Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Joaquim Vieira

‘‘Principais problemas da economia portuguesa são internos, diz o FMI’ – e isto dizia por sua vez o PÚBLICO em manchete publicada a 18 de Julho. O conteúdo da notícia, apontando para razões estruturais da economia portuguesa, e não para a conjuntura internacional, como principal motivo da crise que o país atravessa, suscitou uma chamada de atenção do leitor Miguel Carvalho, alegando que as análises do FMI (Fundo Monetário Internacional) invocadas não permitiam tal conclusão.

Explanava o texto da pág. 1 do PÚBLICO: ‘A crise internacional não é a principal causa para o ritmo de crescimento lento que Portugal irá continuar a apresentar neste ano e no próximo, ao contrário do que tem vindo a ser defendido pelo Governo. A garantia é dada pelo FMI’. A fonte era o mais recente relatório sobre Portugal elaborado pela instituição financeira. A ideia-base reforçava-se no desenvolvimento publicado na secção de Economia (pág. 37), sob o título ‘FMI garante que principais problemas da economia portuguesa são domésticos’, com autoria do jornalista Sérgio Aníbal.

Defende porém o leitor que ‘não há contradição nenhuma entre o relatório do FMI e o que o Governo diz sobre o abrandamento este ano da economia’. E ‘para que fique claro’ o que afirma, cita a ‘visão do FMI’: ‘O crescimento abrandará provavelmente em 2008 para cerca de 1,25 por cento e para cerca de 1,00 por cento em 2009, por influência do fraco crescimento dos países parceiros, da turbulência financeira internacional e da subida do preço das mercadorias’. Conclui Miguel Carvalho: ‘Não há mais referência nenhuma no relatório sobre este abrandamento de curto prazo. Agora repare: todos os pontos que o FMI refere são externos. A contradição é portanto inventada’.

Existe aqui uma nuance: a questão do curto prazo. Alega o leitor que é isso que está em causa (ou seja, o que se passará neste ano e no próximo) e que para esse período o FMI não aponta outros factores na evolução da situação nacional: ‘O Governo tem-se queixado de questões conjunturais externas para explicar o abrandamento este ano da economia, o próprio texto da capa refere a quebra de curto prazo’, explica, adiantando que o problema seria diferente se a perspectiva fosse o longo prazo, pois, a esse nível, sim, ‘o FMI refere-se a questões estruturais (que por definição explicam comportamentos num horizonte temporal largo, e não de apenas um ano) internas.’

Mas são precisamente as mesmas razões apontadas pelo FMI que levam Sérgio Aníbal a defender o que escreveu, em particular este período do relatório da instituição, que cita na notícia (aqui traduzido pelo provedor de forma um pouco diferente, se bem que sem alterar o sentido): ‘A deterioração do ambiente económico global está a obstaculizar a retoma portuguesa, mas os problemas fundamentais condicionando a economia do país são de natureza doméstica: elevados défices externo e público; endividamento muito alto das famílias, das empresas e do Estado; e um substancial desnível em matéria de competitividade’.

Conclui por isso o jornalista, solicitado pelo provedor a esclarecer o assunto: ‘Assim, o FMI considera que, apesar de haver problemas conjunturais (externos) a afectar Portugal, são os problemas estruturais (internos) que mais estão a limitar o crescimento da economia. O Governo, por seu lado, tem salientado no seu discurso que os problemas estruturais (internos) estão a ser resolvidos pelas políticas postas em prática e que são os problemas conjunturais (externos) o principal entrave ao crescimento da economia. ‘Estamos agora melhor preparados para enfrentar a crise’, tem sido a frase mais utilizada pelos membros do Governo. Foi aqui, quando escrevi o artigo, que encontrei a contradição. E, ao citar aquela frase do relatório, referi igualmente a existência de problemas conjunturais externos, ao contrário do que diz o leitor. Admito que, em questões de análise de discurso político, outras interpretações sejam possíveis, porventura até mais correctas do que a minha. Mas gostava de deixar claro que procuro não inventar quando escrevo os meus artigos, coisa que o leitor, de forma injusta, rapidamente concluiu’.

Em suma, acerca do mau momento que estamos a viver (e que, na verdade, não sabemos se é a curto prazo, já que o sofremos desde quase o início do século XXI), a conjuntura externa só terá vindo agravar ainda mais uma situação já de si difícil de sustentar devido aos problemas estruturais do edifício económico e financeiro nacional.

Poderá não ser esta a perspectiva que mais agradará às autoridades portuguesas, mas é uma leitura que, quanto ao provedor, não só é possível extrair do relatório do FMI como é legítimo que o PÚBLICO faça, dado que a sua função como jornal não se limita à apresentação seca da notícia, mas também ao seu desenvolvimento analítico: ‘A informação complementar e diferente, o background e protagonização da notícia, a análise e a interpretação indispensáveis à sua compreensão integram e distinguem o estilo do PÚBLICO’, lê-se no seu Livro de Estilo, a abrir o subcapítulo ‘Os factos e a opinião’.

Claro que teria sido interessante exercer-se o contraditório com uma fonte oficial (preferencialmente do gabinete do primeiro-ministro ou do ministro das Finanças), até para satisfazer o ponto 15 dos ‘Princípios e normas de conduta profissional’ do mesmo Livro de Estilo (‘Qualquer informação desfavorável a uma pessoa ou entidade obriga a que se oiça sempre o ‘outro lado’ em pé de iguladade e com franqueza e lealdade’) – e, na verdade, não parece que tenha sido sequer esboçada uma tentativa nesse sentido.

O que não elimina o mérito do jornalista em procurar aprofundar a informação. Mas que, na óptica do provedor (embora não sendo objecto da queixa apresentada), importa sublinhar, uma vez que se observa frequentemente a fuga ao contraditório na atitude de muitos jornalistas do PÚBLICO, aqui se deixando a recomendação para o cumprimento escrupuloso desse princípio.

Miguel Carvalho tem sido um leitor atento deste jornal, adiantando regularmente observações críticas que, com frequência, o provedor considera pertinentes. Mais do que isso, é o principal animador do blogue ‘A Pente Fino’ (http://apentefino.blogs.sapo.pt), onde um grupo de pessoas se dedicam a registar o que consideram ‘disparates’ dos órgãos de informação.

Nem sempre o provedor tem atendido às reclamações de Miguel Carvalho, enviadas após divulgação no blogue, pois, em regra, prefere dar voz a queixas originais e não àquelas já colocadas no espaço público (a não ser que sejam incontornáveis no diagnóstico às questões editoriais do jornal). Entende, contudo, que iniciativas como a deste blogue, com cidadãos, individualmente ou em grupo, escrutinando a actividade dos jornalistas, constituem ainda a forma mais eficaz de regulação dos media, os quais nunca deixarão de estar atentos ao feedback que recolhem por parte da sociedade civil. Afinal de contas, garantida a liberdade de expressão, cada sociedade tem a informação que merece.

CAIXA:

Bota e perdigota

Há uma semana, o provedor recenseava algumas das últimas manifestações da ‘praga de Catual’ nas páginas do PÚBLICO. Mas esta frequente falta de concordância entre sujeito e predicado não é a única situação em que, na escrita do jornal, a bota muitas vezes não dá com a perdigota. Outros casos comuns têm a ver com falta de correspondência no género ou na flexão de número. Exemplos recentes: ‘O temas negros e obscurantistas da sua poesia, muita dela enraizada em lendas sérvias, gerava estranheza’ (23 de Julho, pág. 5); ‘A colagem ao discurso oficial e à propaganda do Governo continuam a render’ (antetítulo de artigo de opinião, 17 de Julho, pág. 33); ‘A inflação e a alta de juros colocou ainda mais famílias em dificuldade’ (entrada de artigo, 10 de Julho, pág. 4); ‘A qualidade dos produtos do mar foram uma surpresa para mim’ (‘Pública’, 22 de Junho, pág. 38); ‘A decisão por parte da Estónia de banir os símbolos do martelo e da foice e da cruz suástica foi descrito pela Rússia, na altura, como uma ‘blasfémia’’ (18 de Junho, pág. 19); ‘Mais de metade ‘fica ansioso’ se não tiver o telemóvel’ (título de notícia sobre um inquérito à juventude, 3 de Junho, pág. 10); ‘Os berros do speaker da Volta a Portugal em bicicleta não deixou ninguém dormir’ (‘Inimigo Público’, 15 de Agosto, pág. 2); ‘A vontade que o Presidente francês mostrou em acalmar os ânimos no conflito russo-georgiano são meritórios’ (13 de Agosto, pág. 36); ‘As diferenças entre o que é dito e a realidade é ainda maior do que aquela que separa os homens das mulheres’ (5 de Agosto, pág. 35); ‘O resultado das peritagens efectuadas ontem pela PJ ainda não são conhecidos’ (8 de Julho, pág. 22); ‘O ex-investigador da PJ, cujo afastamento das funções de coordenador das investigações foram atribuídas pelos responsáveis da Judiciária a declarações prestadas’ (5 de Julho, pág. 14). O leitor José Oliveira, que detectou as últimas cinco ocorrências, pergunta ‘se é isto que nos dão em troca dos oito euros semanais que damos, com esforço, pelo jornal’. Dão-nos muito mais (e o público também dá mais: 8,7 euros), mas, de qualquer modo, volta a recomendar-se mais atenção aos jornalistas e (quando existem) revisores.’