‘Nelson Tanure, meu rapaz.’ Era assim que o irmão Aquiles, diretor do Colégio Maristas, em Salvador, o chamava. E avisava:
‘A vida não é só jogar baba. E se você insistir, no futuro, quando crescer não saberá a diferença entre honra e desonra. Vai cometer crimes contra a legislação trabalhista e contra a organização do trabalho, vai fraudar a Receita Federal.’
Ontem, Tanure, você mandou o Klaus Kleber demitir Armênio Guedes e muitos outros colegas. Hoje, soube da notícia e fui comunicado verbalmente pelo Klaus Kleber que também estou entre os ‘dispensados’. A ditadura militar de 1964 acabou com a estabilidade no emprego e a partir de então as empresas podem demitir seus empregados. Mas, todas elas, com exceção das controladas por malfeitores, pagam os direitos dos demitidos: o salário do mês trabalhado, o aviso prévio, o FGTS, férias e 13º proporcional etc. etc.
Portanto, lembre do que o irmão Aquiles dizia. E leia A hora e a vez de Augusto Matraga, o nono e último conto de Sagarana, livro que marcou a estréia de Guimarães Rosa na literatura brasileira. O livro é de 1946 e conta a história da queda de um homem poderoso em busca de sua redenção: ‘P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!…’
Numa pesquisa que fiz na internet achei um texto interessante sobre o conto:
‘Augusto Matraga, foi criado por uma avó, que o queria padre. No entanto, de herança de pai covarde e tio criminoso, enveredou para o mal. A história de Guimarães Rosa ‘inicia-se em meio a uma festa de santo, em que, num leilão, Matraga arrebata por 50.000 réis uma prostituta, desagradando um sertanejo rude, grosseiro que estava interessado por ela. Matraga nem chega a usá-la, alegando que era muito feia’. É que Matraga era rude, não civilizado, e também bandido e violento, tratava mal a esposa, Dionóra, e sua filha, Mimita. ‘Só queria saber de jogo, caçada e mulheres de vida fácil’.
No entanto, sua sorte mudou. Sua esposa o abandona, passando a viver, com a filha, em companhia de um homem chamado Ovídio. Matraga não pôde vingar a ofensa, pois recebeu a notícia de que seus capangas, com exceção de Quim Recadeiro, também o abandonaram, passando para o lado do Major Consilva.
Então, Augusto Matraga ‘vai tomar satisfações pela afronta’, sem perceber que o destino virou-se contra ele: não tem mais apoio político, está cheio de dívidas e suas terras estão hipotecadas. E, diz Guimarães Rosa, ele ‘não havia se tocado de que era momento de parar umas rodadas, deixar de jogar, pois o azar havia chegado.
Ao chegar à fazenda do Major, é cercado pelos capitães do mato, alguns ex-subordinados de Matraga, é espancado, marcado por ferro em brasa e, antes de sofrer o pior, atira-se de um altíssimo barranco. Seus inimigos acharam que estava morto. ‘Ficou dias inconsciente. Voltou a si, e conhecendo sua situação, desejou a morte. Com o tempo, Matraga volta a ter paixão pela vida. Os meses que passa se recuperando das feridas e fraturas é o tempo suficiente para se arrependa dos pecados e abrace ao cristianismo. No seu jeito rude, fica até cômica a convicção em afirmar que vai para o Céu, nem que seja a porrete.
Começa sua fase de penitências. Vai com os velhinhos a uma propriedade sua perdida e distante. Mostra-se trabalhador, misto de louco e santo no olhar do povo. Vive dessa forma por quase sete anos’.
‘Um dia, sofreu uma dura tentação. Um antigo conhecido passa por lá e surpreende-se ao descobrir Matraga, ainda mais, mudado. Traz notícias muito inconvenientes. Dionóra estava para se casar com Ovídio, crente de que estava viúva. Major Consilva apoderou-se das terras do protagonista. Quim, frouxo e atrapalhado, havia sido o único a se levantar em defesa do patrão, mas fora morto no momento em que, tomado de fúria, entrara nas terras do Major com a intenção de vingança. Mimita, sua filha, se tornara prostituta.
É um momento cruel para Augusto. Deus o havia abandonado? Merecia mesmo o Céu? Mas, como o bíblico Jó, resiste bravamente à tentação de buscar vingança. Não percebe: já estava salvo’.
‘E que vem o período de chuvas, que, não por coincidência, é o momento em que Matraga acaba por sentir como se tivesse tirado um peso das costas. As águas, opondo-se ao pó de outras épocas, simbolizam o batismo, a sublimação, a elevação. É então que surge o bando de Joãozinho Bem-Bem, homem da mesma estirpe do antigo Augusto Matraga. Suas intenções provavelmente eram malévolas naquela região, mas o amor e a dedicação com que o protagonista o recebe o desarma’.
‘O bandido intui o poder bélico de Matraga, por isso o convida a fazer parte da empreitada. É uma forte tentação: o herói sente saudade do poder de desmando que possuía. Imagina até a possibilidade de vingar a morte de Quim. Mas resistiu a mais essa tentação. Estava evoluindo a passos largos’.
‘Joãozinho Bem-Bem parte, deixando Matraga, mas levando uma afeição enorme por ele.
Dias depois, enquanto Augusto trabalhava, presenciou uma belíssima explosão de pássaros voando. Sua intuição lhe diz algo maravilhoso, que o faz pensar o dia inteiro. Até que toma uma resolução: decide partir. Faz sua viagem em um jumento, animal carregado de simbologia cristã, pois havia carregado Maria às vésperas do nascimento de Cristo. Carregara, pois, o salvador.
Matraga viaja muitos dias, até chegar ao arraial do Rala-Coco, que estava em polvorosa. O bando de Joãozinho Bem-Bem lá estava, prestes a realizar um crime hediondo. Um dos capangas do facínora o havia abandonado, ação que fora considerada traição. Joãozinho resolve se vingar em cima da família deste, querendo assassiná-la. No momento em que Augusto havia chegado, o pai do fugitivo tinha aparecido e pedido clemência pela vida de inocentes. A fúria do criminoso parecia não ter limite, pois já estava prestes a se derramar sobre o idoso.
É nesse instante que Augusto Matraga intercede. Mesmo havendo um enorme apreço entre Joãozinho e o herói, os dois começam a se desentender. O bandido está tomado de um maligno espírito vingativo. Matraga defende a bondade divina, sempre pedindo para seu opositor evitar uma tragédia injusta, sempre clamando pelo nome de Deus.
O inevitável acontece. Há uma terrível luta. Tiros de todos os lados. Os dois saem feridos, mas Matraga, sempre invocando o nome do Senhor e pedindo para seu amigo se arrepender dos pecados, acaba vencendo, rasgando a barriga de Joãozinho, que morre segurando nas mãos suas entranhas.
Augusto Matraga estava morrendo, mas contente. Aclamado como santo e salvador entre o povo que tenta socorrê-lo, ainda tem tempo para fazer com que respeitassem o cadáver de Joãozinho Bem-Bem, mandando que o enterrassem dignamente. Ainda teve tempo, além disso, de abençoar sua filha perdida. Morre, porque havia chegado a sua hora e a sua vez. Havia realizado sua missão, cumprido os planos de um misterioso desígnio divino. Estava salvo. Ia para o Céu’.
Por isso, Tanure, você que é católico, e pensa que um dia vai para o céu, leia atentamente o conto de Guimarães Rosa e reflita sobre o que dizia o irmão Aquiles, do Colégio Maristas.
No mais, vou continuar repórter, rebelde e aprendendo lições, particularmente com o velho comunista Armênio Guedes, que completa 87 anos em 30 de maio, e que, por ordens suas, foi demitido depois de 20 anos de casa.
Mas Armênio se recusa a saltar para fora da ponte da vida, porque ele é como a liberdade, está sempre em movimentação. E nos ensinando, com a sua integridade, que quando a vida parece que vai, vem vindo e não devemos ter medo de encontrá-la. Afinal, o companheiro Armênio Guedes é um homem, diferentes de outros, que se transformaram em ratos.