Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Coletânea debate a redistribuição do saber

‘Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida’. (Deleuze, Crítica e clínica).

Espatifando todo tipo de estagnação acerca do que quer que seja, as trans-formações comunicacionais contemporâneas trouxeram novos desafios e tarefas inéditas para a cultura. Fluidas, escorregadias e territorialmente movediças, as tecnologias da informação liquefizeram as fórmulas engessadas (convictas?) da chamada cultura de massa. Quer dizer, tudo agora está em fluxo: a única coisa que dura é a mudança.

Hoje não convém mais, aliás, sequer se referir ao mundo ou a qualquer objeto seu como ‘já-dado’. Tudo está ‘sendo’, ‘se dando’ em intercâmbios sucessivos e efêmeros: agenciamentos e dispositivos têm produzido novas sínteses e potencializado novos procedimentos analíticos, ético-estéticos e político-econômicos. O ‘real’ revela-se aberto, ou melhor, escancarado aos múltiplos cruzamentos de sentidos sociais, materiais, subjetivos.

Atentos a essas discussões, os pesquisadores e professores André Brasil, Carlos Falci, Eduardo de Jesus e Geane Alzamora, da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC-Minas, organizaram e recentemente lançaram, a partir do projeto de pesquisa ‘Jornalismos culturais na internet’, uma coletânea de artigos intitulada Cultura em fluxo: novas mediações em rede.

Desenvolvida coletivamente por profissionais da comunicação e pesquisadores de várias áreas do conhecimento a partir de suas discussões num site-referência, a publicação busca refletir sobre as experiências de webjornalismo e, para além dele, ‘iniciativas espontâneas de mediação cultural que se operam hoje na internet’.

Analítica dos saberes

É no espaço cibernético, aliás, que os paradigmas até então considerados meramente científicos ou tecnológicos merecem ser reavaliados, expandidos, reinventados. Mais do que em máquinas, é preciso pensar em subjetivações. Como asseverou F. Guattari acerca de um novo paradigma estético (Caosmose): face às transformações contemporâneas, ‘dever-se-á admitir que cada indivíduo, cada grupo social veicula seu próprio sistema de modelização de subjetividade’.

Dessa expansão permanente, atravessada por inúmeras tensões e instâncias de radicalização, tudo é colocado em xeque: é a partir de novas demarcações – ‘cognitivas, mas também míticas, rituais, sintomatológicas’ – que nos posicionamos em relação aos nossos afetos e nossas angústias. Indagamos sobre a nossa própria identidade, fixando outras fronteiras, elaborando novas maneiras de pensar, sentir, agir.

Por isso, penso, a idéia de um trabalho coletivo – coletânea vem do latim collectanea e significa conjunto de atos diversos, escritos variados – é muito bem-vinda. Pois assim o parto é plural, infundindo a impressão de ondulação, de oscilação, de espaço ilimitado que não aceita o rótulo nem a tipificação do cânone – ou será a canonização do tipo? Tudo vibra e jorra de um caos digno de um corpo coletivo: caminhamos agora para uma identidade nômade, interativa, autocrítica, transdisciplinar e dinâmica, na medida em que ‘as palavras e as coisas’ (aqui me refiro especificamente a Foucault) se inserem num campo de forças conceituais, disciplinares e ideológicas a ser reinterpretado.

Navegar apaixonado em busca de uma redistribuição do campo do saber, eis a presença progressiva do estatuto cultural em que se ergue o pensamento numa era vigorada pela ciência e pela técnica. Donde assomam os desafios do navegante: redescobrir a cultura como o modo próprio e específico da existência dos seres humanos, tornando-se, assim, uma analítica dos saberes, uma metaepistemologia do universo discursivo das Ciências Humanas e daquelas que com elas se cruzam.

Ao encontro das intensidades

Tudo remete a um pensamento enviesado para analisar valores, discursos e representações constitutivas do modo de ser ocidental. Migrar para outras paragens. Remodelar, extraviar, extravasar todos os poros. Isso exige uma espécie de grandeza, para não dizer uma troca de pele, devendo-se também a ela ser incorporada a noção de ‘força da vontade, a dureza e a capacidade para decisões largas’ (provocação de Nietzsche), no sentido de se apontarem novas perspectivas, mais plurais e diversificadoras, abandonando toda certeza, toda ‘verdade definitiva’, todo ‘fundamento último’ e ‘causa primeira’.

A propósito (e aqui chegamos ao mote de Cultura em fluxo), isso coincide com o devir enquanto incessante vir a ser: urge hoje experimentar o mundo com um olhar criativo e sensível; é chegado o momento de reinterpretar a vida com um sentimento estético, momento em que a linguagem mais se experimenta, pois sempre desperta mais uma vez, instigando o artista perenemente a criar.

Diversidade na unidade. Novas mediações em rede. Ao encontro dos leitores, dos indivíduos, dos grupos e também das intensidades e dos desejos de quem sensibilidade tiver.

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Poeta, ensaísta e professor na Faculdade de Comunicação e Artes da PUC-Minas