Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O Estado de S. Paulo

ORIENTE MÉDIO
O Estado de S. Paulo

Jornalista inicia viagem por países da região

‘O jornalista Gustavo Chacra iniciou pelo Líbano uma viagem de oito meses por vários países do Oriente Médio, de onde vai mandar reportagens exclusivas para o ?Estado?. ‘Com a segurança internacional e a energia dominando a agenda da política externa dos EUA, a região que mais pode influenciar a eleição americana é o Oriente Médio’, afirma Chacra, mestre em Relações Internacionais pela Universidade Columbia de Nova York. Seu roteiro inclui Síria, Turquia, Egito, Israel, territórios palestinos e países do Golfo Pérsico.’

 

REDE
Ethevaldo Siqueira

Internet grátis para todos é promessa inviável

‘Assegurar o acesso grátis à internet em banda larga a todos os paulistanos é uma idéia generosa, mas utópica e economicamente inviável, segundo a maioria dos especialistas que ouvi na semana passada. O maior risco de uma promessa eleitoral desse tipo, sem debate sério, sem base na realidade, é enganar a milhões. Equivale a prometer transporte grátis para os 11 milhões de habitantes da cidade de São Paulo.

Para o professor Luiz Carlos Moraes Rego, da Escola de Administração de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, ‘o acesso grátis a toda a população só seria viável com elevados subsídios ou a criação de imposto específico’. E acrescenta: ‘Um projeto dessa magnitude é totalmente inviável, se depender apenas dos recursos públicos, mesmo de uma prefeitura como a de São Paulo.’

Fabricantes de equipamentos de infra-estrutura e operadoras estimam que o investimento mínimo exigido para a construção de uma rede metropolitana sem fio, com tecnologias Wi-Fi, WiMAX e WiMesh, com centenas de estações radiobase, ultrapassa US$ 2 bilhões (R$ 3,8 bilhões), sem incluir aí os terminais de usuários.

A complexidade de uma rede desse porte, capaz de cobrir a cidade de São Paulo e suportar o volume de tráfego gerado por milhões de usuários de banda larga exigiriam uma infra-estrutura nunca antes implantada no mundo.

Mais assustadores seriam os custos operacionais dessa infra-estrutura. Imaginemos que a oferta de acesso grátis à internet em banda larga alcançasse no máximo a um terço da população (3,7 milhões de habitantes). Nesse caso, o custo operacional chegaria, facilmente, a R$ 20 por usuário por mês ou o total de R$ 880 milhões por ano.

Do ponto de vista regulatório, o projeto exigiria profunda revisão das normas que regulam a atividade dos provedores de acesso e de serviço.

CIDADES DIGITAIS

Muito mais sentido teria hoje para São Paulo um projeto de longo prazo de cidade digital, que vá muito além da cobertura de uma área urbana por redes sem fio de baixa velocidade, mas ofereça acesso à internet em banda larga, com gratuidade seletiva, programas de governo eletrônico, serviços de e-commerce, teleducação, telemedicina e teletrabalho, entre outros.

O conceito mais aceito de cidade digital (ou comunidade digital, cidade da informação, comunidade inteligente ou e-city) é o de uma comunidade conectada que combina infra-estrutura de comunicações e infra-estrutura de computação orientada para serviços, baseada em padrões abertos, que oferece serviços inovadores para atender às necessidades do governo, de seus funcionários, executivos, homens de negócio e cidadãos em geral.

O objetivo central desses projetos é elevar a qualidade de vida, com a oferta de serviços de governo eletrônico (e-government), universalização do acesso à internet, ampliação do acesso à banda larga e a redução do custo dos serviços de informação e comunicação.

Atualmente, as 10 maiores cidades digitais do mundo são as seguintes: 1) Seul; 2) Cingapura; 3) Tóquio; 4) Hong-Kong; 5) Estocolmo; 6) São Francisco e Vale do Silício; 7) Talin (Estônia); 8) Nova York; 9) Pequim; 10) New Songdo City (Coréia do Sul).

Essa lista reúne o que há de mais criativo e avançado na experiência mundial. Mas, em nenhuma dessas cidades o acesso à internet é gratuito para todos os cidadãos e em toda a área metropolitana. Um caso raro é o de Taipé, capital de Taiwan, país com uma renda per capita de quase US$ 20 mil, em que o governo oferece internet em banda larga para toda a população, com vastos subsídios. O projeto, contudo, começou cobrindo escolas, áreas determinadas (hotspots) e quiosques de acesso público.

A proposta mais grandiosa é a de uma cidade praticamente desconhecida no mundo: New Songdo City, situada a 60 quilômetros de Seul, na Coréia do Sul, um projeto de US$ 31 bilhões. É uma cidade planejada que ocupará a área total de 600 hectares, voltada para indústrias do futuro, não-poluentes, novas concepções urbanísticas, com sistemas de informação residenciais, médicos e de negócios totalmente integrados.

O QUE JÁ EXISTE

Surgiram em todo o Brasil, nos últimos 10 anos, projetos pioneiros de cidades digitais, nascidos da iniciativa de prefeitos de pequenos municípios do interior – como Sud Menucci, no Estado de São Paulo, e Piraí, no Rio de Janeiro – com a colaboração de empresas privadas, visando à difusão do acesso à internet em escolas, hospitais e repartições públicas.

São Paulo já tem, a rigor, boa experiência de internet grátis nos telecentros que funcionam há mais de cinco anos, com excelentes resultados, mas para grupos limitados de usuários de baixa renda – que são os que, realmente, precisam de internet grátis.

Muito mais racional e factível seria multiplicar esses telecentros por toda a cidade, informatizar escolas e hospitais, implantar centenas de hotspots por intermédio de parcerias público-privadas, como decolagem de um grande projeto de cidade digital

Mas isso não teria muito charme eleitoral.’

 

LIVROS
Ubiratan Brasil

A névoa da guerra

‘Em uma democracia, a morte de cada soldado é um evento público. Jornalista do Washington Post durante mais de 20 anos, Rick Atkinson acompanhou a busca e finalmente a localização do corpo de um sargento americano, encontrado em uma cova rasa ao sul de Bagdá, no Iraque. Era manhã de um sábado de abril de 2003 e Atkinson, consagrado historiador militar e ali na função de correspondente de guerra, notava que algo havia mudado ao se questionar sobre os motivos daquela morte. ‘Todos percebíamos que o Iraque estava envolvido em uma luta perpétua. E que a vitória em uma guerra global contra o terrorismo significava, na melhor das hipóteses, conter o inimigo em vez de derrotá-lo, e que não haveria mais belos dias em paz convencional.’ Tal desilusão desliza com aspereza ao longo de Na Companhia de Soldados (tradução de Leo Oliveira, 322 págs., R$ 45), livro em que Atkinson narra os quase dois meses em que viveu a guerra ao lado de uma divisão do Exército americano, obra que a Bertrand Brasil lança nesta semana.

Trata-se de um lamento desalentador sobre os ideais perdidos dos EUA e das fronteiras desbravadas. ‘Por quase dois meses (…) observei como a guerra é travada em uma era em que as guerras são pequenas, seqüenciais, expedicionárias e sem-fim’, afirma ele, na introdução. ‘Sempre acreditei que o estresse excessivo do combate é um grande revelador de personalidades, trazendo à tona traços elementares de um homem, da mesma maneira que um prisma disseca a luz revelando o seu espectro interno.’

Naqueles dias de 2003, Atkinson manteve um íntimo contato com a rotina da 101ª Divisão Aerotransportada, guarnição na qual ficou integrado, compartilhando os medos e anseios dos soldados e até participando de reuniões secretas com o alto comando. E, nessa busca em descobrir a essência do soldado americano atual, ele acrescentou uma nova vertente a um ramo particular da literatura, aquela baseada em cobertura de guerra e enriquecida pelos relatos de aventureiros de Hemingway, Kipling, John Reed, Evelyn Waugh e Richard Harding David, entre outros.

Mas, ao contrário dos atos heróicos que marcam a maioria daqueles autores, Atkinson oferece uma dimensão realista e até inusitada de seus protagonistas. A guerra para derrubar o ditador Saddam Hussein foi desigual – o jornalista observa que, enquanto o poder de combate americano contou com uma gama enorme de armamentos e inovações tecnológicas, a resistência iraquiana foi frágil e profundamente inepta. ‘Mas o envolvimento americano nas questões do Oriente Médio está, como sempre, relacionado ao nosso vício incondicional pelo petróleo’, comenta ele, ciente do crescimento do antiamericanismo no mundo com a decisão de George W. Bush invadir o Iraque, em resposta aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. ‘Com isso, houve uma profunda perda de confiança nos Estados Unidos por parte de amigos e aliados estrangeiros, exigindo um difícil trabalho (que, espero, seja exercido por Barack Obama) para provar novamente que somos uma superpotência moral, assim como industrial e militar.’

O teor político, embora importante, não domina a narrativa de Atkinson, cujo sensível olhar para o interesse humano foi premiado com o Prêmio Pulitzer. Ele oferece um curioso retrato dos soldados durante sua adaptação e preparação para o ataque. Antes da batalha, um supermercado, por exemplo, foi montado em uma enorme tenda, onde todos podiam comprar desde produtos de primeira necessidade (com o tempo, descobriu-se que um rolo de papel higiênico se tornou item obrigatório em qualquer mochila) até motocicletas.

O clima de tranqüilidade e descontração, no entanto, é aparente – no refeitório, soldados se empanturravam de sorvete e guloseimas, nem tanto pelo prazer de comer, mas para tê-los na lembrança. As barbearias trabalhavam sem parar, pois ninguém desejava ser incomodado pelo cabelo no deserto. ‘Também notei que as pichações nos banheiros lidavam com temas como infidelidade e marido traído. A traição parecia atormentar a mente dos jovens soldados’, observa Atkinson. ‘Os comentários políticos também ficaram mais ácidos, como a pichação que dizia: ?Se você tivesse votado no (Al) Gore, não estaria aqui?.’

Outra curiosa revelação é a presença de advogados no campo de batalha. Na divisão na qual Atkinson ficou alojado, eram 17 procuradores, além de dois advogados de defesa. Eles basicamente negociavam com autoridades locais as condições do acordo de paz. Cuidavam também da revisão dos contratos assinados pelo Exército com vendedores locais. Afinal, a chegada dos americanos inflacionou serviços entre os iraquianos, que dobraram, por exemplo, o valor do aluguel de um veículo com tração nas quatro rodas.

A proximidade permitiu ainda que o jornalista descobrisse detalhes sobre a arte do comando. ‘Presenciei uma grande quantidade de paciência e autocontrole por parte do comandante, o general-de-divisão David Howell Petraeus’, afirma. ‘Acompanhei de perto ele e seus subordinados aperfeiçoarem-se enquanto lutavam com milhares de charadas táticas, desde pousar um helicóptero em uma bacia de areia fina até tomar de assalto uma grande cidade xiita. A tarefa parecia tão monumental quanto perpétua.’

Atkinson permaneceu ao lado de Petraeus praticamente todos os dias, acompanhando episódios que ficarão retidos em sua memória por muito tempo. Como uma apavorante viagem de helicóptero em meio uma terrível tempestade. Ou a expressão de Petraeus quando as primeiras baixas do agrupamento foram provocadas por um sargento americano assassino, que lançou granadas em suas tendas logo no começo da guerra. Ou ainda a sangrenta investida em Najaf, em que o Exército utilizou toda sua moderna parafernália. Vitórias determinantes, mas que não conseguiram afastar o fantasma da desconfiança mundial sobre os EUA.’

 

Elias Thomé Saliba

Cadernos de honestidade e fé

‘A guerra anulou por completo toda experiência. O luto e a perda traumatizaram de tal forma os homens, que eles voltaram das batalhas completamente emudecidos, incapazes sequer de reconstituírem verbalmente os acontecimentos. Sem imaginar que a escala de perversidade da 2ª Guerra seria ainda maior, foi assim que Walter Benjamin diagnosticou a geração que passou pela 1ª Guerra. Mas ele se esqueceu ainda daqueles que desenvolveram uma espécie de ansiedade pelo trauma, fixando-se na guerra, ensaiando-a repetidas vezes e criando, por assim dizer, uma espécie de ansiedade autoprotetora em relação ao conflito, que lhes possibilitou assumirem sua condição posterior de testemunhos e narradores. Assim foi com Primo Levi, Hemingway, John dos Passos, Sartre e tantos outros.

Assim parece ter sido também com Vasily Grossman, que nos deixou um testemunho forte, duro e comovente das encarniçadas batalhas da frente oriental durante a 2ª Guerra. Nascido na Ucrânia, numa família de judeus assimilados, Grossman estudou química em Moscou, trabalhou como engenheiro em minas de carvão e começou a escrever na década de 1930, em plena conjuntura dos expurgos stalinistas. Visto como politicamente ingênuo, escapou por pouco das investigações, abrigando-se com amigos no Sindicato dos Escritores Soviéticos até 1941 quando, ao receber a notícia da invasão alemã, apresentou-se como voluntário ao Exército Vermelho. Foi considerado inapto, mas acabou enfim por conseguir o posto de enviado especial do Estrela Vermelha – jornal do exército soviético. Um Escritor na Guerra (Objetiva, 496 págs., R$ 48, tradução de Bruno Casotti) compõe-se dos cadernos nos quais Grossman registrou seu testemunho do período que passou junto ao exército russo, entre 1941 e 1945. Registro valioso, detalhadíssimo e, obviamente, ajustado à visão que o próprio Exército Vermelho tinha em relação à guerra. Grande amigo de Grossman, Ilya Ehremburg brincava, chamando-o de ‘um bolchevique não partidário’. Grossman acreditava unicamente naqueles com os quais ele lutava junto – e, sobretudo, que o heroísmo do Exército Vermelho em Stalingrado não apenas venceria a guerra, mas mudaria a sociedade soviética para sempre. Ledo engano, já que logo após o fim da guerra, Stalin apertaria novamente os parafusos da repressão.

Ainda assim há momentos de pura reportagem, de uma honestidade quase chocante, nos quais Grossman exercita, sem florilégios, seu alto poder descritivo. O ponto alto é a descrição de Treblinka, que ele visitou poucas horas após a saída dos alemães, entrevistando vários sobreviventes e camponeses locais. Ele reconstitui com precisão todas as etapas da preparação para o genocídio: da triagem dos despojos das vítimas até o corte dos cabelos – depois usados como matéria-prima de colchões ou de cordas para submarinos. O relato é tão cruento e detalhado que depois chegou a ser usado como prova no tribunal de Nuremberg. Quando voltou para Moscou, depois de três anos na guerra, Grossman sofreu um colapso causado por exaustão nervosa, náusea e estresse. Aquela ansiedade autoprotetora de escritores vocacionados à guerra tinha chegado ao seu limite. Mas não ao ponto de impedi-lo de continuar a escrever.

Por mais que Grossman tenha chegado a odiar o stalinismo com suas mentiras constantes e traições forçadas, ele nunca perdeu a fé no simples soldado russo e nos enormes sacrifícios de uma guerra patriótica. Não consegue esconder sua empatia com o engajamento apaixonado daqueles soldados simples, sobretudo dos seus compatriotas ucranianos. Seu primeiro romance sobre Stalingrado, Por Uma Causa Justa, só saiu em 1952, depois de forçado a fazer muitas mudanças no texto, tornando-o politicamente aceitável. Alguns chegaram a indicar o romance para ser premiado, mas depois de leitura mais atenta, perceberam o escândalo de ele ter escrito sobre a batalha de Stalingrado sem mencionar Stalin uma única vez! Intimado a escrever uma carta de arrependimento, só escapou do Gulag por uma contingência: a morte de Stalin, em 1953. Nos anos seguintes, Grossmann trabalhou na sua maior obra, Vida e Destino, cujo epicentro continuava a ser Stalingrado. Ele acreditava que Kruchev tinha aberto o caminho para que a verdade fosse dita. Novo erro de avaliação: em fevereiro de 1961, oficiais da KGB saquearam os apartamentos de Grossman e do seu datilógrafo, confiscando todos os manuscritos, incluindo o papel carbono e a fita da máquina de escrever. ‘Isso não pode ser publicado, pelo menos nos próximos 200 anos!’ – foi o veredicto de Mikhail Suslov, chefe da seção cultural do Partido Comunista. Grossman morreu três anos depois, esquecendo-se de que uma cópia do manuscrito tinha sido deixada com um amigo, que levou o microfilme para a Suíça e providenciou a publicação.

‘O leitor precisa acreditar em mim, é muito difícil escrever isso. Alguém poderia perguntar: Por que escrever tudo isso? Por que lembrar tudo isso? – porque é um dever do escritor contar essa terrível verdade, e é um dever civil do leitor aprender isso. Todos os que virarem as costas, que fecharem os olhos e seguirem adiante estarão insultando a memória dos mortos’. Quase se desculpando, Grossman escreveu isso logo depois de passar por Treblinka, olhando para o chão ainda cheio de restos de cabelos – loiros, ruivos, castanhos – que escaparam à apressada operação de ‘limpeza’ organizada pelos alemães. Mais do que a realização cabal da vocação de repórter ou escritor, sua decisão de contar, de escrever, de sair do mutismo provocado pelo luto e pela perda, vinha de uma inspiração longínqua – Pascal, desta vez relido por Tolstoi, quando escreveu: ‘Ninguém morre tão pobre que não deixe ao menos uma lembrança atrás de si’.

Elias Thomé Saliba é historiador, prof. da USP e autor de Raízes do Riso: A Representação Humorística da História Brasileira’

 

MACHADO DE ASSIS
Daniel Piza

Mitos machadianos

‘Machado de Assis dizia que a opinião pública se divide entre graves e frívolos, e cem anos depois de sua morte a divisão continua a dominar a visão de sua obra e importância. Os graves vêem nele ou o escritor oficial que a Academia Brasileira de Letras propaga ou o crítico social que ele nunca se bastou em ser. Os frívolos esquecem que seu humor era integrado ao seu ceticismo e que suas paixões eram mesmo Shakespeare, Beethoven e Schopenhauer, não aquilo que o Brasil transformaria em estigmas de identidade no século 20. Como resultado, há muitos mitos, meias-verdades e especulações sobre ele:

Machado era um homem recluso e melancólico – É assim o ‘Machadinho’ de sua primeira biógrafa, Lúcia Miguel Pereira, mas o fato é que em sua juventude Machado foi extremamente ativo e espirituoso, como relataram amigos como Arthur de Azevedo e Salvador de Mendonça. Machado passou por todas as classes sociais de seu tempo e testemunhou a transição acelerada do Rio para a modernidade. Participou de sociedades literárias e musicais e foi um bajulador de dom Pedro II. Estava mais para integrado do que apocalíptico. Só no final da vida é que se fechou cada vez mais na casa do Cosme Velho, doente e, depois da morte de sua amada Carolina em 1904, muito deprimido.

Machado foi um crítico da sociedade burguesa – Críticos e sociólogos marxistas quiseram fazer de Machado um analista engajado da ‘elite’ de seu tempo, em cujo ócio e vaidade teria mostrado como as idéias vindas da Europa serviam apenas de verniz para os privilégios. Machado, segundo Roberto Schwarz, seria um crítico do ‘formalismo’ e do ‘universalismo’ da civilização burguesa, de suas idéias liberais e iluministas. Na realidade, Machado, que era fã da Inglaterra (onde o capitalismo deslanchou), viu muito mais longe: viu que a sociedade brasileira era pré-capitalista e os privilegiados tinham mentalidade feudal, nada burguesa, em sua defesa dos interesses próprios e não de valores universais. Além disso, não poupou a emergente classe média, as Capitus e os Escobares: não tinha parti-pris de classe.

Machado não teve filhos porque não quis transmitir a miséria humana – Aqui o erro muito comum é o de confundir o que seus personagens falam e o que ele pensava. Machado em pelo menos duas ocasiões lamentou não ter filhos. Provavelmente não os podia ter por causa de suas doenças, como a epilepsia, para a qual tomava um remédio chamado tribomureto que tinha sérios efeitos colaterais. É o mesmo motivo por que nunca pôde viajar para o exterior, embora sonhasse conhecer lugares como a Itália. A frase final de Brás Cubas é um gesto de orgulho de um homem que queria salvar a humanidade e não salvou, logo, seu filho não estaria a salvo. Quanto à hipótese de que Mario de Alencar, filho de José de Alencar, seria filho de Machado, não passa de especulação.

Machado tinha como alvo central a ciência e o positivismo – O alvo central de Machado eram as religiões, sobretudo a católica, mas também outras como o espiritismo. Machado era tão voltairiano, tão anticlerical, que recusou o padre em seu leito de morte – uma informação que na biografia de Raimundo Magalhães Jr. parece um detalhe qualquer. Sua obra é toda marcada por sátira à credulidade cristã dos brasileiros, a começar pelos da classe alta. Quando criticou o positivismo, foi ciente de que se tratava de uma ideologia que pretendia uma conciliação plena entre religião e ciência, tal como os xaropes que prometiam curar as dores do corpo e as da alma. Machado viu que a ciência, como em O Alienista, estava se comportando da mesma maneira dogmática que a religião. No entanto, compreendeu a Teoria da Evolução de Darwin, criticando justamente sua apropriação para uma sociologia dos ‘mais fortes’.

Sabemos muito sobre a vida modesta de Machado – Sobre sua infância e adolescência sabemos muito pouco. Biógrafos tomaram como fatos o que não passava de especulações, como a de que ele foi coroinha ou a de que ele aprendeu francês com a mulher de um padeiro na esquina. Não existe nada documentado sobre isso, nem em papéis nem em testemunhos. Nada. O que sabemos é que Machado teve uma criação rara em sua época, de pais alfabetizados e acesso aos clássicos da literatura, tanto que aos 15 anos já o vemos poeta. Machado nunca foi rico, mas viveu bem, especialmente a partir dos 30 anos, quando se casou com Carolina, e galgou firme nas duas carreiras que teve, a de funcionário público e a de homem de letras.

Machado sabia que a República viria com a Abolição – Machado tinha muitas idéias liberais, inclusive a defesa do voto feminino, mas era um monarquista convicto, tal como seu amigo Joaquim Nabuco. E sonhava com o Terceiro Reinado: a princesa Isabel assinaria a Abolição e sucederia o pai, preservando o regime. Quando veio a República, no ano seguinte, ele ficou dois anos sem escrever crônicas, assim como Nabuco interrompeu seus diários. Embora abolicionista e desiludido com dom Pedro II, Machado não via com bons olhos a nova geração, materialista e carreirista. Suas crônicas sobre o sistema financeiro no fim do século mostram um nostálgico, sem instrumental suficiente para entender a economia moderna. Ele era conservador em muitos aspectos, liberal em outros; essas duas naturezas eram simultâneas.

Não existem duas fases na obra de ficção do autor – É óbvio que existem; basta um cotejo rápido entre Iaiá Garcia (1878) e Brás Cubas (1881). Sim, como ele mesmo disse, há ‘brotos’ nos primeiros quatro romances de seu ‘estilo maduro’. Mas há, portanto, um estilo maduro, e ele começa com Brás Cubas, livro de estilo tão pouco convencional, tão aberto ao humor e ao pessimismo no mesmo lance, que ninguém poderia imaginar lendo sua obra anterior. Se os temas que o obcecam – como o adultério – o acompanham desde cedo, sua genialidade só se expressa mesmo a partir da década de 1880, depois que o Segundo Reinado vive crise e Machado precisa fazer retiro em Friburgo para cuidar da saúde.

Capitu é vítima da narração de Casmurro – Essa é uma leitura tão pobre de Dom Casmurro quanto a que pressupõe que o livro seja apenas sobre a traição de um homem por sua mulher com seu melhor amigo. Se a intenção de Casmurro fosse apenas manipular o leitor para enxovalhar a reputação de Capitu, bastaria a ele acumular muito mais pistas de que houve a traição. Afinal, o que há é muito pouco: alguns encontros mal explicados entre ela e Escobar e, acima de tudo, o olhar que ela dirige a seu cadáver. Casmurro escreve com ‘escrúpulos de exatidão’, mas é o primeiro a confessar que seu livro é omisso, cheio de lacunas, a maior delas sendo ele mesmo. Não há nada de errado em supor que Capitu o traiu, a não ser que você, leitor, seja moralista; como disse Lygia Fagundes Telles, bem que Bentinho mereceu. Mas o assunto maior do livro é o efeito que essa hipótese causa na vaidade romântica de Bentinho, que, como quase todos os protagonistas machadianos, tem delírios de grandeza e termina a vida sem nada. Outra besteira é equipará-lo a Otelo – ele mesmo diz que não tem ‘a fúria do mouro’ – ou a Hamlet, afinal um homem de ação. Bento é passivo e covarde e acha que o mundo gira em torno de seu umbigo.

Machado é um pós-moderno, não um criador de personagens – Nesse equívoco até críticos como Antonio Candido caíram. Como dizer que Brás, Quincas, Rubião, Bentinho e Capitu não são grandes personagens, não compõem a galeria mais rica de figuras da ficção brasileira? Afirmam que é por culpa de Machado que a literatura urbana brasileira não tem essa força, ao passo que a literatura não-urbana tem nomes como Jorge Amado, mas esquecem que Capitu é uma personagem muito mais viva do que Gabriela para o leitor atual. Machado não é Borges, não é um autor que é mais leitor do que contador de histórias. Ele une a ficção realista, descritiva, com a metalinguagem e a meditação. Seus leitores se transportam para sua época e lugar, ao mesmo tempo que se perguntam sobre o que é real ou imaginário.

Machado não foi um gênio, porque precisou trabalhar muito – Essa frase trai a vontade de anunciar ‘novidades’ nos estudos sobre Machado (muitos jornais e revistas tentaram ir nessa linha em torno do centenário, sem sucesso nenhum), mas não passa de uma besteira: qual gênio não precisou trabalhar muito? Machado foi um gênio porque deixou uma obra rica, complexa, atual, cuja marca é o fato de ser sempre relida e interpretada sem que se esgote com isso. Não é o ‘milagre’ latino-americano que críticos como Harold Bloom viram, porque surgiu num contexto histórico – que incluía uma das mais brilhantes gerações de intelectuais brasileiros, senão a mais – e com ele se relacionou profundamente. Gênios não nascem por combustão espontânea. Machado soube ser nacional e internacional ao mesmo tempo. Seus leitores, nem sempre.’

 

ORWELL
Luiz Zanin Oricchio

Orwell, anarquista conservador

‘Philippe Sollers comenta, na revista Le Nouvel Observateur, duas novas biografias de George Orwell (George Orwell, une Vie, de Bernard Crick, e Orwell, Anarchiste Tory, de Jean Claude Michéa), além de uma coletânea de textos do autor de 1984 – A ma Guise. Chroniques.

Quer dizer, Sollers comenta os livros à maneira de um escritor criativo. Não se ocupa em resumi-los, ou avaliar seus pontos fortes ou fracos. Busca uma questão, um tema, que funcione como linha de pensamento subliminar, e que conduza a uma de suas preocupações como intelectual. E qual é essa linha abaixo da superfície? Um velho cavalo de batalha das controvérsias políticas do século 20: com sua crítica do stalinismo, teria Orwell se convertido em empedernido anticomunista?

Nada mais falso, de acordo com a interpretação de Sollers. Orwell manteve-se sempre crítico, e portanto sempre de esquerda. É sua tese. Mesmo se Sollers leve em conta que ‘Orwell foi o primeiro a compreender que o fascismo não era, como toda a esquerda repetia na época, um câncer do capitalismo avançado, mas uma sinistra perversão do socialismo’. Êpa, eis aí um ponto polêmico. Ainda mais quando respaldado por uma das crônicas de Orwell, na qual ele afirma que, depois de ter conhecido por dentro o funcionamento dos partidos de esquerda na Espanha, havia tomado horror pela política.

Pode parecer um comentário anticomunista, mas Sollers recomenda cuidado. Manda reler os textos de Orwell sobre sua experiência com o proletariado inglês, uma reserva de ‘decência’, como ele dizia e escrevia. Um amigo de Orwell, Cyrill Connolly, se queixava de que Orwell não podia assoar o nariz sem fazer um sermão sobre as más condições de trabalho nas indústrias de lenços. E vai por aí.

Eis o nó da questão: Orwell podia permanecer profundamente de esquerda apenas e tão somente porque garantia para si a liberdade de criticar tanto os atos quanto a linguagem da esquerda. Sollers relembra que a questão da linguagem, em particular, era uma das obsessões de Orwell. Basta lembrar da ‘novilíngua’ de 1984, forma de dominação que consiste na apropriação e deformação do sentido das palavras, a tal ponto que uma casa de tortura podia ser chamada de Ministério do Amor, ou algo que o valha. Quando as palavras perdem sentido, o homem também se perde. A crítica implacável pode ser um antídoto a essa desumanização – eis o que, no fundo, sustentava esse anarquista conservador.’

 

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O Estado de S. Paulo – 2

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