Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Folha de S. Paulo

SEQÜESTRO EM SANTO ANDRÉ
Carlos Heitor Cony

Um exemplo

‘RIO DE JANEIRO – Refletindo a comoção pública, e de certo modo incentivando-a, a televisão, o rádio e a mídia em geral deram minuciosa cobertura do seqüestro e morte da menina Eloá -vítima de um crime passional que, por coincidência, provocaria outros casos iguais.

Não pretendo chover no molhado lamentando o fim de uma vida de 15 anos. Do abominável episódio policial pincei um detalhe que, no meu entender, merece meditação. A família da menina autorizou a doação de seus órgãos. Milhares de pessoas estão na fila de espera, e a oferta é rara, incerta, cercada ainda de preconceitos.

Sacrificada brutalmente em plena adolescência, não se pode dizer que ela continuará vivendo porque seu coração, rim, pâncreas, pulmão e córnea serão transplantados para outros organismos. Seria uma licença poética e médica. Mas a doação de órgãos sadios é uma prática ao mesmo tempo solidária e científica, que em alguns casos aumenta a expectativa de vida e na maioria dos casos melhora substancialmente a sua qualidade.

No caso de Eloá, foi a família que autorizou a doação. São raros ainda os casos em que as vítimas, de mortes violentas ou não, deixam instruções a respeito. Afinal, todos nós somos vítimas potenciais da fatalidade ou de doenças que poupam determinados órgãos.

É evidente que ninguém deseja uma humanidade de frankensteins, nem o transplante de órgãos chegaria ao estágio macabro da ficção. Trata-se de uma etapa da ciência e da técnica cujo desenvolvimento pode tornar uma vida mais útil mesmo depois que ela acaba.

Afinal, o único problema que o homem nunca poderá resolver é o de sua finitude. Parodiando o poeta francês Henri Régnier, já parodiado por Vinicius no famoso soneto, que a vida seja infinita enquanto dure.’

 

 

Renato Mezan

Eu sou o cara

‘Um dos aspectos mais comentados do seqüestro que comoveu o país nas duas últimas semanas foi a atuação das emissoras de TV. Escudadas na ‘missão de informar’ -mas, na verdade, sequiosas de superar a qualquer custo a audiência das demais-, acabaram fornecendo a Lindemberg Alves informações preciosas sobre a posição e as ações dos policiais e, com sua irresponsabilidade, provavelmente contribuíram para o desfecho trágico do episódio.

‘Suave, mari magno turbantibus aequora ventis, e terra magnum alterius laborem spectare’ (é doce, quando no vasto mar os ventos sacodem as águas, contemplar da terra firme o trabalho de um outro), escreveu Lucrécio em seu tratado ‘De Rerum Natura’ [Da Natureza das Coisas].

Sem querer arvorar-me em juiz do que outros acharam correto fazer, pergunto: a espetacularização de situações como essa não acirra ainda mais as forças psíquicas que se podem supor em ação na mente de um criminoso?

Criminoso, sim -pois Eloá Pimentel não morreu por causa da televisão nem porque os policiais invadiram o cativeiro, e sim porque seu ex-namorado atirou contra ela.

Mas cabe perguntar que efeitos pode ter produzido a transformação dele -enquanto tinha uma arma na mão- em celebridade nacional.

Angústia

Os trechos de conversa entre o seqüestrador e o capitão Adriano Giovanini publicados pela imprensa sugerem que eles não foram pequenos -como aliás notaram tanto o professor Norval Batista Jr., da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), quanto o coronel Eduardo Félix: ‘Ele queria provar a todo instante que tinha o domínio da situação’, disse o militar; ‘a mídia exacerbou a psicopatia e a megalomania que estavam em jogo’, explicou o especialista.

As declarações de Lindemberg e o modo como se portou durante aqueles quatro dias terríveis sugerem que se trata de uma pessoa muito frágil.

No que consiste essa fragilidade? De modo sumário, numa organização da personalidade que evidencia mecanismos mentais muito arcaicos, uma angústia extremamente intensa, e modos de lidar com ela que, em vez de a diminuir, potencializam a sensação de estar sendo atacado por forças maléficas contra as quais é preciso se defender a todo custo.

Partamos do que disse o rapaz: ‘Meu problema é com a menina que tá aqui na minha frente. Tenho que desenrolar…’. Desenrolar o quê? O que ele via em Eloá, que a tornava tão indispensável a sua sobrevivência psíquica? Claramente, bem mais que um objeto de desejo ou de amor.

Tudo indica que havia projetado nela algo de si mesmo, uma parte ao mesmo tempo amada, odiada e temida, que nem podia recuperar nem tolerar que ‘fosse embora’.

Projeções maciças

Esse modo de estabelecer vínculos é menos raro do que se poderia supor. Ele tem o nome de ‘relação de objeto narcísica’ e, quando se instala, acarreta conseqüências bastante graves -embora deva ficar claro que, no mais das vezes, não levam o sujeito a matar alguém.

Em primeiro lugar, a relação com os outros significativos (pais, namorados, cônjuges) é permeada por projeções maciças: eles se convertem em artigos de primeira necessidade, um pouco como a droga para o adicto.

Deles se exigem uma presença física e um grau de atenção que comprovem o quanto amam o sujeito; mas, como o que este almeja é fundir-se com o objeto para poder controlá-lo, por assim dizer, ‘de dentro’, o fato de que o ser amado é diferente dele e tem vida própria é sentido como insuportável.

A ameaça de o perder (real ou imaginária) desencadeia uma angústia aterradora, que freqüentemente se exprime por ciúmes patológicos e por atuações que podem chegar à violência. Pelo que mostrou de si durante o seqüestro, Lindemberg parece fazer parte desse grupo de pessoas.

O termo que empregou -desenrolar- é revelador: precisava separar-se do que havia depositado na ex-namorada. Como diz a psicanalista Joyce McDougall (‘Le Théâtre en Rond’, em ‘Théâtres du Je’ [O Teatro de Arena, em Teatros do Eu]), o outro é aqui ‘considerado e tratado como uma parte de si mesmo que deve ser amada, odiada, dominada ou destruída’.

Mas isso era justamente o que não podia fazer: ‘Estou confuso’, ‘preciso ficar sozinho’, ‘olho para a frente e não vejo caminho’. A total impotência, impossível de ser admitida porque significaria a ruína de uma auto-imagem já muito pouco sólida, é negada pela megalomania: ‘Eu sou o cara’, ‘sou o príncipe do gueto, o cara que manda no local’.

A espetacularização do seu ato tresloucado, a evidência de que (como disse o coronel) havia conseguido mobilizar todo aquele aparato (e a atenção de milhões de telespectadores), teve o efeito de reforçar sua crença nessas fantasias grandiosas. Tudo indica que elas estavam a ponto de se converter em delírio: ‘Tem um anjinho e um diabinho, e o diabinho está falando mais alto’.

A projeção das dúvidas em entes sobrenaturais, devidamente divididos em um bom e um mau, fica aqui patente.

Também é visível o apelo a uma figura capaz de pôr fim àquela situação, alguém dotado de poder suficiente tanto para silenciar o diabinho quanto para fazer Eloá desistir de o abandonar: ‘Invade essa p… logo, mano.

Tô falando para você invadir. Se a polícia passar segurança, a gente sai de mãos dadas […], mas preciso de sinceridade.’

Bebês

A necessidade de controlar essa parte cindida de si é ilustrada por McDougall com um comportamento observado em alguns bebês que sofrem de insônia crônica: para adormecer, precisam sempre da presença física da mãe.

Isso sugere que não conseguiram interiorizar a imagem materna em grau suficiente para poder se apoiar nela e se desligar com tranqüilidade do estado de vigília; pode-se dizer que a figura da mãe não chega a se constituir no núcleo de um objeto interno ‘bom’ e reassegurador.

Por conseguinte, o sentimento de identidade desses futuros adultos -de ser ‘eu’, ao mesmo tempo separado dos outros e ligado a eles por vínculos sólidos e variados- permanece como que esburacado, gelatinoso, lacunar, exigindo ser reforçado pela injeção constante de ‘cimento narcísico’ por parte do objeto a quem se delegou essa função.

Se estas observações permitem formular uma hipótese sobre por que Lindemberg não pôde suportar ser abandonado pela namorada, por outro lado não o isentam da responsabilidade pelo crime que cometeu.

Isso dito, ficam as lições das quais bastante se falou nos últimos dias.

Mesmo que nada garanta que um seqüestrador enlouquecido não vá matar sua vítima, a polícia deve receber os equipamentos que poderiam ter monitorado o que se passava no apartamento, e as emissoras precisam rever sua idéia do que é informar: a busca insensata dos picos de audiência as levou a se tornarem cúmplices involuntárias de um assassinato. Que se lembrem disso quando o próximo seqüestrador apontar a arma para a sua vítima.

RENATO MEZAN é psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Escreve na seção ‘Autores’, do Mais! .’

 

 

TELEVISÃO
Daniel Castro

Em busca de audiência, até canal infantil vai exibir filme

‘O cinema está em alta na TV paga. A partir de novembro, o canal Sony deixa de ser exclusivamente de séries e passa a exibir longas-metragens. Também no próximo mês, o Warner Channel, que já apresenta três filmes por semana, passará a transmitir três por dia.

A ‘devoção’ ao cinema não pára por aí. No início de 2009, até o Animal Planet e o Discovery Kids terão longa-metragens. O Animal terá títulos em que animais são estrelas, como ‘King Kong’ e ‘K-9’. No Discovery Kids, os Backyardigans dividirão espaço com o porquinho Babe, o macaquinho George e o dinossauro Barney.

A opção por filmes têm uma explicação mercadológica.

Mais do que atrair público, filmes retêm telespectadores por períodos maiores do que seriados. No final das contas, isso pode ajudar determinado canal a subir algumas posições no ranking dos mais vistos. O TNT, que exibe filmes dublados e não inéditos, sempre foi um dos líderes da TV paga.

O Sony justifica a adesão ao cinema para ‘dar maior variedade à programação’. Terá duas sessões semanais (terças, 20h, e sextas, 22h) sempre para filmes leves ou cômicos, não inéditos, como ‘As Branquelas’, ‘Como se Fosse a Primeira Vez’ e ‘Melhor É Impossível’.

O Warner diz que vai passar filmes porque comprou ótimos títulos da Warner Bros., nenhum inédito. Entre os programados para novembro, estão ‘O Virgem de 40 Anos’, ‘Van Helsing’ e ‘Cassino’.

O PERSEGUIDO

Ângelo Paes Leme, 34, vai aparecer assim, de barba por fazer, em ‘A Lei e a Ordem’, seriado que a Record estréia em janeiro. Será Nando, um dos três protagonistas. ‘Nando é um homem simples, trabalhador, ex-paraquedista do Exército, vítima do desemprego’, define. Mora na casa do sogro, que bebe e o humilha. ‘Numa dessas humilhações, Nando dá um tiro no sogro e foge’, conta o ator. Passa a ser perseguido pelo cunhado, Romero, policial, e se refugia em um morro, onde se torna chefe do tráfico. ‘Ele é vítima das circunstâncias. Cai no crime para sobreviver, mas o tempo todo pensa em sair dali e viver com a mulher e a filha’, defende.

BOLLYWOOD É AQUI

A Globo tentou contratar uma estrela de Bollywood, como é chamada a indústria cinematográfica indiana, para participar de sua próxima novela das oito, ‘Caminho das Índias’. A língua, no entanto, era um obstáculo. Até que a emissora encontrou Bruna Abdalah (foto). Ela é brasileira e vive na Índia, onde faz algum sucesso -é VJ na TV e faz filmes bollywoodianos. Bruna participará dos primeiros capítulos da história de Glória Peres, como uma dançarina que se torna amiga da personagem de Betty Gofman.

AGORA VAI

O autor Aguinaldo Silva (‘Duas Caras’) trabalha atualmente no roteiro do filme ‘Roque Santeiro’. A novela, de 1985, um dos maiores sucessos de todos os tempos, foi escrita por Silva e Dias Gomes. Prometido há alguns anos, o filme deve entrar em produção em 2009. ‘Tenho que apresentar um primeiro tratamento do roteiro até o final de dezembro’, diz Aguinaldo, de férias da TV, mas não muito. Paralelamente, ele desenvolve um projeto de série, ‘Cinqüentinha’, sobre mulheres com 50 anos.

‘SIMPSONS’ LIDERA

Exibido em agosto pelos canais Telecine, ‘Os Simpsons – O Filme’ (foto) é o longa-metragem mais visto da TV paga neste ano (até setembro). Na transmissão dublada, pelo Telecine Pipoca, a animação foi vista em média por 283,1 mil pessoas por minuto. Sua estréia, no Telecine Premium, teve audiência média de 210 mil telespectadores em todo o país, segundo levantamento inédito obtido pela Folha, com dados do Ibope. A segunda maior audiência ocorreu em agosto, no canal TNT, com ‘Contra o Tempo’, visto por 262,9 mil pessoas por minuto. ‘Dragão Vermelho’ (TNT, janeiro) e ‘Golpe Baixo’ (TNT, maio) completam o ranking dos longas mais vistos da TV paga.’

 

 

Audrey Furlaneto

Globo ‘adestra’ sotaques de atores para soar realista

‘‘Ô, fia, tá boa? Vamo’ entrando, vamo’ entrando’, diz a atriz Vera Holtz, ao abrir a porta de seu apartamento, no Rio de Janeiro. Já do lado de dentro da casa, o que se ouve é uma seqüência de ‘erres’ arrastados -Vera Holtz, afinal, é de Tatuí. E, fora da novela ‘Três Irmãs’, ela pode relaxar com o sotaque do interior de São Paulo.

Em cena, não. Para fazer o papel da vilã Violeta, rica e de família tradicional, numa cidade ‘imaginária’ e praiana no Rio de Janeiro, ela precisou, digamos, suavizar os ‘erres’ de Tatuí. ‘Violeta é uma vilã clássica, quer defender família e propriedade. Não queria ter o filtro do sotaque’, diz a atriz, que já atuou em 16 novelas da Globo -até então, sem ‘suavizar’ tanto o jeito de falar.

‘Estou numa novela de praia no Rio, perto de surfistas. E deixei Tatuí em 1971. Moro no Rio há 35 anos. Não ter mudado até hoje é muito amor [carregando no ‘erre’] pelo sotaque, né?’

Adestradora de sotaque

O fato é que a vilã Violeta ainda não arrasta as consoantes como um carioca de origem, mas os sons de Tatuí já não fazem tanto parte de sua fonética. ‘Você precisa colocar a língua mais perto dos dentes, sem encostar no céu da boca’, explica Vera, que faz treinamento com a fonoaudióloga Maria Silvia Siqueira Campos.

Ela, aliás, cuida de sotaques e ‘curvas melódicas’ dos atores da Globo há quatro anos -mas, há 12 anos, começou a atender atores de teatro, como Marcos Caruso e Irene Ravache em ‘Intimidade Indecente’.

Na TV, a especialista em voz e mestre em fonoaudiologia é tutora de Grazielli Massafera -original de Jacarezinho (PR), no ar em ‘Negócio da China’, como uma jovem carioca-, treinou Cléo Pires e Bruno Gagliasso -atores do Rio que estavam em novela com núcleo paulista, ‘Ciranda de Pedra’- e fez da carioca Camila Pitanga uma doméstica no paulistano Bexiga em ‘Belíssima’ (2005).

‘O importante é manter a essência do ator’, diz a fonoaudióloga. ‘O ator tem a capacidade de manter e, ao mesmo tempo, limpar o sotaque.’

Ao exemplo da atriz Grazielli Massafera: ‘A primeira coisa com a Grazi foi trabalhar a percepção auditiva dela, para ver onde o sotaque é mais forte. E era, justamente, no ‘erre’ do interior. E ela tem uma coisa carismática, que às vezes cai para o mineiro. São coisas que a gente vai suavizando’.

E, depois de muito repetir as falas, lá se foi o ‘erre’ de Jacarezinho de Grazi Massafera. Mas, defende a fono, ‘em nenhum momento, nem por parte da direção, nem por parte do autor, ouve a decisão de fazer dela uma carioca da gema’.

Em alguns casos, quando a novela tem núcleo em Minas Gerais, caso de ‘Desejo Proibido’ (2007), a fono chega a pedir aos ‘alunos’ que leiam Guimarães Rosa durante a aula, a fim de se ‘ambientarem’ na região.

Localizando a língua

O trabalho com o elenco começa dois ou três meses antes da novela. Maria Silvia, depois, vai ao Projac e, antes do ‘gravando’, apara arestas nas falas dos atores com que trabalha.

A dificuldade varia de acordo com ‘a dedicação e a vontade’ do aluno, mas outros fatores, como tempo de carreira, interferem. ‘Por exemplo, quando se trabalha uma Camila Pitanga, todo mundo acha muito estranho outro sotaque. Teve gente que achou que ela estava forçada, mas todo mundo a conhece como Camila Pitanga [imitando um carioca], morena, carioca, né? O fato de ela estar falando diferente causa estranhamento’, conta.

‘É uma questão também de educação. A gente tem que mostrar como é que se assiste a uma novela, a um filme. Se não a Camila Pitanga ia ser Bebel [garota de programa de ‘Paraíso Tropical’] em toda novela.’

Para não se ‘repetir’ ou ter o sotaque esperado em cada novela, o primeiro passo do ator global, diz Maria Silvia, é ‘fazer treinamento auditivo’ -ou seja, ouvir o próprio sotaque e o do personagem- e perceber o posicionamento da língua.

A saber: ator de Tatuí, Jacarezinho ou de outras cidades do interior tende a ‘enrolar’ a língua na direção do céu da boca para emitir o ‘erre’; o paulistano esconde a sua atrás dos dentes; os cariocas, enfim, ‘deixam a língua no meio do caminho’.’

 

 

Bia Abramo

Números, noticiários e novelas

‘SEPARADOS, OS números parecem falar de duas coisas diferentes. Juntos, nem tanto. Na segunda-feira, 21, a coluna Outro Canal informou que a audiência no final de semana posterior ao desfecho do seqüestro de Eloá subiu 15% na Grande São Paulo. No dia seguinte, ela mostrou os números relativos às novelas da Globo -em todos os horários, 18h,19h e 21h, as novelas estão nos mais baixos índices já registrados desde os anos 70.

Não que a sua principal concorrente, a Record, esteja muito melhor das pernas: suas duas novelas também tiveram quedas significativas nos últimos meses, empacando em índices próximos aos 15%. Juntemos mais um dado: em abril, durante a cobertura extensiva (e, diga-se, abusiva) do caso Isabella, os espectadores correram para frente da TV e chegaram a aumentar em 46% a audiência dos telejornais.

Os dois episódios têm características de enorme apelo humano. No mais antigo, tratava-se da morte de uma criança de seis anos, cujos principais suspeitos eram os pais. Neste mais recente, de um seqüestro domiciliar longuíssimo com desfecho trágico, envolvendo um homem de 22 anos inconformado com um rompimento amoroso, a ex-namorada de 15 e uma amiga desta, também muito jovem. É da natureza desse tipo de acontecimento que eles atraiam a atenção; explorados à exaustão, como tornou-se a regra, têm causado fenômenos que beiram a histeria -e, para a alegria das emissoras, traduzem-se em números gordos.

Para além dos aspectos, digamos, naturais e artificiais desse afluxo mais intenso de audiência, se pode supor, como hipótese, que seja um sintoma de mudança de comportamento do telespectador. Se as novelas perdem, sistematica e consistentemente audiência, e o noticiário espetaculoso do drama humano a levanta, talvez não seja apenas porque o telespectador escolha mais o que assistir. Ou, por outra, quando assistir o quê.

Na verdade, autores e emissoras já sabem disso há tempos, tanto que cada vez mais lançam mão de ‘esteróides de audiência’, ou seja, divulgam por antecipação o dia em que fulana vai aparecer pelada, ciclana vai apanhar ou algum elemento-chave da trama vai ser revelado. A quantidade de telespectadores fiéis a determinados horários e programas (que podem e querem investir seu tempo todos os dias, durante meses, no acompanhamento de um conjunto restrito de histórias) diminuiu. E a tendência, parece, é continuar diminuindo.’

 

 

CINEMA
Irene Machado

Quanto vale um filme

‘Lá pelos anos 20 do século passado, o cineasta russo Serguei Eisenstein foi desafiado a escrever sobre algo que não existia: a cinematografia do cinema japonês.

O Japão, segundo ele, desenvolvera uma indústria de produção e distribuição de filmes, mas os filmes não realizavam a linguagem da montagem, marca indelével da cinematografia do construtivismo russo.

A única saída era procurar no teatro, nos grafismos das artes visuais e nos ideogramas princípios da montagem inexistente no cinema. Aqueles foram tempos de experimentação com a linguagem das imagens em movimento.

Daí nasceram conceitos e aproximações com a ciência, a literatura e as artes.

As cinematografias nacionais continuam na pauta das discussões nestes tempos de contatos interculturais diversificados. Contudo, a montagem não é mais medida.

Em contato com meios de comunicação, os cinemas dos quatro continentes se aproximaram e aprenderam a falar linguagens distintas: as do jornalismo, da televisão, da publicidade, das mídias digitais, da música, das canções.

Num tempo de encontros e desencontros entre formas culturais e contatos transnacionais, o desafio é a representação de temporalidades descontínuas e de experiências sensoriais para além do movimento.

O cinema se define, cada vez mais, como produção audiovisual, e as cinematografias nacionais, como realizações multiculturais.

Muito se tem dito sobre as transformações dos processos audiovisuais e as experiências transnacionais. Nunca se tornou tão urgente retomar e reavaliar conceitos.

Programas de TV, blogs, encontros comunitários e acadêmicos, livros, artigos jornalísticos, cada um a seu modo, se tornaram territórios desse realinhamento conceitual. É possível traçar algumas linhas desse debate a partir de quatro livros recém-publicados.

Reinvenções

‘Cinema Mundial Contemporâneo’, de Mauro Baptista e Fernando Mascarello, reúne artigos que desenham um mapa da produção e circulação de filmes na América Latina, na Europa, na África e na Ásia.

Se, por um lado, há a resistência às diferentes mortes do cinema, mediante a ‘audiovisualidade’ e a transnacionalização da produção, por outro há a necessidade de ‘reinventar’ o conceito de cinema nacional: cinema como formador de cultura.

Esse é o passaporte para o contato com filmografias diversificadas, mas comprometidas com a criação de traços de identidade, ainda que seja à custa de parcerias transnacionais.

Assim são construídas narrativas que mais parecem crônicas da atualidade em diferentes escalas das vidas pública e privada. Não basta, porém, a linguagem do jornalismo. Sem recursos audiovisuais de tecnologias digitais portáteis, não seriam possíveis os flagrantes sobre feridas temáticas do contexto cada vez mais desigual.

O próprio modo de fazer cinema passa a ser interrogado, como se pode ler nos comentários a uma farta variedade de filmes. O robusto volume de Fernão Pessoa Ramos, ‘Mas Afinal… O Que É Mesmo Documentário?’, arrisca uma revisão mais funda sobre as narrativas contemporâneas, que colocaram em pânico os limites entre gêneros.

Sua resposta ao embate entre documentário e ficção é ensaiada ao longo de 448 páginas. Ao definir seu livro como um ensaio sobre um gênero ensaístico, Ramos não só elabora hipóteses como interroga premissas de modo a fixar bases de uma teoria do documentário.

Munido de conhecimentos sobre a história e teorias do cinema, percorre a filmografia de todos os tempos, dedicando um espaço bem iluminado aos filmes brasileiros e ao diálogo com o jornalismo, a TV, a publicidade, a música e a videoarte, sem dispensar o exame de controvérsias conceituais.

Postura, aliás, bem diferenciada de outro título que merece ser lido em paralelo: ‘Nem Tudo É Verdade!’, de Luiz Carlos Lucena, que vê documentários brasileiros e bolivianos a partir de uma ‘verdade documental’, orientando-se pelas rotas dadas pelo jornalismo impresso em suas manchetes e críticas.

Vale observar que a necessidade de revisão de conceitos como pressuposto da construção de uma teoria crítica, no caso de um gênero, não é uma prática comum entre analistas.

O contato com os meios de comunicação, com a música, com as mídias digitais colocou na berlinda categorias consolidadas. Nisso parece residir o aspecto mais inquietante e desafiador do argumento central de Ramos: o conceito de documentário não circunscrito à clássica noção de gênero, mas conjugado com a idéia de formato, fundamental para explorar a noção de imagem-câmera e seus derivados.

É pela imagem-câmera que questiona: documentário ou ficção? Mentira ou verdade? Ética ou manipulação? Notícia ou reportagem? Televisão ou cinema?

Em vez de resposta, explora a noção de documentário como ensaio a construir asserções sobre o mundo. Evocação direta a Dziga Vertov e Jean-Luc Godard, que ocupam, assim, lugar de honra na formulação do conceito.

Contexto cultural

Enquanto o documentário configura um território de fronteiras, a documentação segue direção contrária.

O volume ‘Estado e Cinema no Brasil’, de Anita Simis, agora em reedição, mostra quanto os contatos interculturais, transnacionais e transgêneros estão presentes na pesquisa historiográfica.

A história da produção de filmes em circulação no mercado segundo as leis de distribuição, de exibição e mediante o gosto do público apresenta a economia do cinema no contexto de sua ecologia (lembrando Paulo Emílio Salles Gomes).

Quer dizer, o cinema é focalizado em seu ambiente cultural, em suas instituições políticas, associações de produtores, entidades corporativas, empenhados com a invenção, a educação, a criação na linguagem.

Uma história do cinema contada na ambiência das invenções técnicas: do cinerama ao cinemascope, da matéria-prima fotoquímica e da projeção elétrica às videocâmeras, das fitas virgens óptico-sonoras à recodificação digital, dos projetos nacionais às ambiciosas parcerias transnacionais.

IRENE MACHADO é professora na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de ‘O Filme Que Saussure Não Viu’ (ed. Horizonte).

CINEMA MUNDIAL CONTEMPORÂNEO

Organização: Mauro Baptista e Fernando Mascarello

Editora: Papirus (tel. 0/xx/19/3272-4500)

Quanto: R$ 54,90 (352 págs.)

MAS AFINAL… O QUE É MESMO DOCUMENTÁRIO?

Autor: Fernão Pessoa Ramos

Editora: Senac (tel. 0/xx/11/2187-4450)

Quanto: R$ 65 (448 págs.)

NEM TUDO É VERDADE!

Autor: Luiz Carlos Lucena

Editora: Ativa (tel. 0/xx/11/3259-0809)

Quanto: R$ 28 (172 págs.)

ESTADO E CINEMA NO BRASIL

Autora: Anita Simis

Editora: Annablume (tel. 0/xx/11/ 3031-1754)

Quanto: R$ 40 (312 págs.)’

 

 

 

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