‘Mais do que um território, um conjunto de tradições ou um traço genético, a língua pode ser factor de identidade de uma comunidade nacional. Tome-se como se quiser, é isso que diz o aforismo de Pessoa: ’A minha pátria é a língua portuguesa’. E o futuro da língua está hoje nas mãos dos media: é a imprensa e os meios electrónicos de comunicação quem define a forma como se fala e falará. Daí a responsabilidade dos jornalistas, que pode ser encarada de muitas maneiras mas que, para um jornal com o estatuto editorial do PÚBLICO, deveria ser no sentido de defender de modo coerente a correcção do português – o que implica apurados cuidados da parte de quem escreve.
O provedor já noutras crónicas tem sublinhado este aspecto, com o levantamento de inúmeros erros, muitos deles sistemáticos, que poderiam ser corrigidos com melhor formação ou até com um pouco mais de atenção ao que se verte para o teclado. A extinção progressiva – ditada pela contenção de custos – dos revisores de texto, a quem incumbia a tarefa de zelar pelo respeito das regras, só tem ajudado a tornar as coisas piores. Os alertas lançados nesta coluna destinam-se apenas a fazer ver como muitos erros podiam ser evitados se os jornalistas tivessem um pouco mais de sensibilidade para o problema.
Veja-se o caso dos estrangeirismos, cada vez mais frequentes, porque cada vez mais, abdicando da investigação própria (também devido à poupança), se traduz notícias e informações já publicadas noutras línguas (sobretudo em inglês e na internet). Entre muitos outros, eis dois exemplos detectados pelo leitor Rodrigo Valle Teixeira na edição de 5 de Setembro: na pág. 5, no artigo ’Cientistas portugueses usam teoria dos jogos para redefinir o combate do cancro’, ’no segundo parágrafo, a frase ‘Se tudo corre bem, há um balanço entre esta dinâmica…’ deveria ser ’Se tudo corre bem, há um equilíbrio entre esta dinâmica…’; na pág. 14, no artigo ’Cinco pessoas morreram em protestos em Xianjiang’, ’onde se lê ‘com o tráfico cortado’ deveria ser ‘com o tráfego cortado’’. Comenta o leitor que no primeiro caso ’parece uma tradução literal errada do inglês ‘balance’’, e quanto ao segundo: ’Imagino que as autoridades chinesas tenham cortado o trânsito automóvel, e não o tráfico de substâncias ilegais’.
Ainda a propósito do Oriente, a legenda de uma foto da reportagem ’Bebés roubados na China alimentam negócio das adopções’, na pág. 4 do P2 de 28 de Setembro, fala em ’oficiais do planeamento familiar’, quando o texto, correctamente, menciona ’funcionários do planeamento familiar’. Não consta, na verdade, que o planeamento familiar naquele país seja efectuado pelo exército, mas sim por funcionários (’officers’ em inglês) governamentais.
Mais para ocidente, noticiou o PÚBLICO de 13 de Setembro, na pág. 15, sobre o jornalista iraquiano que atirara os sapatos a George Bush durante uma conferência de imprensa em Bagdade, que fora ’condenado a três anos de cadeia por assalto a um chefe de Estado estrangeiro’. Tradução errada do inglês ’assault’, que não significa ’assalto’ (a uma pessoa) mas sim ’agressão’.
E a 10 do mesmo mês escrevia-se na pág. 14 sobre um ’candidato incumbente’, expressão inexistente nos dicionários de português, em que não há equivalente para ’incumbent’ (do inglês, um eleito recandidato). Em contrapartida, existe uma palavra portuguesa para significar a expressão inglesa ’statute of limitations’, que é ’prescrição’ (legal), mas o jornalista-tradutor que fez uma notícia para a pág. 13 dessa edição não deu por ela, escrevendo: ’Não existe qualquer estatuto de limitação da responsabilidade pelos crimes de guerra’.
Ainda no domínio jurídico, escreveu Nuno Curado: ’Não percebo como é que num ‘jornal de referência’ não há o cuidado para evitar a tradução directa de certos termos em inglês quando estes não correspondem na língua portuguesa. Utiliza-se no texto o termo ‘evidências’ como se se tratasse da palavra ‘provas’. Isso funciona em inglês em que ‘evidence’ realmente tem esse significado’. (O leitor, que escrevia em 24 de Setembro, não disse onde é que detectou a ’evidência’, e o provedor também não a localizou, mas o erro é tão frequente nos media portugueses que, mesmo assim, vale a pena o alerta).
Quanto a Rui Miguel Neiva, reparou no seguinte: ’Na edição de 15 de Setembro, no artigo da pág. 20 sobre a ’guerra dos pneus’ entre os EUA e a China, diz-se no final da primeira coluna: ‘(…) e vêm responder às reivindicações das uniões de trabalhadores norte-americanos’. Esse ’união dos trabalhadores’ não estará a referir-se a um (ou vários) sindicatos? É que a palavra ’union’ em inglês significa não só ’união’ mas também ’sindicato’, o que, pelo contexto do texto, parece ser o caso’. Tem o leitor razão.
Se bem que o inglês seja a influência dominante, não é a única. ’Pasta’, palavra italiana para ’massa’, ainda não entrou no léxico português, mas está permanentemente a ser usada. Exemplo: ’Para Jamie Olivier, se o azeite for bom, a pasta for fresca….’ (1 de Abril, pág. 4).
E depois há o recurso abusivo a palavras estrangeiras, outro tema também já abordado nesta coluna. É o caso que levou a leitora Isabel Barros Ferreira a reclamar: ’No PÚBLICO de 14 de Setembro, pág. 20, sob o antetítulo ‘Consumo – Legislação traz mais garantias aos utilizadores dos centros de atendimento’, seguia-se um artigo cujo título era: ‘Nova lei dos call centers obriga as empresas a gravarem as chamadas por 90 dias’. Se há em português o termo ‘centro(s) de atendimento’, que me parece perfeitamente adequado para traduzir o inglês ‘call center(s)’, como aliás é utilizado no antetítulo, porquê insistir três vezes, no corpo do artigo, na expressão inglesa? Não haverá tradução adequada de termos como ‘backoffice’ e ‘contact center’, para não falar de ‘time-sharing’? É que estes termos aparecem também no mesmo artigo que, presumo, seja feito para ser lido maioritariamente por portugueses. E, não sendo o inglês língua oficial de Portugal, não entendo como obrigatório que todos tenham de saber traduzir aquelas palavras’.
Mudando de tema, o leitor Paulo Rato propôs-se intitular ’Vamos salvar as preposições!’ a sua carta ao provedor. Eis a razão: ’Tenho notado que a temível quinta coluna que, infiltrada em tudo o que é meio de comunicação de massas, actua impunemente com o intuito de descaracterizar a língua portuguesa (…), se voltou agora para as preposições. (…). Num artigo publicado no P2 de 4 de Setembro, ‘Assassinaram o perfeito Brian?’, lê-se: ‘empreiteiro encarregue pela remodelação da mansão do guitarrista’. Que significa isto em português bem ‘preposicionado’: que uma entidade, de nome ‘remodelação’, encarregara o empreiteiro da mansão. De quê? Talvez de cuidar dela, de verificar que nada lhe acontecia, coisas assim… No PÚBLICO, semanas antes, escreveu-se: ‘Salvaguardando não conhecer ao detalhe a directiva’. Dou de barato o ‘detalhe’, galicismo de há muito acolhido pelos dicionários (…), mas refiro a sua origem porque, neste caso, é admissível que a preposição também tenha vindo de França, a acompanhar o ‘detalhe’, em embalagem de alumínio, com conteúdo ‘au meunier’. (…) Acrescento outra pérola, de 5 de Setembro. (…) É nos destaques de TV que está este anúncio de uma verdadeira revolução (ou será revulsão?) da História: Roubos de Arte Nazi (…) narra a história épica do roubo sistemático, da destruição deliberada e da sobrevivência milagrosa dos tesouros artísticos europeus do Terceiro Reich e da Segunda Guerra Mundial’. Será também da doença das preposições?’
Muito há a acrescentar, mas propõe-se apenas uma reflexão aos jornalistas. Num título na pág. 10 de 17 de Julho, ’Social-democratas em silêncio sobre propostas de revisão constitucional para a Madeira’, o PÚBLICO aderiu à tendência tão em voga no meios audiovisuais de fazer o plural de ’social-democrata’ apenas no termo final, e não, como indicam a maior parte dos filólogos, nos dois (’sociais-democratas’). Como fará quem assim procede para o plural de ’democrata-cristão’?’