Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo da conjectura e da suposição

A revista Veja está inaugurando um novo modo de fazer jornalismo: o jornalismo de suposição e conjectura. Na matéria intitulada ‘A guerra nos porões’ (edição nº 1956, de 17/5/ 2006), em seis colunas de texto, a revista utilizou nada menos de 43 verbos, expressões verbais ou outras palavras que indicam apenas possibilidades ou hipóteses, não fatos.

Numerosos verbos são utilizados no tempo condicional ou futuro do pretérito, que apenas indicam possibilidades, tais como ‘manteriam’, ‘comprovariam’, ‘seria’, ‘daria’, ‘levaria’ e outros. A revista abusa também do condicional composto, como ‘poderia ter’, ‘teria dito’, ‘teria sido’, ‘poderia contar’.

Algumas vezes a revista prefere utilizar outras expressões verbais tais como ‘diz ter’, ‘está prestes’, ‘garante ter sofrido’, ‘existem evidências’, ‘tentar confirmar’. Outras vezes utiliza verbos no pretérito mais-que-perfeito simples ou composto em expressões tipo ‘fora obtido’, ‘fizera’, todas elas indicando puras conjecturas.

Como se fosse verdade

Há ainda inúmeras expressões que indicam simples suposições, tais como ‘existem evidências’, ‘supostas contas’, ‘dá uma idéia’, ‘possibilidades’ e outras. O uso de expressões condicionais pode ocorrer no jornalismo desde que seja um uso econômico, para ajudar o raciocínio do leitor. E ser seguido e sustentado, na mesma matéria, por afirmações concretas e verossímeis. Não é isso que ocorre no texto de Veja. Ao contrário, o raciocínio está todo sustentado em puras suposições. Além de camuflar posição política em jornalismo, ameniza a responsabilidade de quem fala. Especula e, simultaneamente, se acovarda.

Pior ainda: quando quer seduzir e convencer o leitor, a revista é afirmativa. É o que ocorre nos títulos, chamadas e legendas de fotos: a revista utiliza sempre os verbos no modo indicativo ou imperativo, que indicam relações de natureza ocorrencial. Evidentemente, isso não se dá por acaso. A revista faz uso intencional do tempo, modos e expressões verbais com o claro objetivo de construir suas teses, ainda que os fatos indiquem apenas hipóteses.

É mais grave ainda o fato de todo o raciocínio da matéria estar construído em torno de personagens que não merecem credibilidade enquanto fonte jornalística. O principal acusador, o banqueiro Daniel Dantas, é processado por fraude, negligência e arapongagem no Brasil e nos Estados Unidos. Outro, o espião Frank Holder, muda sua versão dos fatos na própria matéria, procurando outra explicação quando a primeira não se sustenta. Uma terceira fonte, o ex-ministro argentino José Luis Manzano, símbolo da corrupção em seu país, é acusado de chantageador. Mesmo assim, essas três personagens sustentam os argumentos da matéria.

Com muito mais prudência, na terça-feira (16/5), o Estado de S.Paulo relatava que, mesmo se existirem, as supostas contas e contratos precisariam ‘ser investigados com cuidado’. Esta mesma edição do Estadão publica uma nota de Daniel Dantas na qual ele classifica de inverossímil a lista de contas de petistas no exterior e nega ter encomendado qualquer tipo de investigação sobre pessoas do governo. Mas, na matéria da Veja, tudo é construído como se fosse verdade. A nota posterior do banqueiro só confirma a invenção, pela revista, do pior jornalismo: o ‘jornalismo de conjecturas’.

Ideologia camuflada

A questão não se resume, porém, a esta matéria específica nem a esta edição de Veja, que levantou tanta indignação nos meios profissionais e acadêmicos. Há tempos a revista optou por um jornalismo doutrinário, opinativo e partidário. Transformou-se em um ator ativo do cenário político brasileiro, muito mais contundente que qualquer partido político. Escolheu sua posição e atua como um personagem, tanto ou mais ativo que os partidos políticos.

Não há nenhum problema em tomar posição e intervir no cenário político. Participar de forma doutrinária dos debates é do livre exercício da democracia. Muitos partidos têm revistas, jornais e boletins que revelam suas posições. Mas não se pode disfarçar a doutrina política de jornalismo. Seguir anunciando que faz jornalismo objetivo e praticar especulação política é enganar cinicamente os leitores. É fingir uma coisa e fazer outra.

O relatório da Editora Abril de 2004 diz que o maior ativo do Grupo Abril é a sua credibilidade. Ora, para ter credibilidade é preciso praticar bom jornalismo, e para praticar bom jornalismo não é possível dar crédito a pessoas suspeitas, capazes de espionagem e chantagem para realizar transações comerciais. Não se consegue credibilidade fazendo um jornalismo de suposições e especulações. Especialmente em assuntos graves, capazes de afetar as instituições democráticas.

Não é possível ser doutrinário nem camuflar ideologia em jornalismo. Isso retira qualquer credibilidade da revista. A Editora Abril criou uma Secretaria Editorial que tem como missão zelar pela excelência editorial de suas revistas. O diretor é Sidnei Basile. Aguardamos o seu pronunciamento.

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Jornalista e professor da Universidade de Brasília, editor do site Mídia&Política e integrante da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi)