‘Série ‘Figuras da dança’
Morto em 26 de abril de 2008, aos 81 anos, o coreógrafo e professor de balé Ismael Guiser, segundo personagem da boa série ‘Figuras da dança’, foi, depois de Ivonice Satie, mais um ícone da dança brasileira cuja perda foi praticamente escondida pela TV Cultura, pela falta de uma introdução que situasse, para o telespectador menos aficcionado, logo no início do programa, sua importância na cena cultural brasileira.
Queiramos ou não, a morte de uma personalidade, muitas vezes, é a oportunidade de as pessoas tomarem contato, se envolverem e passarem a gostar de uma determinada arte ou atividade. E, como emissora pública comprometida com a democratização de conteúdos de qualidade, a TV Cultura, além de fazer essa homenagem justa e intensamente saudada pela intelectualidade e pela classe artística do eixo Rio-São Paulo, bem que poderia ter tido o cuidado de chamar a atenção de outras faixas de público para a carreira de Ismael Guiser. Nem o fato de a série mostrar uma entrevista gravada em 18 de abril de 2008, dias antes da morte de Guiser, foi motivo para que uma introdução especial precedesse a exibição do programa já editado.
Em termos de conteúdo, o episódio sobre Ismael Guiser, a exemplo do que reconstituiu a trajetória de Ivonice Satie, foi rico em depoimentos – como os Antonio Carlos Cardoso, Luís Ribeiro, Ivan Grandi, Cyro del Nero e de Luciana Porta – e no uso inteligente das fotografias e imagens de arquivo dos espetáculos e grupos dirigidos por ele. Uma pena, no entanto, que as imagens da maioria desses espetáculos tenham sido captadas pela câmera distante (do palco) e às vezes apressada do telejornalismo, o que priva o telespectador de um contato mais emocionante com a arte da dança.
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Conheça os pontos positivos e negativos da programação exibida na última semana. Saiba quais atrações da TV Cultura ganharam destaque e as que ainda podem melhorar.
Liquidez transparente
Jornal da Cultura, 21 de outubro
Apresentada por um texto bem-humorado ‘interpretado’ por Michelle Dufour e Adriana Couto, a reportagem de Juliana Barletta sobre os danos do economês à compreensão do telejornalismo foi oportuníssima. Pena que a matéria não tenha tido o apoio de videografismos didáticos que certamente fixariam mais ainda os significados de palavrões como ‘circuit breaker’, ‘subprime’, leilões de ‘swap’ cambial, derivativos, ‘commodities’ etc. A preocupação com os perigos do jargão, felizmente, não ficou apenas na reportagem de Juliana. Apareceu também em um texto lido por Adriana no terceiro bloco, quando ela explicou que ‘garantir a liquidez dos bancos’ é ‘assegurar que as instituições tenham capital para honrar seus compromissos e também para empréstimos’. O telespectador agradece e torce para que esse cuidado com o economês seja diário.
Solo perfeito
Radiola, 20 de outubro
Com uma edição mais calma, menos atropelada por efeitos, ‘editites’ e lentes deformadas, pleno de imagens elucidativas sobre o funcionamento do vibrafone e ainda com um pequeno solo do clássico ‘Autumn leaves’, o quadro ‘Meu instrumento’, com o músico Nelson Essi, foi um dos melhores da série do Radiola. Destaque para o momento em que ele demonstrou os sons diferentes produzidos por diferentes baquetas.
Longe da baixaria
Jornal da Cultura, 20 de outubro
O Jornal da Cultura fez o que o telespectador não hiptonizado pela histeria do Caso Eloá esperava. Primeiro, uma reportagem a cargo de Carmem Souto resumiu, de forma sóbria e equilibrada, o que nenhum telejornal brasileiro poderia ignorar na noite desta segunda-feira: o concorrido velório da adolescente, os desdobramentos das doações de seus órgãos pela família e as últimas informações sobre o andamento das investigações policiais. Depois, em outra reportagem, esta a cargo de Laís Duarte, o jornal fez o que o telespectador da TV Cultura costuma pedir e apreciar nesse tipo de episódio: uma discussão sobre o comportamento da imprensa. O destaque do dia, no entanto, foi Renato Lombardi, que dissecou, uma a uma, as declarações do coronel encarregado da operação e alertou sobre um problema que, passada a histeria do Caso Eloá, continuará sendo uma grave ameaça para a segurança de todos os cidadãos de São Paulo: a rivalidade entre as polícias civil e militar.
Preciosidade
Vitrine, 18 de outubro
O ensaio retrospectivo sobre a fotografia de Benedito Junqueira Duarte, ou BJ Duarte, guiado pela rica e eficiente entrevista com o pesquisador Rubens Fernandes Jr, ao som da música de Claude Debussy, foi um momento especial de arte e delicadeza no Vitrine. Além, claro, de mostrar o talento de BJ Duarte para documentar a transformação urbana de São Paulo no final dos anos 30.
A idéia é essa
Repórter Eco
A manifestação de Washington Novaes, que discordou da análise em que este ombudsman criticou o Repórter Eco de 11 de junho por tentar sensibilizar o telespectador com estatísticas relacionadas ao consumo da água do planeta, resultou em uma ótima discussão por email. Transcrita para este site no último dia 23, sob o título ‘Diálogos sustentáveis’, a discussão certamente melhorou o nível de informação do telespectador, enriquecendo sua reflexão – e a dos responsáveis pelo Repórter Eco – sobre os desafios da sustentabilidade. É para esse tipo de resultado que nós, ombudsmen, existimos.
Barulheira
Radiola, 20 de outubro
A profusão de bandas e músicos mostrados na reportagem da Trama Virtual sobre o Festival Coquetel Molotov de Recife não escondeu o fato de que a captação de áudio, já naturalmente problemática para qualquer equipe de televisão, foi desastrosa a ponto de não permitir que o telespectador detectasse as diferenças entre Caterina, Pocilga Deluxe, A banda de Joseph Tourton, Bandini , Clube 8, Final Fantasy, Mallu Magalhães, Zeca Viana e Onomatopéia Bum, Shout Out Louds , Guizado e Peter Bjorn and John, entre outros.
A parte pelo todo
Manos e Minas, 18 de outubro
No quadro Interferência, um dos melhores no formato inovador do Manos & Minas, pela franqueza das perguntas de Ferréz e pelas revelações sem retoques de seus habituais entrevistados, o jornalista Xico Sá, convidado da edição reprisada no dia 18, preferiu a contramão mistificadora das frases de efeito irresponsáveis. Disse, por exemplo, que ‘qualquer ficção é menos mentirosa do que o jornalismo’. Outra frase: ‘É escroto, mas a grande arte do jornalismo é botar a palavra na boca da pessoa que não disse aquela palavra’. Xico Sá deu, dessa forma, infelizmente, ao jovem público do Manos & Minas, um exemplo prático do tipo de jornalismo que parece preferir ou aceitar praticar, trocando a parte pelo todo e confundindo o resultado da falta de ética nas redações com o patrimônio de uma instituição histórica formada por profissionais entre os quais muitos jamais concordariam com ele.
Prazos e validades
Roda Viva, 20 de outubro
O Roda Viva com o juiz espanhol Baltasar Garzón foi mais uma prova de que não se deve guardar uma entrevista por muito tempo. Os dois meses que se passaram entre a gravação, no dia 18 de agosto, e a exibição, nesta segunda, dia 20, obrigaram a equipe do programa produzir uma nova – e complicada – abertura com Lillian Witte Fibe na qual ela explicava que parte do conteúdo já estava comprometida pelos fatos recentes relacionados a crimes de lesa-humanidade ocorridos na Guerra Civil Espanhola e durante o franquismo. O próprio Baltasar acabou contribuindo para tirar o tempero da entrevista, ao fazer longas explanações jurídicas sobre o cipoal de instâncias, regimes, imprescritibilidades e conceitos que se entrecruzam no caminho dos que, como ele, tentam tornar os crimes contra a Humanidade efetivamente investigáveis e puníveis em qualquer país do mundo. Pode ter sido interessante para juristas e estudantes de direito internacional, mas os telespectadores aos quais Garzón foi apresentado como ‘polêmico’, no início do programa, ficaram sem saber onde ficam a polêmica e também os críticos respeitados do juiz na comunidade internacional.
Sinal (confuso) dos tempos
Vitrine, 18 de outubro
A matéria sobre o game Spore, com o qual se cria e se molda um universo inteiro, tinha números impressionantes, como o fato de terem bastado 22 horas da ferramenta do jogo na web para que os jogadores a usassem para inventar mais de cem mil ‘criaturas’. Pena que a reportagem tenha tido um problema cada vez mais comum às matérias de televisão sobre o mundo dos jogos eletrônicos. O problema, agravado pela duração da reportagem, é que a televisão e sua tela ficam ‘reféns’ do layout e da ‘gramática’ dos jogos. Quem assiste, em vez de continuar telespectador, torna-se uma espécie de jogador compulsório de um game incompreensível. O resultado, para quem está em casa e não é um nerd, fica entre o cansaço e a confusão. Este, aliás, é mais um dos inúmeros desafios de linguagem que já estão batendo à nossa porta, com a inexorável união da tela da TV com as da Internet e dos games.
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Duelos e retornos
(Manos e Minas, 30 de outubro)
O quadro ‘Duelo de MC´s’, com os temas sorteados na hora, na platéia, para serem desenvolvidos em 40 segundos, no palco, é mais um gol de placa do programa. O desempate, ‘no grito’, medido pelo decibelímetro da produção, entre os MC’s LTA e ‘100%’, contagiou a platéia e certamente prendeu a atenção do telespectador em casa. Talvez porque, apesar da roupagem e da temática modernas, o quadro se baseie num dos scripts mais bem-sucediddos da história da televisão, em todos os tempos: a competição e as emoções que ela provoca, desde os tempos de ‘O céu é o limite’.
A participação do trombonista Raul de Souza, mestre de uma vertente musical para alguns incompatível com os ritmos e sons preferidos do público predominante do Manos & Minas, reforçou o caráter eminentemente aberto da proposta do programa. Nada mais apropriado para um conteúdo de TV aberta, geralmente assistida tanto por iniciados e aficcionados quanto por leigos, estes muitas vezes de olhos e ouvidos abertos para novas descobertas musicais.
A’Uwe
Laine Milan, diretora do A’Uwe, enviou email no qual considera relevantes as observações feitas aqui sobre alguns documentários exibidos pelo programa. Transcrevo-a:
‘Prezado Ernesto, são relevantes suas observações em relação ao caráter um tanto antropológico de alguns documentários. Se isso afasta nosso público, evidentemente temos uma pauta a ser discutida. Estamos no momento exato: a renovação da série para 2009. Vou propor um discussão com os profissionais envolvidos na série ‘A’Uwe’, levando em conta suas considerações e a viabilidade de interferirmos na edição/finalização dos documentários exibidos. Agradeço sua contribuição. Um abraço, Laine Milan’.
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Tons arriscados
(Jornal da Cultura, 28 de outubro)
A manchete e a interpretação de Heródoto Barbeiro era quase exultante. Transcrevo-a na íntegra:
‘Nada como um dia depois do outro. O ministro Guido Mantega disse ontem para o Brasil que era para aproveitar, que o momento era muito bom para comprar, pra consumir, e que ele mesmo, ministro, tinha comprado uma casa a prestação e coisa e tal. Muito bem. Hoje, Mantega voltou a falar, só que ele desdisse tudo o que disse ontem. Fez previsões catastróficas sobre o momento que vivemos, (disse) que a magnitude da crise vai ser inédita e que o mundo inteiro vai desacelerar. Tudo tem um lado positivo: o ministro finalmente caiu do, ou melhor, na real’.
No texto de abertura do primeiro bloco do jornal, repetiu-se a ironia da manchete. Na matéria, o repórter Anderson Arcoverde afirmou: ‘O ministro repetiu a estratégia governista de usar um discurso pra cada público ao falar da crise. Com empresários, Guido Mantega deixou o tom otimista de ontem para assumir a gravidade da situação’. Seguiu-se a declaração em que Mantega disse que a crise ‘é de magnitide inédita’, acrescentado: ‘Nós vamos ter um forte impacto na atividade real. A economia real, no mundo todo, vai desacelerar fortemente’.
Não havia, porém, no material exibido pelo Jornal da Cultura, nem a afirmação de véspera de Mantega de que ‘o momento é para aproveitar, muito bom pra comprar, pra consumir’ e nem a do dia seguinte, sobre as ‘previsões catastróficas’ citadas em tom forte por Heródoto na abertura. A propósito, nem as edições do jornal O Globo nem as da Folha de S. Paulo tinham, nos dois dias, essas frases da abertura do Jornal da Cultura. Os dois jornais deram, fora das manchetes, a frase do ministro sobre a magnitude e o impacto da crise e registraram, no texto das matérias, a mudança no tom otimista de Mantega. Mas não houve, nos dois diários, nenhum comentário ou notícia sobre a ‘estratégia governista de usar um discurso pra cada público’, citada pelo repórter Anderson Arcoverde. Não havia, finalmente, no notíciário, nenhuma evidência que sustentasse a frase de Heródoto de que Mantega ‘desdisse tudo o que disse’.
É notório que houve exagero e distorção editorial das entrevistas do ministro Mantega nos dois dias. Principalmente se levarmos em conta o efeito da performance claramente irônica de Heródoto Barbeiro diante das câmeras. Na telinha, ficou claro que ele e/ou o editor que redigiu o texto estavam descarregando o que parecia ser uma mal-contida irritação com o fato de o ministro estar dizendo, nos últimos dias, que o Brasil não está mergulhado na crise. Para completar a série de exageros, no trocadilho com a frase ‘cair do real’, Heródoto deu a impressão de que sabe qual é, efetivamente, a real situação da economia no país e no mundo. Qual será?
No mesmo Jornal da Cultura, a boa matéria sobre o cassino milionário em que o mercado de ações se transformou, depois da eclosão da crise, mostrou que pessimismo e otimismo têm sido alavancas poderosas da jogatina especuladora. E que o papel dos jornalistas, nessas horas, é o de redobrar a fidelidade aos fatos e o de ter mais cuidado ainda com o tom do noticiário.
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Um programa intransponível
(Roda Viva, 27 de outubro)
A entrevista com o professor Luiz Gonzaga Belluzzo bateu todos os recordes de despreocupação com o caráter fundamentalmente eclético que um conteúdo de televisão aberta deveria ter. Expressões como ‘risco de desalavancagem dos hedge funds’, ‘contratos assimétricos em operações de balcão’ e ‘marcação ao mercado’, usadas em profusão pelo entrevistado e desconhecidas não apenas do chamado telespectador médio, mas até de 80% das redações da imprensa brasileira, dominaram a conversa, tornando-a, em grande parte, elitista, excludente e, não raro, incompreensível, mesmo para o público tradicionalmente mais preparado do Roda Viva.
Os entrevistadores convidados e a âncora Lillian Witte Fibe, embora originários de editorias de economia, até tentaram fazer perguntas simples. Leandro Modé, do Estadão, por exemplo, não poderia ter sido mais claro ao perguntar se, depois da crise, as pessoas deveriam ‘poupar ou gastar’. O professor Belluzzo, no entanto, não resistiu à tentação de logo abandonar a didática e continuar salpicando as respostas de ‘desvalorizações competitivas’, ‘choques de commodities’, ‘inflação de ativos de aspectos variados’ e ‘títulos longos’.
Na abertura do segundo bloco, Lillian insistiu em levar o programa para o que chamou de ‘vida real’ do telespectador, perguntando sobre a situação do crédito na ponta do consumidor. Não adiantou. Belluzzo logo voltou a falar como se estivesse participando de uma reunião técnica do Ministério da Fazenda, contrapondo ‘orçamento de capital’ a ‘orçamento corrente’, condenando ‘a febre dos IPO’s’ e explicando – para poucos entenderem – o que aconteceu com as ‘empresas ilíquidas’.
Como em outras edições do Roda Viva, foi mais uma vez a repórter Carmem Amorim, porta-voz das perguntas dos telespectadores, quem deu o perfil do que a maioria esperava de Belluzzo do outro lado da câmera. Os assuntos eram, claro, o risco de desemprego no Brasil, dúvidas sobre o que fazer com o investimento em ações feito com o FGTS, perspectivas das ações da Vale e da Petrobras e conselhos pra quem quer comprar imóvel.
O programa só ficou mais compreensível no final, quando Belluzzo explicou seu apoio às medidas econômicas do governo Lula, defendeu ostensivamente a presença do estado na economia, investindo e regulando, e declarou sua paixão pelo Palmeiras. Mas a essa altura o tsunami de economês certamente já tinha varrido a maioria dos telespectadores do canal.’