbolo de resistência’ –
conforme expressão da historiadora Maria Aparecida de Aquino, na tese Censura,
Imprensa, Estado Autoritário.


Na mostra estará exposto pela primeira vez o conjunto das páginas censuradas.
São três grossos volumes, com quase mil páginas. ‘Por meio de monitores será
possível acessar os textos e cotejar as páginas produzidas pela redação com as
que foram impressas, após a tesoura do censor’, diz o historiador José Alfredo
Vidigal Pontes, curador da mostra.


Cada visitante receberá uma fac-símile da histórica edição do Estado do dia
13 de dezembro de 1968 – espécie de link para entender o período. Aquele foi um
ano de intensa agitação social, cultural e política no País, retratada com total
independência pelos repórteres e articulistas do Estado e do JT. No dia 12 de
dezembro, o Congresso Nacional, resistindo às pressões do regime, recusou a
autorização solicitada para que um de seus membros, o deputado Márcio Moreira
Alves, fosse levado a julgamento. No dia 2 de setembro, ele havia feito um
discurso propondo à população que boicotasse as comemorações do Dia da
Independência, para mostrar repúdio ao regime – fato que irritou os
militares.


Na edição do dia 13, a seção Notas e Informações do Estado abria com o
editorial intitulado Instituições em frangalhos, com críticas ao governo. À
noite, quando o jornal começava a sair das oficinas para os carros de
distribuição, o delegado regional da Polícia Federal em São Paulo, general
Silvio Correia de Andrade, mandou recolhê-lo. Depois das oficinas, os policiais
também foram às bancas capturar os exemplares já entregues.


É o fac-símile desse jornal que está sendo distribuído na mostra. ‘Resolvemos
entregar aos leitores o jornal que não pudemos entregar há 40 anos’, diz o
coordenador do Centro de Documentação do Estado, Marcelo Leite Silveira.


Ainda no dia 13 de dezembro, o presidente da República, general Artur da
Costa e Silva, assinou o Ato Institucional n.º 5, que fechava o Congresso por
tempo indeterminado, suspendia as garantias constitucionais e dava início ao
período mais obscuro da ditadura militar.


A liberdade de expressão e a independência da imprensa foram os primeiros
alvos. A censura aos jornais passou a ser feita por meio de telefonemas,
telegramas, telex, com listas de temas que não podiam ser noticiados ou
comentados. A situação deteriorou-se nos anos seguintes, com a ascensão ao poder
do general Emílio Garrastazu Médici, até que no dia 24 de agosto de 1972 os
censores se instalaram nos jornais e começaram a cortar textos nas provas de
impressão.


O motivo dessa mudança foi uma notícia, pequena, informando que um dos
prováveis sucessores de Médici era o general Ernesto Geisel. Como se tratava de
um tema proibido pela censura, a represália foi imediata: no mesmo dia, às 22
horas, quatro homens da Polícia Federal chegaram ao jornal e desceram para as
oficinas. ‘Pela sua independência, o Estado ficou sob marcação cerrada do
regime’, diz Ari Schneider, editor de projetos especiais do Grupo Estado.


Os censores só foram embora no dia 3 de janeiro de 1975, às vésperas das
comemorações dos 100 anos de existência do jornal. É esse período de quase três
anos que está retratado na mostra. Num vídeo, os visitantes também poderão ouvir
jornalistas da época contando como foram as relações com os censores.


Uma das últimas matérias que eles cortaram foi a tradução de um texto de
página inteira publicado pelo New York Times sobre o centenário do Estado,
apontando-o como um símbolo de resistência à ditadura. Não foi o único veículo
de prestígio internacional a reconhecer a importância da luta do jornal.


Em 1974, o então diretor do Estado, Julio de Mesquita Neto, recebeu em
Copenhague, na Dinamarca, o Prêmio Pena de Ouro, conferido pela Federação
Internacional dos Editores de Jornais (Fiej); o Prêmio Mergenthaler ,
condecoração máxima da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), e a comenda
de Cavaleiro da Legião de Honra, outorgada pelo presidente da França, François
Miterrand.


Em Copenhague, ao receber a Pena de Ouro, que terá uma réplica exposta na
mostra, o diretor do jornal disse: ‘Reconheço que editar diariamente um jornal
censurado é uma tarefa ingrata. Mas capitular seria bem pior…’’


 


***


Combate à ditatura custou até anos no exílio


‘Desde que nasceu, há 133 anos, O Estado de S. Paulo nunca se afastou dos
ideais que nortearam sua criação: a independência do poder político e econômico
para levar aos leitores a informação mais abrangente, confiável e objetiva. Na
prática isso se traduziu em lutas – como a resistência à censura nos anos do
regime militar – e um constante processo de aperfeiçoamento técnico e
profissional.


Fundado em plena monarquia, com o nome de A Província de S. Paulo, uma das
primeiras bandeiras do jornal foi a instauração da República. Em 1940, por
combaterem a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, seus proprietários
foram obrigados a se exilar na Argentina; e durante cinco anos o jornal ficou
nas mãos de interventores nomeados por Vargas. Em 1968, por denunciar ‘a quebra
dos compromissos democráticos’ no País, o jornal passou a ser censurado e
perseguido. Em nenhum momento, porém, cedeu.


Essa determinação – de manter o compromisso com a verdade e com a qualidade
editorial – é até hoje reconhecida pelos leitores. Na pesquisa realizada pela
Troiano Consultoria de Marcas, o Estado venceu por cinco vezes consecutivas –
entre 2003 e 2007 – na categoria de jornal mais admirado do País. Também já foi
apontado como o mais confiável, em 2004-2005, pela Consultoria de Comunicação
Edelman. Essa mesma pesquisa apontou o portal estadao.com.br como o endereço de
notícias mais confiável da internet brasileira.


O portal é um dos novos canais de comunicação criados nos últimos anos pelo
Estado, num processo que transforma o jornal impresso cada vez mais numa
multiplaforma de informação. Outro exemplo disso é o Estadão Digital, para o
leitor que deseja ter acesso à informação pela internet, mas mantendo a
referência do impresso. Também pode ser citada a TV Estadão – que exibe matérias
e entrevistas produzidas pela Redação, expandindo a informação do jornal e
abrindo um novo canal de debates sobre os grandes temas nacionais.


O Grupo Estado, um dos maiores conglomerados de comunicação do País, abrange,
além do Estado e JT, a Rádio Eldorado, a Agência Estado, a editora OESP Mídia,
os portais estadao.com.br, limao.com.br e zap.com.br e a OESP Gráfica.’


 


RELIGIÃO
O Estado de S. Paulo


Blogs na internet atacam a Cientologia


‘O calcanhar de Aquiles da Igreja da Cientologia em todo mundo tem sido a
internet. Além de organizar protestos, os críticos da organização vêm
sistematicamente publicando documentos até então confidenciais – em português,
por exemplo, há o blog cientonetica.wordpress.com. Em um dos textos mais
polêmicos atribuídos à Cientologia, o idealizador da crença, Lafayette Ron
Hubbard, conta um dos grandes segredos da religião, que só pode ser conhecida
por pessoas da mais alta hierarquia da Igreja: há 75 milhões de anos, dezenas de
planetas eram governados por um líder maligno, Xenu. Para sanar um problema de
superpovoamento, Xenu teria segregado bilhões de seus habitantes na Terra. Eles
foram mortos com bombas de hidrogênio, e seus espíritos – os thetans – passaram
a vagar pelo planeta. Os thetans foram ainda submetidos a um processo que os
tornou inaptos a tomar decisões. Cada habitante da Terra atual seria uma
reencarnação desses espíritos.


Segundo os sites, a organização fundada por Hubbard é fortemente baseada na
relação entre humanos e extraterrestres e prega a limpeza mental e espiritual do
indivíduo, além da busca pela verdade que salvará a raça humana da ameaça que a
estaria atormentando desde o início dos tempos. Dentre as práticas comuns do
grupo, estaria a aversão contra remédios como aspirina e partos com anestesia ou
cesariana. A Igreja da Cientologia diz que isso não passa de boato e de campanha
difamatória. ‘Não há ETs, e a Cientologia não trata de coisas como lavagem
cerebral’, diz a porta-voz da religião no País, Lucia Winther. ‘Quem fala isso
não conhece e simplesmente não quer conhecer a nossa religião de verdade.’’


 


FOTOGRAFIA
Simonetta Persichetti


Equívocos comuns sobre a imagem


‘A princípio todo livro que se propõe a discutir e a pensar fotografia é
bem-vindo, diante da escassez desse tipo de publicação que temos no Brasil. Foi
assim que o livro 8x Fotografia, organizado por Lorenzo Mammì e Lilia Moritz
Schwarz, foi recebido. O livro é resultado de seminário realizado em setembro e
novembro de 2004, no Centro Universitário Maria Antonia, quando seus autores
convidados discutiram a fotografia nas mais variadas vertentes. Participaram
professores de diversas áreas como sociólogos, fotógrafos, poetas, jornalistas,
críticos de arte e antropólogos.


Um debate mais do que interessante, visto que a fotografia, desde sua
invenção na metade do século 19, está infiltrada nas mais diferentes áreas do
saber e se predispõe às mais diferentes interpretações. E é bom que assim seja.
Mas o entusiasmo inicial termina nas primeiras páginas da leitura. Tirando o
fato de uma linguagem acadêmica e pedante, fica desde logo evidente que a
fotografia não é o centro das questões, mas fica em segundo plano, apenas como
referência para outras dissertações e pensamentos que muitas vezes fogem da
idéia inicial. Isso fica claro quando os editores optaram por não colocar
imagens nos textos, mas deixá-las à parte no início do livro. Para saber do que
eles estão falando fazemos um exercício de ir e vir.


Além disso, vários deles discorrem e falam de inúmeras outras fotografias que
nem comparecem no livro. Ou seja, que não conhecem a fundo fotografia, não sabem
do que eles estão falando. Fica um elenco de nomes e datas. Os autores dos
primeiros ensaios, embora reiteradas vezes repitam não serem especialistas em
fotografia nem entender do assunto, procuram de forma, muitas vezes até forçada,
incluir a fotografia num discurso que há muito foi deixado para trás. Claro que
não é necessário – nem importante – ser um historiador da fotografia para falar
sobre ela, mas a partir do momento que se escolhem determinadas vertentes, um
pouco do conhecimento do desenvolvimento da linguagem fotográfica não atrapalha,
pelo contrário, só ajuda.


Isso se dá muitas vezes porque se acredita que um historiador ou crítico de
arte é conhecedor o suficiente de representações de linguagem não verbal para
discorrer sobre a representação fotográfica. Um equívoco bastante comum. A
fotografia está mais para a narrativa literária do que para a representação
pictórica. A professora de história de arte moderna e contemporânea Rosalind
Krauss, já deixou isso muito bem explicado em seu livro O Fotográfico (Editora
Gustavo Gili, 237 págs., 1990). A fotografia pertence a um campo cultural
diferente da pintura (embora muitas vezes dialogue com ela e sem dúvida lhe é
muita próxima) e, portanto, as perspectivas de percepção são diferentes por
parte dos espectadores.


Rosalind Krauss parte do princípio que não é exato partir das noções de
estética e estilo de história da arte para falar sobre fotografia. Que ela está
mais próxima da idéia de acervo do que da idéia de museu. Ela defende a
fotografia como um campo artístico específico. Ao seu lado, estudiosos como
Roland Barthes ou Philippe Dubois, que se apóiam na semiótica, também defendem a
decodificação da fotografia como a decodificação de um texto. Mas nada que
impeça outros tipos de leitura e interpretação.


Pois bem, nos oito textos do livro – diga-se todos escritos por pessoas
altamente gabaritas em suas respectivas áreas -, muitas vezes nos deparamos com
preconceitos criados durante os mais de 200 anos da história da fotografia.
Parece aos autores, não todos, incomodar o fato de não conseguir entender ou
catalogar a fotografia dentro da história da linguagem autônoma. Ou uma vontade
de incluí-la de forma forçada dentro da história da arte.


Outro autor especialista em fotografia, Alfredo de Paz, já dizia que ninguém
é igual diante de uma fotografia, nem quem a faz, nem quem a olha. Isso permite
as mais variadas recepções e a conclusão de que a fotografia não é uma linguagem
universal e que, portanto, necessita de decodificação para ser compreendida.


Dos oito textos, cinco fogem da discussão do pensar fotográfico, procurando
de toda maneira entender não o ato em si, mas correlacionar a fotografia às
outras áreas, em especial as artes plásticas. Daí as comparações com colagens e
surrealismo no texto de Alberto Tassinari ao falar de uma imagem de
Cartier-Bresson, e erroneamente citá-lo como o grande representante do
instantâneo esquecendo de outros antes dele que fizeram do átimo sua linguagem,
como André Kèrtész. Ou o texto do ensaísta e poeta Antonio Cícero que foge
completamente para uma pensata poética – muito interessante, mas que nada fala à
fotografia, para a ela retornar no final e forma muito apertada encaixar a
imagem de David Hockney em seu discurso. Ou ainda a leitura dos trabalhos de
André Kertész pelo Rodrigo Naves, que de início já ‘determina’ quais assuntos
seriam mais apropriados ao registro fotográfico, ou seja, ‘o que se deixa
caracterizar plenamente pela sua exterioridade…’ Ou a ligação entre texto e
imagem nos cartazes publicitários e grafites da cidade, inspirados por uma
fotografia de Walker Evans, e que levou seu autor o jornalista Marcelo Coelho a
dizer claramente que falará de outras coisas e mais tarde voltará para a
fotografia. Ou o fascinante e interessante texto de Sylvia Caiubi Novaes, já
conhecida e reconhecida na área de antropologia visual, mas que também nos traz
a imagem como ilustração e quase incapaz de conseguir por si só trazer algumas
informações ou comunicar algo que nos quer contar. O problema não está na
imagem, mas na maneira como nós entendemos a fotografia. Como dito acima parece
que ela é mera ilustração, mero suporte ao que se acredita ou quer provar.
Conceito há muito superado.


Mas nos três seguintes, encontramos a fotografia protagonista, como no belo
texto de Eugenio Bucci, que ao levar para discutir uma ‘singela’ imagem familiar
desbotada pelo tempo, coloca em discussão, não apenas a leitura imagética, mas
percepção, de tempo, de sentimentos e a possibilidade narrativa da fotografia,
não como fim ou morte de um momento, mas como a presença. A função de memória da
fotografia que se transforma em eternos presentes e não simplesmente evoca o
passado: ‘O valor informativo de uma fotografia está cada vez menos no que ela
traz de sua suposta origem documental, histórica ou jornalística, e cada vez
mais naquilo que lhe é exterior, o olhar que a tem como objeto e que a tomará
como um elo para uma narrativa sentimental.’ Ou ainda: ‘O sujeito movido pelo
desejo inconsciente é que fica encarregado de construir a narrativa – que só
pode ser afetiva e psicologizada – das imagens que o cercam.’


Imperdível o texto de José Souza Martins e da compreensão sociológica do
papel da fotografia como vetor de discussão. Ao analisar uma imagem de Sebastião
Salgado, na invasão de uma fazenda no Paraná, o autor nos dá uma bela aula de
interpretação imagética, abrindo espaço para variadas possibilidades de leitura
a partir da própria imagem ou da construção do discurso imagético. Assim como o
texto de Cristiano Mascaro ao discorrer sobre o fotografar de Robert Frank, um
olhar aparentemente solto, mas que foi responsável por criar uma estética
própria: ‘Ao deixar de se posicionar diante dos acontecimentos como simples
espectadores isolados dos fatos, como era comum então, para se tornar
protagonistas da trama, invadindo o centro da cena e construindo imagens
carregadas de subjetividade.’


Uma bela idéia, um belo elenco de profissionais, fantástica possibilidade de
discutir fotografia. Um resultado que deixa a desejar. Pena!’


 


LIVRO
Roberto Godoy


Uma visão sobre as guerras do futuro


‘O empresário Erik Prince costuma dizer que o formato das forças armadas,
novas e modernas, está sendo desenhado na sala de situação da sua empresa, a
Blackwater Worldwide. Uma corporação e tanto, que opera cerca de 900 contratos
do governo americano em praças pesadas como o Iraque e o Afeganistão. Até abril,
quando vários desses compromissos foram renovados com empenho pessoal do
presidente George W. Bush, o faturamento chegava a US$ 1,3 bilhão. Prince vende
um dos produtos mais caros do mundo – serviços militares privados, a maneira
requintada de Wall Street definir o trabalho feito por combatentes
profissionais, os mercenários.


Prince é um sujeito elegante, ex-integrante da tropa Seal, o mais avançado
time de forças especiais dos Estados Unidos. Em boa forma aos 39 anos, ele manda
fazer seus ternos de US$ 5 mil no mesmo alfaiate que corta as fardas dos
empertigados oficiais marines escalados para enfeitar as festas governamentais
em Washington. em 2 de outubro de 2007, Erik entrou na Sala de Audiências
Públicas do Congresso e impressionou pelo estilo. Horas depois, ainda mantendo a
atitude marcial, porém mais pálido e visivelmente constrangido, deixou o
Capitólio sem ter explicado de forma convincente o que acontecera em Bagdá duas
semanas antes. Era um domingo, 16 de setembro, o dia em que os homens da
Blackwater mataram 17 civis iraquianos em uma rua estreita do distrito de Nasur.
De acordo com o Federal Bureau of Investigation, o FBI, 14 das vítimas ‘foram
atingidas sem motivo’. Uma testemunha, o policial de trânsito Ali Salman,
declarou ter visto ‘um homem, enorme, caucasiano’ descer de um dos blindados
Mamba da companhia ‘e começar a atirar a esmo’. A primeira rajada feriu de morte
uma médica de meia idade, Mahasian Rubaie e seu filho mais novo, Ahmed, calouro
da faculdade pública de Medicina, fechada em 2003, reaberta em 2006. Os outros
foram caindo ao longo de intermináveis 20 minutos. O guarda Salman lembra do
horror: ‘não houve muitas balas perdidas, as pessoas foram atingidas com
precisão.’


A crise sangrenta do ano passado é o ponto de referência do livro Blackwater
– A Ascensão do Exército Mercenário Mais Poderoso do Mundo, do jornalista
americano Jeremy Scahill, mas não é a revelação mais inquietante. Isso corre por
conta de certas constatações apuradas por Scahill para essa grande reportagem,
narrativa que se lê com o prazer e a respiração suspensa provocados por um
thriller de ficção.


Uma delas: as guerras do futuro próximo, com envolvimento de forças reduzidas
e cada vez mais especializadas, talvez sejam travadas por contingentes
mercenários. Quem estará no comando? Os controladores do maior dos interesses
implicados na luta, claro. Outra revelação: a Blackwater está na América Latina.
Participou em grande medida do processo que resultou na presença de mil soldados
de elite chilenos no Iraque. Também apóia a concorrente DynCorp – de forte
presença na Colômbia e no Peru – nas análises de inteligência em ações
antiguerrilha. A Blackwater comprou um Super Tucano, avião de ataque leve da
brasileira Embraer, por meio de uma subsidiária, a EP Aviation. A aeronave vai
ser usada para treinar pilotos paramilitares. Americanos, garantem. Pode ser.
Mas o fato é que a companhia, Scahill deixa claro, não se sente obrigada a
seguir acordos intergovernamentais ou a observar tratados de qualquer espécie. O
objetivo do grupo é produzir lucro milionário para seus controladores.


Erik Prince é um republicano convicto e católico convertido, pai de 6 filhos.
Divorciado, casou-se novamente. Ele não gosta que ‘os rapazes da firma’ sejam
chamados de mercenários. ‘Mercenários são combatentes profissionais que
trabalham para quem oferece o melhor salário; nós somos americanos garantindo a
segurança de americanos em zonas de risco’, declarou em entrevista coletiva. Na
ocasião apresentou números: em 18 mil missões realizadas não perdeu nenhum
cliente. Um deles é o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, alvo de cinco
atentados conhecidos. A contabilidade das ações registra cerca de 200 tiroteios
só em território iraquiano. Em 173 casos o fogo foi iniciado pelos homens da
Blackwater.


O salário médio pago aos 2,1 mil ‘colaboradores armados’ é de US$ 600 ao dia
quando estão fora das áreas de combate. O soldo pula para US$ 1 mil diários no
teatro de operações. Sob fogo ou risco, a conta final aumenta em mais 30% a
título de bônus. Um piloto de aviões cargueiros do tipo C-130 Hércules pode
tirar US$ 10 mil por mês realizando um vôo por semana.


No passado recente, meados do século 20, corporações do mesmo tipo nasciam
das boas intenções de ex-militares regulares empenhados em atender clientes que
podiam ser encontrados na África, América Central e Indochina. As iniciativas
duravam pouco. A Blackwater é uma empresa sólida, disse Prince ao congressista
Henry Waxman, democrata da Comissão de Reforma Governamental, durante a
audiência de outubro. ‘Viemos para ficar’, destacou. ‘Por quanto tempo?’,
ironizou Waxman. ‘Para sempre’, respondeu o mercenário Prince.


Blackwater


Jeremy Scahill


Tradução de C. Carina e Ivan Kuck


Cia. das Letras, 548 págs., R$ 52′


 


 


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