Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Em nome da população

Entre o volume de informações e a cobertura sensacionalista adotada pela mídia em relação aos últimos acontecimentos, ligados sobretudo ao crime organizado no estado de São Paulo, um episódio foi inusitado: a postura agressiva de William Bonner, editor-chefe do Jornal Nacional, telejornal de maior audiência do país, na entrevista com o atual governador de São Paulo, Claudio Lembo.

Este artigo tem a intenção de reproduzir a condução noticiosa do Jornal Nacional no terceiro dia de ataque, procurando identificar possíveis ideologias que percorreram a transmissão dos acontecimentos, transformando o noticiário em arena política.

Recuemos para o dia 15 de maio de 2006, data em que o número de ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) levou o estado de São Paulo a uma situação extrema. A cidade de São Paulo parou, parecia fora de órbita. Todos os acontecimentos diferiam do habitual. A cidade estava irreconhecível. O Jornal Nacional também.

A escalada do telejornal já dava indícios do teor tenso que percorreria o noticiário. Fátima Bernardes anunciou: ‘Três dias de afronta em São Paulo’. Na seqüência, imagens de William Bonner, fora do estúdio, em ambiente desconhecido para o telespectador. O tom de voz do apresentador é tenso, mais ainda assim sóbrio.

Imagens do caos

Inicia sua fala enaltecendo a capital paulista, conforme segue texto na íntegra: ‘Aqui na maior cidade brasileira, a população volta a sofrer as conseqüências dos atentados; criminosos atacam agências bancárias, incendeiam ônibus nas ruas, e o medo interfere na vida dos cidadãos. Trabalhadores ficam sem transporte, estudantes longe das escolas e comerciantes evitam abrir as portas das lojas. Das mais de 70 rebeliões em presídios, apenas duas continuam e, depois de uma reunião com o ministro da Justiça, o governador Claudio Lembo volta a recusar ajuda do governo federal.’

A última frase de Bonner já dá indícios de questões e disputas políticas que vão percorrer sutilmente o telejornal do dia. Já no primeiro bloco, o apresentador, buscando a aproximação com o telespectador, mostra solidariedade à população de São Paulo e, na seqüência, apresenta o local de onde o telejornal será parcialmente transmitido. William Bonner informa: ‘Nós estamos no bairro do Brooklin, na Zona Sul de São Paulo, na marginal do Rio Pinheiros, ao fundo você vê o complexo viário jornalístico Roberto Marinho, inaugurado recentemente. Nesse dia dramático para paulistanos e também para paulistas, em geral, é daqui que nós vamos apresentar o Jornal Nacional. É uma forma, claro, de estar mais perto dos fatos, mas também é a demonstração da solidariedade da Globo com os cidadãos daqui.’

Percebe-se que a saída do editor-âncora do estúdio do JN parece proposital, dando ao apresentador maior flexibilidade na narração dos acontecimentos. Assim, segue o primeiro bloco do telejornal, envolto em inúmeras notícias sobre atentados, mortes e falhas na segurança pública do estado. As imagens transmitidas buscam mostrar o caos em que a cidade se transformara nas últimas horas da segunda-feira.

Equívocos e erros

Já no segundo bloco, percebe-se uma forte inserção política no noticiário. A primeira notícia menciona o erro estratégico do secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, ao isolar num mesmo presídio todos os chefes e os principais integrantes das facções criminosas. O Jornal Nacional utiliza parte da entrevista do criminalista Walter Maierovitch para apontar o equívoco do governo. Segundo Maierovitch, ‘a experiência internacional mostra, e é exitosa neste particular, que líderes não podem estar no mesmo presídio. Acabam criando códigos, batendo nas paredes, em grades. Depois, têm visitas, contatos com falsos advogados que são membros de organizações criminosas.’

Em tom de imparcialidade, o Jornal Nacional insiste, na mesma matéria, sobre a recusa do governo do estado em receber apoio do governo federal, conforme texto narrado em off: ‘Em meio à violência dos ataques, o governo do estado recusou apoio da Polícia Federal.’ Na matéria posterior, o assunto volta a ser discutido, agora por integrantes do governo federal. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, reitera a oferta ao estado: ‘Se São Paulo quiser, as Forças Armadas irão para as ruas do estado para enfrentar a crise. Também já estão de prontidão 4 mil policiais da Força Nacional de Segurança Pública, a elite da Polícia Militar e dos Bombeiros.’

Na mesma reportagem, o presidente Lula concede entrevista ao JN, na qual enfatiza que os incidentes envolvendo o governo do partido que representa a maior oposição à sua reeleição não serão utilizados com fins mercadológicos em campanhas eleitorais. Segundo Lula: ‘Não acho que haja um mesquinho neste país que tente tratar uma questão dessa como uma questão eleitoral, até porque tem muitas vítimas. Nesta hora, é preciso que a gente feche os olhos para a baixeza e pense na solidariedade de toda a sociedade brasileira.’

Em oposição à coerência transmitida no discurso do governo federal, vêem-se despontar, no decorrer do telejornal, os equívocos e erros estratégicos do governo do estado de São Paulo. O Jornal Nacional contrapõe ao discurso da desordem e do caos a fala e a imagem tranqüila do governador Claudio Lembo, no dia anterior, quando, em entrevista, ressaltou que a situação estava sob controle, dispensando ajuda federal. Segue texto de Claudio Lembo na integra: ‘São Paulo não precisa da Polícia Federal, quando muito, se passarem informações recebemos de bom grado. Eu confio na Polícia Civil e Militar de São Paulo. São capacitadas, extremamente profissionais. Estão agindo com grande segurança. Portanto, São Paulo por si vai resolver os problemas’.

Intenção legitimada

Percebe-se que toda a construção do telejornal conduziu o telespectador a uma arena de disputa política que, possivelmente, encontrou seu maior efeito no último bloco do noticiário. Em entrevista ao vivo, com o governador, William Bonner volta a falar em erro estratégico da polícia. Segue parte da entrevista:

William Bonner: A polícia chegou a ter informações com antecedência sobre as rebeliões. O que deu errado para São Paulo enfrentar essa tragédia de assassinatos, de terror nas ruas?

Claudio Lembo: Não, eu creio que nada deu errado. Nós tivemos informações sim, agimos com muita firmeza, com muita dureza. Tornamos os criminosos presos numa delegacia, ou seja, numa penitenciária de segurança máxima. Isso criou uma revolta que nós esperávamos efetivamente para o Dia das Mães. Conseguimos debelá-la e hoje nós não temos nenhuma penitenciária rebelada. Das 73 que estavam rebeladas, hoje nós temos zero rebeladas. Nós tomamos todos os presídios de São Paulo, 174. Não houve nenhum funcionário morto, nenhuma fuga, nenhum fugiu. Portanto, eu creio que nós estamos indo bem nessa batalha.

William Bonner: Governador, quando o senhor diz que nada saiu errado, em que categoria o senhor encaixaria então as mortes que aconteceram em São Paulo?

Claudio Lembo: Um grande drama. O que nós não esperávamos era essa violência do crime organizado. Foi excessiva. Aí sim, nós podemos dizer que houve aqui e ali situações difíceis. Porém, o crime organizado ficou claro, preciso e hoje eu acho que, em todo Brasil, nós sabemos que precisamos também aprender a combater essa gente da má vida.

No questionamento anterior, percebe-se a tentativa de William Bonner em mostrar ao telespectador as contradições no discurso do governador. Assim, prossegue a entrevista:

William Bonner: Governador, nós vamos fazer uma pergunta que provavelmente todo brasileiro ou, pelo menos, grande parte dos brasileiros se fez nos últimos dias. Por que motivo o senhor acha que poderia ser pior para a população receber a ajuda federal?

Claudio Lembo: Não, não existe isso. Acho um grande equívoco de colocação de pergunta.

William Bonner: Me perdoe, mas os senhores abriram mão publicamente, duas vezes. O senhor disse, na reportagem, que não era necessário.

Ao analisar as imagens da entrevista, torna-se impossível não notar a diferença de postura do editor-chefe do Jornal Nacional. William Bonner perde, segundo bem definiu Eugenio Bucci, a liturgia que o Jornal Nacional exige. O que surge não é o William Bonner intacto, inexpugnável. Desponta na tela um jornalista que cobra abertamente, em nome da população brasileira, uma explicação sobre o porquê de o governo do estado não aceitar ajuda federal. No decorrer da entrevista, William Bonner se irrita, prejudica a fala do governador, interrompe, e, por fim, desestrutura seu discurso. Nota-se que Claudio Lembo perde a postura, gagueja e se atrapalha em rede nacional. Assim, o Jornal Nacional encerra sua edição, legitimando a intenção comunicativa e política que percorreu todo o noticiário: apontar o despreparo e os equívocos do governo do estado.

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Doutoranda em Ciência Política pela PUC-SP e mestre em Comunicação pela Unip, com a dissertação ‘Telejornalismo é audiência: um estudo de caso do Jornal Nacional