Não ir do discurso em direção a um núcleo interior e oculto, em direção a um pensamento ou a uma significação que se manifestariam nele; mas, a partir do próprio discurso de sua aparição e de sua regularidade, chegar a suas condições externas de possibilidade […]. (Michel Foucault, L’ordre du discours, Gallimard, 1971)
Informação, comunicação, mídias, eis as palavras de ordem do discurso da modernidade. Cada vez que as palavras ficam na moda, passam a funcionar como emblema, criando a ilusão de que têm um grande poder explicativo, quando, na verdade, o que domina muitas vezes é a confusão, isto é, a ausência de discriminação dos fenômenos, a falta de distinção entre os termos empregados, o déficit na explicação.
Uma primeira distinção se impõe se quisermos tratar dessas questões: ‘informação’ e ‘comunicação’ são noções que remetem a fenômenos sociais; as mídias são um suporte organizacional que se apossa dessas noções para integrá-las em suas diversas lógicas – econômica (fazer viver uma empresa), tecnológica (estender a qualidade e a quantidade de sua difusão) e simbólica (servir à democracia cidadã). É justamente neste ponto que se tornam objeto de todas as atenções: do mundo político, que precisa delas para sua própria ‘visibilidade social’ e as utiliza com desenvoltura (e mesmo com certa dose de perversidade) para gerir o espaço público – apesar da desconfiança que as mídias suscitam, por serem um potente produtor de imagens deformantes; do mundo financeiro, que vê nas mídias uma fonte de lucro em razão de suas ligações com a tecnologia e o marketing em escala mundial; do mundo das ciências e da tecnologia, que vê aí a ocasião de aperfeiçoar os meios de transmissão dos sinais e desenvolver suas próprias atividades de pesquisa; do mundo das ciências humanas e sociais, dentre as quais, a Sociologia, que se interessa pelo impacto das mídias sobre a opinião pública, a Semiologia, que estuda os jogos de mise-en-scène (encenação) da informação, a Filosofia e a Antropologia Social que se interrogam sobre a constituição dos vínculos sociais nas comunidades modernas sob a influência das mídias; do mundo educativo que se pergunta sobre o lugar que as mídias devem ocupar nas instituições escolares e de formação profissional, de modo a formar um cidadão consciente e crítico com relação às mensagens que os rodeiam; enfim, do próprio mundo midiático que, preso a um jogo de espelhos (ele reflete o espaço social e é refletido por este), é levado a observar-se, estudar-se e autojustificar-se.
Lógica econômica e lógica tecnológica são certamente incontornáveis, mas é a lógica simbólica que nos interessa aqui: trata-se da maneira pela qual os indivíduos regulam as trocas sociais, constroem as representações dos valores que subjazem a suas práticas, criando e manipulando signos e, por conseguinte, produzindo sentido. Não deixa de ser paradoxal, no final das contas, que seja essa lógica que governe as demais.
O estudo do sentido social através do funcionamento dos signos é algo complexo, pois o sentido ‘põe em jogo a mistura, a pluralidade, o fato de que vivemos em muitas esferas ao mesmo tempo, de que circulamos de uma esfera para outra’. Justamente, os meios utilizados para analisar o sentido social não se limitam a uma única disciplina: embora as ciências humanas e sociais, na época atual, caracterizem-se por uma forte especialização (tornando-se cada vez mais ‘duras’), caracterizam-se, ao mesmo tempo, por uma tentativa de conexão entre disciplinas para tentar dar conta da complexidade de seu objeto. É por isso que, mesmo que nosso estudo tenha uma dominância semiodiscursiva, sua reflexão se estende a outras disciplinas para propor interpretações plurais.
Sobre algumas idéias preconcebidas
Abordar as mídias para tentar analisar o discurso de informação não é uma tarefa fácil. É mesmo mais difícil do que abordar o discurso político. Isso porque, enquanto se admite no mundo político, de maneira geral, que o discurso aí manifestado está intimamente ligado ao poder e, por conseguinte, à manipulação, o mundo das mídias tem a pretensão de se definir contra o poder e contra a manipulação. Entretanto, as mídias são utilizadas pelos políticos como um meio de manipulação da opinião pública – ainda que o sejam para o bem-estar do cidadão; as mídias são criticadas por constituírem um quarto poder; entretanto, o cidadão aparece com freqüência como refém delas, tanto pela maneira como é representado, quanto pelos efeitos passionais provocados, efeitos que se acham muito distantes de qualquer pretensão à informação.
Sendo assim, por que analisar o discurso midiático, se as mídias parecem viver uma lógica comercial onde só haveria lugar para estudos econômicos, tecnológicos ou de marketing? Seria para torná-las mais performáticas e mais rentáveis nos mercados mundiais? É claro que a resposta é negativa para quem acredita que, para além da economia e da tecnologia, há o simbólico, essa máquina de fazer viver as comunidades sociais, que manifesta a maneira como os indivíduos, seres coletivos, regulam o sentido social ao construir sistemas de valores. Sendo o papel do pesquisador em ciências humanas e sociais o de descrever os mecanismos que presidem a esse simbólico e as diferentes configurações que o tornam visível, estudos como o que ora apresentamos se justificam sob a condição precisamente de não cair na armadilha das falsas aparências. Isso porque é próprio de uma comunidade social produzir discursos para justificar seus atos, mas não está dito que tais discursos revelam o verdadeiro teor simbólico desses atos: muitas vezes o mascaram (de maneira inconsciente, até mesmo de boa-fé), por vezes o pervertem, ou mesmo o revelam em parte. É, pois, com a prudência, com a incredulidade de um São Tomé, que é necessário prosseguir na exploração do discurso de informação midiática e começar talvez por colocar alguns pontos nos is.
As mídias não são uma instância de poder. Não dizemos que são estranhas aos diferentes jogos do poder social, dizemos que não são uma ‘instância de poder’. O poder nunca depende de um único indivíduo, mas da instância na qual se encontra o indivíduo e da qual ele tira sua força. Essa instância deve ter a capacidade de gerir e influenciar os comportamentos dos indivíduos que vivem em sociedade e, para isso, deve dotar-se de meios restritivos: regras de comportamento, normas, sanções. Para a justiça, serão os códigos das leis, para o exército, regras disciplinares e táticas, para a Igreja, leis universais de moralidade. É preciso, pois, para que haja poder, que exista da parte da instância em questão uma vontade coletiva de guiar ou orientar os comportamentos, em nome de valores compartilhados (assim, o fim justifica os meios), vontade que é representada por autoridades (o legislador e seus mandatários, a hierarquia militar ou eclesiástica) e que é tanto mais eficaz quanto mais aceita exercer seu direito à sanção.
As mídias constituem uma instância que não promulga nenhuma regra de comportamento, nenhuma norma, nenhuma sanção. Mais que isso, as mídias e a figura do jornalista não têm nenhuma intenção de orientação nem de imposição, declarando-se, ao contrário, instância de denúncia do poder. Sendo assim, de onde vem a designação de ‘quarto poder’? Seria porque se presta, sem querer, a uma manipulação das consciências?
As mídias manipulam tanto quanto manipulam a si mesmas. Para manipular, é preciso um agente da manipulação que tenha um projeto e uma tática, mas é preciso também um manipulado. Como o manipulador não tem interesse em declarar sua intenção, é somente através da vítima do engodo que se pode concluir que existe uma manipulação. A questão, então, é saber quem é o manipulado, fato que, para as mídias, remete à questão de saber quem é o alvo da informação. Para quem fala ou escreve o jornalista?
Se, numa primeira aproximação, informar é transmitir um saber a quem não o possui, pode-se dizer que a informação é tanto mais forte quanto maior é o grau de ignorância, por parte do alvo, a respeito do saber que lhe é transmitido. Assim sendo, a informação midiática está diante de uma contradição: se escolhe dirigir-se a um alvo constituído pelo maior número de receptores possível, deve basear-se no que se chama de ‘hipótese fraca’ sobre o grau de saber desse alvo e, logo, considerar que ele é pouco esclarecido. Mas como o que caracteriza ‘o maior número’ é uma heterogeneidade qualitativa, sendo constituído de pessoas diversamente esclarecidas (entre o mais e o menos, a maioria se encontra num nível médio), a informação será talvez ‘forte’ para alguns, que poderão considerar-se satisfeitos, mas será fraca para os demais. Como fazer então para atingir a maioria? Se a instância midiática escolhesse fornecer uma informação com alto teor de saber, partiria de uma hipótese forte sobre o grau de saber do alvo. Este, já sendo bastante esclarecido, seria quantitativamente reduzido. Se agisse assim, a mídia estaria às voltas com um problema de ordem econômica: sustentar-se com um número reduzido de receptores.
As mídias acham-se, pois, na contingência de dirigir-se a um grande número de pessoas, ao maior número, a um número planetário, se possível. Como fazê-lo a não ser despertando o interesse e tocando a afetividade do destinatário da informação? A não ser distribuindo ‘no mundo inteiro as mesmas simplificações e os mesmos clichês’? As mídias estariam se violentando e, sem se darem conta disso, tornando-se manipuladoras. Daí que, num efeito de retorno, tornam-se automanipuladas, formando um círculo vicioso, ‘o da mídia pela mídia, tal como outrora o foi o da arte pela arte’.
As mídias não transmitem o que ocorre na realidade social, elas impõem o que constroem do espaço público. A informação é essencialmente uma questão de linguagem, e a linguagem não é transparente ao mundo, ela apresenta sua própria opacidade através da qual se constrói uma visão, um sentido particular do mundo. Mesmo a imagem, que se acreditava ser mais apta a refletir o mundo como ele é, tem sua própria opacidade, que se descobre de forma patente quando produz efeitos perversos (imagens espetaculares da miséria humana) ou se coloca a serviço de notícias falsas (Timisoara, o cormorão da Guerra do Golfo). A ideologia do ‘mostrar a qualquer preço’, do ‘tornar visível o invisível’ e do ‘selecionar o que é o mais surpreendente’ (as notícias ruins) faz com que se construa uma imagem fragmentada do espaço público, uma visão adequada aos objetivos das mídias, mas bem afastada de um reflexo fiel. Se são um espelho, as mídias não são mais do que um espelho deformante, ou mais ainda, são vários espelhos deformantes ao mesmo tempo, daqueles que se encontram nos parques de diversões e que, mesmo deformando, mostram, cada um à sua maneira, um fragmento amplificado, simplificado, estereotipado do mundo.
Com isso, as mídias não são a própria democracia, mas são o espetáculo da democracia, o que talvez seja, paradoxalmente, uma necessidade. Com efeito, o espaço público como realidade empírica é compósito: desdobram-se, aí, práticas diversas, sendo umas de linguagem, outras de ação, outras de trocas e de organização em grupos de influência. Isso ocorre no âmbito de cada uma das três esferas que constituem as sociedades democráticas: a do político, a do civil e a das mídias. Tais esferas interferem umas nas outras sem que se possa dizer qual delas domina. Assim, os atores de cada uma delas constroem para si sua própria visão do espaço público, como uma representação que tomaria o lugar da realidade.
As mídias sob o olhar das ciências humanas
Com relação aos fenômenos sociais, quaisquer que sejam, há sempre várias análises possíveis que dependem do ponto de vista que se escolhe e da disciplina que lhe serve de apoio.
De um ponto de vista empírico, pode-se dizer que as mídias de informação funcionam segundo uma dupla lógica: uma lógica econômica que faz com que todo organismo de informação aja como uma empresa, tendo por finalidade fabricar um produto que se define pelo lugar que ocupa no mercado de troca dos bens de consumo (os meios tecnológicos acionados para fabricá-lo fazendo parte dessa lógica); e uma lógica simbólica que faz com que todo organismo de informação tenha por vocação participar da construção da opinião pública.
Considerar essas duas lógicas implica uma série de questões. Existe ou não uma forte relação entre elas? Afinal, talvez essa relação seja apenas de coincidência, pelo fato de coexistirem no seio da mesma instância social (a empresa), funcionando cada uma de maneira independente. Se existe tal relação, qual é a sua natureza? Há um ou vários tipos de correlações? Essas correlações são apenas circunstanciais? São de causalidade ou de reciprocidade? Em outras palavras, pode-se afirmar e provar que tal sistema de hierarquização do trabalho no âmbito de uma cadeia de televisão, tal modo de contratação nessas empresas, tal tipo de contrato de emprego ou tal procedimento na fabricação de um jornal (por exemplo, a passagem da fotocomposição à publicação assistida por computador, e depois à digitalização) têm uma incidência sobre o sentido social inerente à informação midiática? Pode-se concluir que haja uma influência da lógica econômica sobre a lógica simbólica? Sendo assim, essa influência é direta ou indireta?
Mas falar de ‘mercado’ é falar de um público consumidor, logo, da possibilidade de atingi-lo num sistema econômico de livre concorrência. Assim sendo, coloca-se a questão, para cada organismo de informação, de como capturar esse público, o que não é fácil determinar. Por isso, ao mesmo tempo, recoloca-se a questão – mas dessa vez de maneira inversa – da relação que se estabelece entre as duas lógicas: a lógica simbólica pode ajudar a lógica econômica? Correlativamente, que garantia pode-se ter de que o input da máquina de informar produzirá como output o efeito pretendido? Esse efeito, em si, em que se baseia? Em outros termos, o que garante à instância midiática que o tratamento da informação que ela propõe corresponde realmente ao que o público espera? E mais ainda: o que garante, em todo ato de comunicação, que haja correspondência – sem falar em coincidência – entre os efeitos que a instância de enunciação almeja produzir na instância de recepção e os efeitos realmente produzidos?
De um ponto de vista analítico, pode-se constatar que as mídias de informação são objeto de estudos diferentes. Uns, de filiação mais especulativa, como os estudos filosóficos e antropológicos, inserem-nas numa problemática geral que se interroga a respeito do valor simbólico dos signos, seu lugar na sociedade, as semelhanças e diferenças que as mídias apresentam ao se inscreverem em espaços culturais diversos, sua perenidade ou sua transformação quando observadas através do tempo; outros estudos, de filiação mais experimental, como os estudos psicossociológicos, destacam alguns componentes desse objeto, para estudar as operações psicossociocognitivas necessárias para que os sujeitos produzam ou consumam os signos de informação; outros, enfim, de filiação empírico-dedutiva, como os estudos sociológicos e semiológicos que partem de uma teoria do recorte do objeto empírico (corpus), valem-se de instrumentos de análise que lhes permitem explicar os efeitos de significância que tal objeto produz em situação de troca social.
Nenhum desses tipos de abordagem exclui os demais, sendo que toda abordagem disciplinar, por definição, é parcial. Mas uma das características das ciências humanas é a possível e necessária articulação entre diferentes abordagens, o que caracteriza a interdisciplinaridade.
Há alguns anos, Bernard Miège, constatando os diferentes tipos de estudos que se desenvolviam a respeito das mídias e que ele classificava como ‘análises da conjuntura’, ‘abordagens mono-disciplinares’ e aplicações de ‘teorias gerais baseadas num paradigma dominante’, apontava o ‘impasse’ dessa situação e estimava que só há lugar para ‘problemáticas transversais e parciais que permitam articular a necessidade de elaboração teórica […], e os dados empíricos […], único meio de dar conta da complexidade das situações de comunicação’. E propunha uma problemática das ‘lógicas sociais’, seguindo o modelo da teoria dos campos definida por Pierre Bourdieu. Concordamos com essa conclusão, sem, no entanto, considerar que haja um impasse. Propomos um outro ponto de vista interdisciplinar que exige que se distinga, de início, os diferentes lugares de construção do sentido da máquina midiática – para melhor definir a pertinência dos diferentes estudos a respeito das mídias e pensar melhor uma possível articulação entre eles.
A máquina midiática e seus três lugares de construção do sentido
Nosso quadro de referência teórica é um modelo de análise de discurso que se baseia no funcionamento do ato de comunicação, que consiste numa troca entre duas instâncias: de produção e de recepção. Assim, o sentido resultante do ato comunicativo depende da relação de intencionalidade que se instaura entre essas duas instâncias. Isso determina três lugares de pertinência: o da instância de produção, submetida a certas condições de produção; o da instância de recepção, submetida a condições de interpretação; o do texto como produto, que se acha, enquanto tal, submetido a certas condições de construção.
No que tange à máquina midiática, a primeira instância é representada pelo produtor de informação (o organismo de informação e seus atores), a instância de recepção pelo consumidor da informação (diferentes públicos: leitores, ouvintes, telespectadores) e o produto pelo texto midiático (artigo de jornal, boletim radiofônico, telejornal etc.).
Lugar das condições de produção
Esse lugar comporta dois espaços: um que qualificamos como ‘externo-externo’, o outro como ‘externo-interno’.
O espaço externo-externo compreende as condições socioeconômicas da máquina midiática enquanto empresa: sua organização é regulada por um certo número de práticas mais ou menos institucionalizadas, cujos atores possuem status e funções a elas relacionados. Mas, ao mesmo tempo, os atores dessa empresa precisam pensar e justificar suas práticas, produzindo discursos de representação que circunscrevem uma intencionalidade orientada por efeitos econômicos. É o espaço de hierarquização do modo de trabalho de cada organismo midiático, seus modos de funcionamento e de contratação, suas escolhas de programação.
Um exemplo, entre outros, nesse domínio é ‘a aliança selada entre dois antigos irmãos inimigos, Le Point e L’Express, por meio de uma participação de capital e uma parceria industrial’. Essa aliança entre dois semanários, de orientações ideológicas diversas, prova que, nesse espaço, o alvo (o público) não é considerado por seu saber ou por seu desejo de saber, mas, confundindo todos os saberes e desejos, por comportamentos comerciais para os quais ‘são investidas somas colossais e inventados numerosos objetos de sedução para conquistar os leitores, não enquanto tais, mas como consumidores’. O que conta, no caso, é que os dois semanários totalizam oitocentos mil exemplares que atingem um público de aproximadamente quatro milhões de leitores.
A análise das práticas e das representações desse espaço depende de uma problemática sociológica. Daí a grande quantidade de estudos: uns, de orientação econômica, sobre os preços, a difusão, os circuitos de distribuição e as operações de fusões financeiras buscando uma eficácia maior para os organismos de informação; outros, sobre os modos de organização da profissão, que permitem observar, por exemplo, ‘a diminuição do número de especialistas nas redações, e mesmo seu desaparecimento nas redações da mídia audiovisual’, o que tem grande influência sobre o tratamento da informação; outros, ainda, sobre os discursos que definem as intenções e justificam as práticas organizacionais (ver as declarações dos diretores e dos chefes de redação dos jornais e dos canais de televisão).
O segundo espaço, o externo-interno, compreende as condições semiológicas da produção – aquelas que presidem à própria realização do produto midiático (o artigo de jornal, a paginação, o telejornal, o programa de rádio). Para tal realização, um jornalista, um diretor e um chefe de redação conceitualizam o que vão ‘pôr em discurso’ com a ajuda dos meios técnicos de que dispõem, buscando atender a certas questões: o que pode incitar os indivíduos a se interessar pelas informações difundidas pelas mídias? É possível determinar a natureza de seu interesse (segundo a razão) ou de seu desejo (segundo a afetividade)? Pode-se eventualmente medir os graus desse interesse ou desse desejo? Como levar em conta, nesse espaço de motivações sociais, as diferenças entre um alvo dito ‘esclarecido’ – que já dispõe de informações e meios intelectuais para tratá-las e que terá exigências maiores quanto à confiabilidade da informação fornecida e quanto à validade dos comentários que a acompanham – e um alvo dito ‘de massas’, que terá exigências de confiabilidade e de validade menores e se prenderá mais a efeitos de dramatização e a discursos estereotipados? Esse segundo espaço constitui um lugar de práticas, e também se acha pensado e justificado por discursos de representação sobre o ‘como fazer e em função de qual visada’ – para um destinatário que pode ser cogitado apenas como alvo ideal, receptivo, embora impossível de dominar totalmente. Eis porque se dirá que tais práticas e tais discursos circunscrevem uma intencionalidade orientada por ‘efeitos de sentidos visados’, pois a instância de produção não tem uma garantia de que os efeitos pretendidos corresponderão àqueles realmente produzidos no receptor.
Analisar as condições de produção desse espaço depende de uma problemática sociodiscursiva que permite estudar as práticas da máquina informativa relacionando-as aos discursos que as justificam. Objetiva-se discernir como é acionada uma ‘semiologia da produção’, isto é, uma semiologia do fazer da instância de enunciação cuja busca não diz respeito nem aos efeitos possíveis da construção do produto, nem aos efeitos realmente produzidos sobre o receptor; o que esta semiologia da produção busca são os ‘efeitos esperados’ por tal instância.
Pode-se avançar a hipótese de que, entre os espaços externo-externo e externo-interno do lugar das condições de produção, se estabelece certo jogo de influência recíproca sem que se possa determinar a priori em que ele consiste.
Lugar das condições de recepção
Esse lugar, como o primeiro, se estrutura em dois espaços ‘interno-externo’ e ‘externo-externo’. No primeiro se encontra o destinatário ideal – aquele que em comunicação se designa como alvo – que é imaginado pela instância midiática como suscetível de perceber os efeitos visados por ela. Esse espaço não é mais do que o lugar dos ‘efeitos esperados’ que mencionamos anteriormente. No segundo se encontra o receptor real, o público, a instância de consumo da informação midiática, que interpreta as mensagens que lhe são dirigidas segundo suas próprias condições de interpretação.
Analisar as condições de interpretação desse espaço depende de uma problemática sociológica e psicossociológica. Trata-se aqui de se interrogar sobre a natureza e os comportamentos da instância de recepção, atividade delicada, pois convém não confundir dois tipos de efeitos: os que concernem a fatos de consumo e atitudes apreciativas (índices de satisfação), tudo aquilo que é analisado através de sondagens, pesquisas quantitativas de audiência e estudos de impacto; e os que concernem aos processos psicossociocognitivos de percepção, de memorização, de retenção, de discriminação, de avaliação e de compreensão do que é percebido.
Esses dois tipos de comportamentos exigem estudos apropriados. Por um lado, estudos experimentais muito específicos sobre os comportamentos esperados da instância alvo, que apelam para categorias cognitivas muito especializadas, embora de alcance limitado. Por outro lado, estudos sobre os comportamentos do público de cunho muito geral, que, na maior parte do tempo, recorrem a uma sociologia clássica que transforma noções de estruturação social em categoria descritiva fixa, e que ‘em sua ontologia objetivista, concebe a opinião pública como uma entidade objetiva do mundo real: seja como um estado de espírito coletivo (ainda que divergente), seja como um ator da cena social’.
É esse ‘objetivismo’ da sociologia que deu lugar à produção de um de seus sucedâneos: a sondagem. As mídias, utilizando as sondagens como o principal instrumento de medida do alvo, tornam-se reféns deste recurso, mesmo quando manifestam, com relação a ele, uma certa distância. Na verdade: (1) as próprias mídias são os financiadores das sondagens (procuram um espelho); (2) não podem deixar de publicar os resultados das sondagens (exibem o espelho); (3) tentam esquivar-se ao fazer comentários de denegação (tentam quebrar o espelho). Por isso mesmo, mostram que são impotentes para encontrar um outro instrumento de medida. Esse é um dos efeitos de circularidade da máquina midiática: estar condenada a fabricar informação inclusive sobre si própria.
Lugar das restrições de construção do produto
É esse o lugar em que todo discurso se configura em texto, segundo uma certa organização semiodiscursiva feita de combinação de formas, umas pertencentes ao sistema verbal, outras a diferentes sistemas semiológicos: icônico, gráfico, gestual. O sentido depende, pois, da estruturação particular dessas formas, cujo reconhecimento pelo receptor é necessário para que se realize efetivamente a troca comunicativa: o sentido é o resultado de uma co-intencionalidade. Mas como, por um lado, a instância de produção só pode imaginar o receptor de maneira ideal, construindo-o como o destinatário-alvo que acredita ser adequado a suas intenções, e, ao visar produzir efeitos de sentido, não tem certeza se esses serão percebidos, e como, por outro lado, a instância de recepção constrói seus próprios efeitos de sentido que dependem de suas condições de interpretação, conclui-se que o texto produzido é portador de ‘efeitos de sentido possíveis’, que surgem dos efeitos visados pela instância de enunciação e dos efeitos produzidos pela instância de recepção. Com isso, toda análise de texto nada mais é do que a análise dos ‘possíveis interpretativos’. No que tange à comunicação midiática, isso significa que qualquer artigo de jornal, qualquer declaração num telejornal ou num noticiário radiofônico, está carregada de efeitos possíveis, dos quais apenas uma parte – e nem sempre a mesma – corresponderá às intenções mais ou menos conscientes dos atores do organismo de informação, e uma outra – não necessariamente a mesma – corresponderá ao sentido construído por tal ou qual receptor.
Analisar o produto acabado depende de uma problemática semiodiscursiva que pressupõe o estudo do discurso midiático sob um enfoque em que serão examinados os sentidos provenientes da estruturação do texto e os discursos de representação, tanto aqueles que circulam no lugar de produção quanto os que caracterizam o lugar das condições de recepção. Esses dois tipos de discursos de representação constituem os imaginários sociodiscursivos que alimentam e tornam possível o funcionamento da máquina midiática.
A distinção que propomos, entre os três lugares de construção do sentido, permite explicar a informação como algo que não corresponde apenas à intenção do produtor, nem apenas à do receptor, mas como resultado de uma co-intencionalidade que compreende os efeitos visados, os efeitos possíveis, e os efeitos produzidos. Esses três lugares se definem, portanto, cada um em relação aos demais como num jogo de espelhos em que as imagens incidem umas sobre as outras.
Ponto de vista de análise
É através desse enfoque, que pode reunir disciplinas de cunho sociológico, psicossocial e sociodiscursivo, que se definirá a comunicação midiática como fenômeno de produção do sentido social. Mas sem ingenuidade. O objeto da ciência também é construído, e o discurso explicativo que o acompanha é pertinente tão-somente a seus próprios pressupostos teóricos. Qualquer discurso de análise que pretendesse descrever a totalidade de uma realidade empírica seria mistificador. O discurso de análise que propomos tem as seguintes propriedades: construção racional de seu objeto segundo critérios precisos (construção do corpus), o que permite conferir os resultados das análises; determinação de um instrumento de análise que sirva de base às interpretações produzidas ulteriormente; processo de interpretação que implique uma crítica social, não como ideologia (se a crítica fosse direcionada, perverteria o objetivo científico), mas como processo que faz descobrir o não-dito, o oculto, as significações possíveis que se encontram por trás do jogo de aparências.
Nas mídias, os jogos de aparências se apresentam como informação objetiva, democracia, deliberação social, denúncia do mal e da mentira, explicação dos fatos e descoberta da verdade. Entretanto, e por isso mesmo, os discursos de explicação não podem pretender à verdade absoluta e menos ainda à profecia. Nenhuma sociedade evolui pela simples ação de palavras de ordem – ainda que fossem provenientes de um sistema totalitário; de predições – ainda que fossem baseadas em análises científicas; ou de profecias – ainda que tivessem a força das crenças religiosas (‘A história do mundo é um cemitério de profecias que fracassaram’). O papel do analista é o de observar a distância, para tentar compreender e explicar como funciona a máquina de fabricar sentido social, engajando-se em interpretações cuja relatividade deverá aceitar e evidenciar. Apresentar como verdade absoluta uma explicação relativa e acreditar nela seria arrogância. Fazê-lo sem acreditar seria cinismo. Entretanto, entre arrogância e cinismo, há lugar para uma atitude que, sem ignorar as convicções fortes, procure compreender os fenômenos, tente descrevê-los e proponha interpretações para colocá-los em foco no debate social.
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Professor na Universidade de Paris-Nord (Paris 13), diretor-fundador do Centro de Análise do Discurso (CAD), autor de Discurso político e co-diretor, com Dominique Maingueneau, do Dicionário de análise do discurso