Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Estado de S. Paulo

COMUNICAÇÕES
Ethevaldo Siqueira

Nas Comunicações, um país quase surrealista

‘Não é caricatura, não. As comunicações brasileiras são o retrato de um país quase surrealista. Confira, leitor. Como tem feito em outras ocasiões, o ministro Hélio Costa ameaça impor a opinião do Ministério das Comunicações, contrária à exigência de criação de uma nova empresa, separada de cada concessionária de telefonia, para explorar exclusivamente os serviços de banda larga, defendida pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), na elaboração do novo Plano Geral de Outorgas (PGO).

E não se surpreenda, leitor: concordo plenamente com a opinião do ministro quanto à inadequação da proposta da Anatel. Num mundo de convergência, exigir a separação de banda estreita de banda larga é mero capricho. Mas o caminho não é o ataque público à agência reguladora, pois cabe a ela e não ao Ministério regular o setor, isto é, fixar as regras. E como a posição da diretoria da Anatel não é unânime nem definitiva, seria muito mais prudente dialogar, negociar, democrática e civilizadamente.

Outra tendência polêmica da Anatel é exigir metas de universalização dos serviços de banda larga das concessionárias, como se eles tivessem caráter público. O único país no mundo a fazê-lo até aqui é a Coréia do Sul. No futuro, o Brasil, com certeza, também deverá seguir esse caminho. Hoje, no entanto, é cedo demais.

Raras vezes esta coluna teve tantas razões para concordar com o ministro das Comunicações como hoje. Vejam outra concordância. Em seu discurso, na abertura do evento da Sociedade de Engenharia de Televisão (SET), na semana passada, em São Paulo, o ministro cobrou da mídia eletrônica aquilo que temos sugerido há muito tempo: muito mais divulgação e informações didáticas sobre a TV digital. ‘É preciso mostrar ao cidadão, ao telespectador, os recursos e o diferencial da TV digital’ – enfatizou.

Na passagem da TV em branco e preto para as cores o impacto visual já dizia tudo. Agora, na passagem da TV analógica para a digital, as diferenças são muito mais sutis. O povo, em sua esmagadora maioria, ainda não tem a menor idéia do que significa TV digital. Sem perceber claramente seu diferencial, o telespectador não vai aderir tão logo à nova tecnologia.

Segunda concordância: ainda em seu discurso, o ministro lembrou que o Brasil só adotará o padrão de rádio digital após a comprovação do bom desempenho dessa tecnologia nos testes que estão sendo conduzidos pelo Instituto Mackenzie e que serão homologados pela Anatel. Essa é a linha que sempre sugerimos.

EMILIA, EMILIA

Em sentido oposto, temos muitas discordâncias quanto à política setorial, a começar pelos critérios adotados pelo governo – Executivo e Senado – para o preenchimento da vaga do conselho-diretor da Anatel. Em primeiro lugar, como justificar a demora de 8 meses para se indicar um novo conselheiro? Pura negligência.

Quanto à aprovação do nome de Emilia Ribeiro, esclarecemos: nada temos contra a nova conselheira. Nem a favor. Embora o Brasil conte com dezenas de especialistas muito mais experientes e qualificados do que ela no setor de telecomunicações, a senhora Ribeiro acabou sendo a candidata ideal para os padrões populistas em que vivemos, apadrinhada pelos senadores José Sarney e Renan Calheiros pelo próprio ministro das Comunicações, Hélio Costa.

Assessora da presidência do Senado e integrante do Conselho Consultivo da Anatel, Emilia Ribeiro não tem nenhuma experiência profissional em telecomunicações. Mas tem bons padrinhos no PMDB, o que lhe bastou para obter os votos no plenário do Senado, por 42 a 15. Assim, cumpre-se o ritual previsto em lei.

POR QUE ELA?

Emília Ribeiro vai para a Anatel para votar e decidir a favor do governo algumas questões de grande interesse político, como o novo Plano Geral de Outorgas (PGO), que irá convalidar, a posteriori, a aquisição já decidida da Brasil Telecom pela Oi, bem como em diversas questões ligadas à revisão do modelo regulatório.

Ao aprovar, indiferentemente, qualquer candidato indicado pelo Planalto, o Senado tem sido co-responsável com a degradação do nível das agências. No caso da Anatel, uma honrosa exceção foi a aprovação de Ronaldo Sardenberg, proposto pelo presidente Lula, contra a vontade da CUT e de setores do PT.

Diversos senadores têm proposto novos critérios para futuras sabatinas com candidatos a diretores de agências reguladoras. O senador Papaléo Paes (PSDB-AP) alertou seus colegas para o ‘aparelhamento político no preenchimento dos cargos de direção das agências reguladoras’ e concitou-os a exigir o cumprimento dos pré-requisitos técnicos para o exercício do cargo, como formação universitária, experiência setorial, elevado grau de conhecimento do setor e reputação ilibada.

A pergunta que sempre fazemos e nunca obtemos resposta é simples: Que interesse teria um cacique como o senador José Sarney ou seu colega Renan Calheiros, de triste lembrança, em patrocinar afilhados medíocres para dirigir estatais ou, pior ainda, agências reguladoras como a Anatel?’

 

 

LITERATURA
Antonio Gonçalves Filho

Duplo Cortázar

‘O mundo literário tem falado muito – e com justiça – da obra do alemão W.G. Sebald (1944- 2001), o autor de Austerlitz, mas poucos lembram de sua dívida com dois grandes escritores argentinos, Jorge Luis Borges (1899-1986) e Julio Cortázar (1914-1984). Do último herdou, por exemplo, o hábito de inserir fotografias em meio aos textos, não como ilustração, mas provocação, amplificando o caráter enigmático e perturbador das imagens. Dois exemplos desse pioneirismo formal são lançados em setembro pela editora Civilização Brasileira, do grupo Record, os livros A Volta ao Dia em 80 Mundos e Último Round, ambos traduzidos por Ari Roitman e Paulina Wacht, inéditos no Brasil e escritos por Cortázar, respectivamente, em 1967 e 1969, muito antes, portanto, de Sebald ‘inventar’ sua nova e híbrida forma literária, cruzamento de novela com autobiografia e diário de viagem. Em ambos os casos, experiências pessoais dos autores são compartilhadas com o leitor, que abandona, assim, sua atitude passiva, tornando-se cúmplice do escritor.

Cortázar foi um autor de seu tempo, os anos 1960, uma época em que o novo cinema dialogava sem complexos com a literatura, o jazz abolia as fronteiras entre erudito e popular, as feministas queimavam sutiãs, o Vietnã incendiava e o núcleo familiar ameaçava implodir, dando origem a formas alternativas de organização social. Fanático por jazz, libertário, gênio precoce, aos 9 anos escreveu seu primeiro livro e deixou a família preocupada com o garoto asmático, que vivia num mundo suspenso entre o real e o imaginário. Ainda que tenha surgido, como escritor, justamente durante o boom latino-americano do realismo fantástico, Cortázar pouco tem a ver com García Márquez. Com Borges, sim, em termos. Foi, aliás, o autor de O Aleph quem publicou pela primeira vez, numa revista literária, um de seus mais conhecidos contos, A Casa Tomada, em 1946, um ano antes de sua incorporação ao livro Bestiário.

Borges e Cortázar tinham em comum a paixão pela literatura fantástica do século 19 e a admiração pelos franceses da geração de Gide. Contudo, suas posições políticas divergem. Borges, de certo modo, foi um conformista. Cortázar dizia não ter nascido para aceitar as coisas como essas se apresentam. Simpatizante da revolução castrista em Cuba, deu suporte aos sandinistas da Nicarágua, apoiou Salvador Allende e chegou até mesmo a escrever um romance, O Livro de Manuel (1973), para louvar a ação de guerrilheiros contra as ditaduras latino-americanas, morrendo – de complicações advindas da aids, segundo a amiga Christina Peri Rossi, ou leucemia, segundo a versão oficial – como um dos que batalharam para que o Tribunal Russell denunciasse as violações dos direitos humanos abaixo do Equador.

Ainda hoje visto como herói literário, seu túmulo, no cemitério de Montparnasse, em Paris, é, como a sepultura do ídolo pop Jim Morrison, um ponto de encontro de peregrinos, escritores inéditos que nele vão depositar pequenos textos na esperança de que sejam avaliados do além por Cortázar e até romancistas consagrados, como o chileno Luis Sepúlveda ou o mexicano Antonio Sarabia que, dizem, costuma levar cigarros para o morto. Necrofilia à parte, o fato é que Cortázar está mais vivo que nunca. Prova disso é o interesse de um grande grupo editorial por sua obra, investindo três anos de pesquisas para publicar os dois livros citados como foram originalmente concebidos. Até mesmo as edições estrangeiras, segundo a editora Andrea Amaral, estão incompletas, especialmente a francesa, que a Civilização Brasileira tentou comprar após constatar a falta de ilustrações originais na edição da mexicana Siglo XXI.

‘Tínhamos de conseguir as ilustrações originais, pois ambos os livros foram pensados página a página por Cortázar em parceria com o artista Julio Silva e as edições estrangeiras que tínhamos em mãos estavam incompletas’, conta Andrea, que conseguiu, finalmente, localizar os filmes com as colagens do artista e recuperá-las para a edição brasileira. Segundo informa a editora, o artista Julio Silva virá ao Brasil em outubro, quando deverá estar em andamento a reedição de outros livros de Cortázar pela Civilização Brasileira.

Tanto A Volta ao Dia em 80 Mundos como Último Round são frutos da experiência radical que representa o livro mais conhecido de Cortázar, O Jogo da Amarelinha (Rayuela), publicado em 1963. Nessa obra experimental, que convida o leitor a reconstruir sua estrutura e imaginar seu final, o escritor argentino (casualmente nascido em Bruxelas, onde seu pai era diplomata) retoma alguns procedimentos do romance seminal do irlandês Laurence Sterne, A Vida e Opiniões de Tristram Shandy (1759). Resumidamente, seria a história de um escritor chamado Horácio Oliveira, que interage com os membros de uma sociedade secreta, um clube parisiense capitaneado pela figura enigmática de La Maga. De Paris para Buenos Aires, sem escalas, Cortázar e o leitor viajam sem passaporte para encontrar Oliveira confinado num asilo, após sua – talvez – fracassada busca pelo ‘kibbutz do desejo’. Nesse jogo de amarelinha literário, em que Cortázar obriga o leitor a decifrá-lo, um dos personagens, Morelli, traduz sua filosofia e assume seu débito com os surrealistas, especialmente Breton, ao condenar antecipadamente o leitor por querer reduzir o desconhecido ao conhecido, ao classificável, trocando seus sentimentos pelo desejo irrefreável de análise.

Em A Volta ao Dia em 80 Mundos, a inspiração de Cortázar não é Sterne, mas o surrealista Aragon. Ele subverte Jules Verne e viaja por vários universos num único dia, concluindo a viagem em Último Round. Tudo num ritmo vertiginoso, antecipando a rapidez e a miscelânea temática dos blogs atuais.’

 

 

 

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