‘O placar estatístico da caixa de mensagens deste ombudsman está longe, muito longe, de ser matematicamente representativo das preferências e do pensamento dos telespectadores, por razões vários que vão do fato de este canal de comunicação só existir na Internet – e não na própria programação da emissora, como seria ideal – à pré-existência de endereços específicos de contato do telespectador com a produção de cada um dos programas exibidos pela TV Cultura.
Ainda assim, vale registrar que, no que se refere ao Cultura Discovery e ao Programa Novo – as duas novidades recentes da programação noturna da emissora – o placar tem sido radicalmente diferente. O primeiro tem sido elogiado com entusiasmo pela maioria dos que se manifestam, enquanto o Programa Novo tem sido criticado pela maioria.
Um dos elogios ao Cultura Discovery, enviado pelo telespectador Carlos Lepore, é encorajador para quem acredita que qualidade e boa audiência não são incompatíveis:
’Gol de placa o contrato entre a TV Cultura e o Discovery Channel Brasil. A a televisão brasileira estava precisando de uma abertura dessa a favor daqueles que gostam de documentários inteligentes. Espero que surja mais horários para esses programas. Afinal, só mesmo a TV Cultura PARA MOSTRAR AO POVO BRASILEIRO que o importante não é baixaria para dar audiência, mas que com inteligência também se consegue muita audiência’.
Uma das críticas ao Programa Novo, enviada por Roberto Souza Júnior, é emblemática em relação ao tom dos que não gostaram da novidade e aos desafios que aponta para os responsáveis pelo programa:
’A TV Cultura é a melhor TV do Brasil. É criativa, inovadora, pioneira em muitas coisas ótimas, mas também ’erra na mão’ Por favor, revejam esse projeto denominado Programa Novo ou Novo Programa. Dá para entender a intenção, porém o resultado é péssimo’.
É importante, na opinião deste ombudsman, ressaltar dois atenuantes, um para a crítica e outro para o elogio. A crítica releva qualidades da proposta do Programa Novo como a interatividade radical, a flexibilidade do script e a preocupação com o ritmo da linguagem de televisão. Já elogio ao Cultura Discovery, obviamente restrito à área de programação da TV Cultura, também mostra a distância que ainda separa a emissora do poderoso, bem-estruturado e experiente parceiro americano.
***
Altos e baixos de setembro, 1 de outubro
Altos
Clarice para todos
Em sua luta diária com outros eletrodomésticos e estímulos pela atenção e pela fidelidade dos donos da casa, a televisão costuma funcionar mais quando combina assuntos, personagens, conflitos, desejos, dúvidas e aflições mais próximas e urgentes do telespectador. Às vezes, ela cumpre esse ’destino’ com arte e talento, como no episódio da série ’Tudo o que é sólido pode derreter’ em que a temática e os personagens ’telegênicos’ foram somados ao primoroso roteiro inspirado no livro ’Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres’, de Clarice Lispector e a uma ótima interpretação do elenco.
Sensibilidade histórica
Além de fazer uma abertura em que o assunto eleito como o principal do dia foi a presença das feridas ainda existentes entre poloneses, russos e alemães na cerimônia que lembrou os 70 anos do início da Segunda Guerra Mundial, o Jornal da Cultura de 1º de setembro resgatou – no caso com muita propriedade – através da reportagem de Carmen Souto, um importante ’cacoete’ dos tempos dos tempos ’analíticos’ do telejornal: além de dar o factual do aniversário da guerra, entrevistou ex-pracinha Jairo Junqueira da Silva, dando a perspectiva brasileira no conflito, contou com a contextualização feita pelo historiador Osvaldo Coggiola e ainda trouxe à luz, dos arquivos da emissora, nas palavras – infelizmente apenas legendadas e não creditadas – de Goebbels, o ministro da propaganda nazista, uma impressionante antevisão do genocídio que se seguiria ao dia 1º de setembro de 1939: ’Um dia nossa paciência chegará ao fim e então a boca atrevida e mentirosa dos judeus será calada’.
Retomada
Depois de experiências recentes do projeto Direções que se mostraram no mínimo inadequadas, em formato e linguagem, para o ambiente em que a comunicação efetivamente se realiza na TV aberta – TV aberta brasileira, é sempre bom lembrar – é gratificante constatar que a minissérie ’Trago Comigo’, dirigida por Tata Amaral, recolocou o programa no que este ombudsman e, com certeza, boa parte dos telespectadores consideram ser uma absoluta sintonia com o objetivo expresso do programa de buscar um novo caminho na teledramaturgia.
Parada para pensar
A equipe do Nossa Língua mostra que continua comprometida com um princípio tão elementar quanto decisivo em TV aberta: está atenta a oportunidades que o dia-a-dia oferece para que o programa sensibilize um contingente cada vez maior de telespectadores. Na edição exibida no feriado de 7 de setembro, Felipe Reis e o professor Pasquale comandaram, sem patriotada, uma interessante viagem pelos segredos e curiosidades de duas músicas que aprendemos a cantar desde pequenos sem saber ou muito o que as letras dizem: o Hino Nacional e o Hino da Independência.
Aperitivo de primeira
O programa exibido no dia 11 de setembro mereceu todos os sentidos do título ’Cultura Animada’, a começar pela saborosa reconstituição audiovisual dos saltos sucessivos de qualidade e importância que o cinema de animação vem dando nos últimos anos, no Brasil e no exterior. Contribuiu ainda mais para o resultado, claro, a vocação natural desse tipo de conteúdo não apenas para as salas de exibição, mas também, no caso, para a telinha nossa de cada dia.
Evolução
Depois de uma abertura ágil, bem-editada e que remete diretamente para a proposta do programa, o Almanaque Educação, logo na estreia de sua nova temporada, deixa claro que deu uma guinada considerável no formato do projeto, trocando as ruas da grande cidade por um cenário bem mais familiar ao cotidiano de milhões de estudantes brasileiros: um quarto bagunçado com um computador conectado à Internet e os vários ambientes de uma escola. Por tudo o que mostrou na retomada do projeto, o Almanaque Educação ganhou mais foco, pertinência, ritmo e eficiência como conteúdo de TV aberta voltado para o público infanto-juvenil. E tudo isso sem ter que abandonar as premissas educacionais que inspiraram o programa.
Legado
A reportagem de Andresa Boni que abriu o Balanço Social exibido em 24 de setembro, tratando de reciclagem de pneus e materiais usados na fabricação de bicicletas, não foi apenas uma demonstração de como é possível ter olhares novos e interessantes sobre assuntos que, num programa especializado como esse, são inevitavelmente repetitivos. Foi também, apesar do fim do programa, uma pequena aula de como fazer uma boa reportagem de televisão sobre sustentabilidade. Ou sobre qualquer outro assunto.
Baixos
Faltou explicar
Por uma questão de clareza, principalmente em função do teor potencialmente controverso da tese em que relaciona o recorde de furtos e roubos em São Paulo com o desentendimento entre policiais civis e militares durante a greve da Polícia Civil ocorrida no final de 2008, o entrevistado José Vicente, identificado pelo Jornal da Cultura de 1º de setembro como ’especialista em segurança pública’, bem que poderia ter sido creditado como José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública no governo Fernando Henrique Cardoso. Caberia a cada telespectador – e a ninguém mais – decidir se a participação do coronel no jornal foi técnica ou político-partidária.
Elitismo
O programa Mobílie continua sendo um emblema do baixo ou inexistente índice de preocupação, de boa parte dos responsáveis pelo conteúdo da programação adulta da emissora, com um mínimo de inteligibilidade e de contextualização – artística, musical ou jornalística, não importa – para os telespectadores que não tiveram ou não têm o privilégio de uma educação e uma formação cultural de maior qualidade. Alguns poderão dizer que o Móbile, como sugere o texto de abertura repetido nas voltas dos intervalos, é mesmo feito para iniciados. E ponto. Outros, no entanto, poderão argumentar que os iniciados não precisam de uma emissora pública para um deleite ao mesmo tempo tão exclusivo e tão deliberadamente afastado dos milhões de telespectadores ’sem-berço’ da TV aberta.
Questão de identidade
Não sendo ficção, que é um tipo de conteúdo no qual a maioria dos telespectadores sabe o que aconteceu no episódio ou capítulo anterior, praticamente tudo, em TV aberta, tem de ser apresentado e muito bem explicado. Todo dia. E foi exatamente por não ter sido precedido de uma apresentação que a estreia do programa Animania pareceu menos o que pretende ser – uma revista eletrônica semanal sobre a crescente produção brasileira e estrangeira de cinema de animação – e mais um programa da grade infantil e diurna da TV Cultura estranhamente exibido às 19h30m.
Luz amarela
Doze edições depois da estreia, os apresentadores do Programa Novo, como se viu na noite de 23 de setembro, continuam dando a impressão de estar à procura de espaço não apenas no cenário, mas na própria receita da nova atração juvenil da TV Cultura. A radical informalidade da apresentação e a elasticidade absoluta do script também continuam gerando lacunas de conteúdo, alguma delas acompanhadas de tal constrangimento com a falta do que dizer que nem a admirável capacidade de improvisação dos apresentadores consegue disfarçar. Apesar de receber e exibir incessantemente uma profusão de elogios derramados de jovens internautas, o Programa Novo foi criticado com veemência em todos os emails – densos, mas incomparavelmente poucos – que chegaram à caixa de entrada deste ombudsman. Essa óbvia condição de minoria dos críticos manifestos do programa, no entanto, não desautoriza nem pode impedir que todos os envolvidos na produção do Programa Novo façam uma profunda reflexão sobre as lições e atoleiros que surgiram no caminho nessas primeiras semanas.
***
Shakespeare na TV, 30 de setembro
No Almanaque Educação de 29 de setembro, a decisão do personagem Cadu de montar uma peça foi ponto de partida de novos momentos felizes em que conteúdo e forma fluíram muito bem, sem que o programa se afastasse do objetivo de ser uma janela saborosa para o conhecimento e a cultura.
Para contar a história da montagem da peça ’Milkshakespeare’, aconteceu de tudo: dublagem de um retrato do bardo no qual ele explica os fundamentos do teatro, uma crônica sobre a origem histórica e gastronômica da sobremesa conhecida como Romeu e Julieta e um ’debate-boca’ que reuniu, no quadro TV do Cadu, os personagens Hamlet, Petrúcio e Julieta em acalorada disputa para participar da semana cultural da escola do menino.
O episódio ainda incluiu uma descontraída entrevista com o diretor Antunes Filho sobre o legado de Shakespeare, depoimentos do arquivo da TV Cultura, uma analogia hilariante entre uma briga de deputados do parlamento italiano e a disputa de papéis da peça de Cadu na escola e uma entrevista com a cantora Paula Lima sobre a vida de artista.
É claro que, pela própria natureza de sua proposta, o Almanaque Educação não é nem pretende ser páreo para o fascínio despertado, nos jovens, por certos conteúdos audiovisuais com 100% de taxa de entretenimento e que estão disponíveis em games, na Internet e em canais por assinatura. Mas se há um caminho para os que buscam alternativas mais enriquecedoras em meio a tanta diversão fácil e superficial, ele está sendo trilhado pela equipe do programa com humor, criatividade e, principalmente, uma ótima sintonia com a gramática e a linguagem da televisão.
***
Por trás da grade e dos emails, 29 de setembro
Um email recebido aqui no último dia 19 de setembro chamou atenção pela veemente clareza do protesto e pelo simbolismo da situação vivida pelo telespectador que o enviou. Não identifico o remetente porque, longe de querer expô-lo, quero respeitosamente usar o exemplo dele para tratar de um dilema diário dos profissionais que têm a responsabilidade de definir a grade de programação da TV Cultura.
Primeiro, o email:
’Desde que o programa Senhor Brasil começou, tornei-me espectador de TODOS os domingos, sem exceção. Mesmo que dormisse de madrugada, mesmo assim programava o despertador. O programa é dos raros acontecimentos nos meios de comunicação em massa em que manifestações culturais são tratadas com respeito e competência.
Como acordo às cinco da manhã para trabalhar, a exibição às noites de terças são inviáveis para mim. Domingo passado, no entanto, o programa não foi ao ar, e eu me senti como que desamparado; e uma breve consulta ao ’site’ parece confirmar: não haverá mais Senhor Brasil aos domingos (embora não haja nenhuma satisfação, aparentemente).
Por que confiscaram o único programa que me faz ligar o aparelho em casa? Certamente, por lógica mercantil. Nunca fui alvo de pesquisa, mas certamente a ciência exatíssima – a estatística – deve me considerar, em sua metodologia cientificíssima, irrelevante como número, como porcentagem incapaz de consumir Fumasil, Calcitran ou os móveis a prestação das Casas Bahia.
Pouco importa que eu seja mestre pela Universidade de São Paulo e professor em um dos mais renomados e tradicionais colégios da capital; devo pertencer ao traço nas avaliações de audiência, e isso sem dúvida me condena à irrelevância.
Ainda assim, dou vazão à minha perplexidade, frente a uma emissora que fez parte fundamental de minha formação, enquanto desempenhou o papel de televisão pública – antes, evidentemente, de vender-se ao mascatismo da publicidade.
Sinto-me profundamente triste com tamanha desapropriação, e peço desculpas pelo tom ressentido desta mensagem, mas, compreendam, desta minha perspectiva de traço nas estatísticas, uma tal decisão da emissora equivale a mutilar o direito ao único programa televisivo que cativou minha atenção meu afeto e meu intelecto’.
Transcrito o email, fica claro que é o próprio professor quem confessa sua condição de praticamente um não-telespectador. Fica clara, também, sua intransigente recusa à alternativa de se adaptar ao novo horário de reapresentação, no mesmo domingo, do único programa de televisão que assiste e que, ao contrário do que ele diz, não foi confiscado dos telespectadores da TV Cultura. Ele também não parece considerar a hipótese de programar seu videocassete – se tiver um, claro – para gravar a exibição do Sr Brasil nas noites de terça, enquanto dorme.
Ao sugerir que não vê respeito nem competência em mais de duas dezenas de programas da TV Cultura atualmente voltados ao público adulto nas áreas de arte, cultura, jornalismo, música, documentários, cidadania e meio ambiente, o professor deixa claro que não gosta mesmo é de televisão. Com esse perfil, portanto, nem cabe muito a ironia que ele faz com o fato de nunca ter sido ’alvo de pesquisa’ por ser ’irrelevante como número’ e ’porcentagem incapaz de consumir Fumasil, Calcitran ou os móveis a prestação das Casas Bahia’.
Outro engano do professor é o de sugerir que está sozinho nessa condição meio esquizofrênica de não-telespectador exigente e muito decepcionado com a TV Cultura. Os emails que este ombudsman tem recebido, em mais de um ano de trabalho, autorizam a conclusão de que há muitos telespectadores (?) como o professor. Um contingente que, embora mereça todo respeito e consideração, em se tratando de televisão aberta brasileira, não pode mesmo ser o fiel da balança na hora em que se desenha uma grade de programação. Pelo simples fato de não assistir e nem gostar muito de televisão.
***
Fora de hora, 28 de setembro
Os programas do Discovery Channel que a TV Cultura vem exibindo, até pelo fato de já terem sido testados em outros canais e países, são quase sempre conteúdo adequado à televisão e potencialmente atraentes para as diferentes gerações que disputam o controle remoto do horário nobre, nos milhões de lares brasileiros onde só existe transmissão de TV aberta e um aparelho receptor. O episódio da série ’Trabalho Sujo’ exibido na sexta-feira, 25 de setembro, certamente não era, entretanto, um assunto dos mais desejados para um horário em que muitos telespectadores estão na mesa do jantar.
A simples descrição das histórias da série já seria um teste para os estômagos mais sensíveis: a aventura de um biólogo maluco em uma caverna com milhões de morcegos, suas toneladas de fezes e outros penduricalhos repugnantes; o manuseio da lama misteriosa de um pântano de Nova Jersey e o dia-a-dia de uma fábrica especializada no corte e no desentranhamento de toneladas diárias de peixe, um processo cujos resultados são um dito ’milkshake’ fedorento que dá nojo só de olhar e um ’pão’ feito de sangue e pó de peixe.
Servidos?
Foi mal
Foi estimulante, principalmente para os telespectadores que têm reclamado da falta de foco das conversas entre os apresentadores do Programa Novo, o momento da edição do dia 24 de setembro em que o assunto foi a polêmica causada por um filme publicitário das sandálias Havaianas que mostra – de forma bem-humorada, diga-se – uma vovó sugerindo à neta que tenha um relacionamento apenas sexual – em vez de se casar – com um famoso galã da TV.
A equipe do Programa Novo, além de exibir o filme que foi retirado do ar pela Alpargatas e a versão que a empresa veiculou na Internet em resposta à polêmica, teve a boa ideia de convidar um porta-voz da área de Marketing e Comunicação da fabricante da sandália para conversar, ao vivo, por telefone, com os apresentadores. No final da conversa, no entanto, uma brincadeira constrangedora: Zé Brites encerrou a entrevista pedindo um par de Havaianas ao executivo.
Todos sabemos que não era sério. Mas pegou mal, principalmente por se tratar de uma emissora pública.
Bobagem arriscada
Antonio Abujamra, no Provocações exibido em 25 de setembro, assim como muitos dos fiéis telespectadores do programa, não conseguiu manter a irônica serenidade com que costuma encarar absurdos que certos convidados despejam no ar na sua frente e, contrariado, acabou discutindo de verdade com o cantor e ex-deputado Agnaldo Timóteo.
O entrevistado primeiro defendeu Sérgio Naya, Fernando Collor, Paulo Maluf e José Sarney. Depois, negou qualquer importância musical a João Gilberto como compositor ou cantor. Em seguida, disse, reclamando, que político é importante para o eleitor até na hora em que ele, eleitor, ’caga’. Quando Timóteo desqualificou Cuba como destino turístico e referência de sistema político, Abujamra aceitou a provocação e tomou uma atitude tão temerária – considerando o passado truculento do interlocutor – quanto controvertida, como entrevistador e anfitrião:
’Eu acho você uma bobagem, Agnaldo!’
A resposta soou, como seria de se esperar, ameaçadora:
’Tá com brincadeira? Tá com brincadeira?
No final, pelo menos parte dos fãs de Abujamra e do programa pode estar perguntando:
’Será que valeu a pena correr o risco?’’