Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia não dá conta da cleptomania nacional

Pretende ser menos simplória do que parece uma pergunta provocada pela leitura dos jornais do fim de semana (3 e 4/6): como a mídia deve cobrir a corrupção?


A sabedoria convencional, como dizem os gringos, manda fazer duas coisas que se complementam.


Primeiro, cultivar fontes nas instituições de combate ao roubo do dinheiro público – Polícia Federal, Ministério Público, Controladoria-Geral da União, Judiciário, tribunais de Contas etc – para saber em primeira mão o que andam farejando os seus perdigueiros.


Segundo, a partir dessas pistas e/ou do acesso aos insatisfeitos que sempre existem quando existem maracutaias, bisbilhotar, capturar documentos, checar acusações, traçar o caminho das pedras percorrido pela bandalha – e publicar, publicar, publicar.


O modelo, porém, não funciona no piloto automático. A sua serventia será tanto maior quanto menos freqüente e mais localizada a praga a ser exposta. Portanto, varia de país para país e de época para época.


Até aqui, é o óbvio. O caso se complica quando se pergunta como usar o modelito no atual momento brasileiro, quando o assalto ao dinheiro do contribuinte não apenas parece ter deitado raízes nos três Poderes da República e nas três esferas da Federação, como ainda parece se beneficiar de um clima difuso de resignação diante do que seria a inevitabilidade da corrupa. Segundo uma pesquisa divulgada na coluna Ancelmo Gois, no Globo de sábado (3/6), dois em cada três cariocas acham que a corrupção no Brasil ‘não tem jeito’.


E quando, definitivamente, não dá para cair na esparrela maniqueísta que contrapõe, de um lado, políticos e funcionários larápios, de outro, uma sociedade eticamente virtuosa, seja nos negócios de seus membros uns com os outros, seja nos de todos com o poder público – do proverbial guarda da esquina às também proverbiais altas autoridades constituídas.


Todos conhecem a história dos cegos chamados a apalpar um elefante, cada um dos quais descreverá um bicho que elefante não é, mas de elefante tem muito. O jornalismo brasileiro não é cego (ao contrário, é capaz de arregalar os olhos quando as circunstâncias e os interesses seus e alheios o induzem a isso). Mas será que esse parrudo e voraz espécime de que se está falando, com a sua complexa anatomia, fisiologia – e ecologia, porque não vive no vácuo – ainda cabe no campo tradicional de visão da mídia?


Material para reflexão jornalística


Um passeio, que de ameno não tem nada, pelas recentes edições dos principais diários da terra, pode dar a medida do problema, embora não conduza – pelo menos a juízo deste leitor – a uma solução para os novos desafios que a cleptomania nacional impõe à imprensa.


A Folha de S.Paulo, por exemplo, ocupou domingo (4/6) quase todo o seu caderno ‘Brasil’ com o mensalão, um ano depois. Fez o que lhe competia, por ser o jornal onde a palavra apareceu pela primeira vez, na edição de 6 de junho de 2005, pela boca do então deputado Roberto Jefferson, na primeira das duas entrevistas que daria à repórter Renata Lo Prete (atual editora da coluna ‘Painel’).


Na embalagem do pacotão – o seu texto de abertura – e nos quatro artigos, de perspectivas amplamente diferentes, nele acondicionados, há elementos de sobra para a reflexão jornalística – que pode ter pontos em comum, mas não se confunde com a reflexão do leitor, por ser profissional uma e valorativa, a outra.


Seja lá quem o tenha escrito, o abre do conjunto mensalônico levanta três pautas permanentes e difíceis de satisfazer.


** Quando diz: ‘Politicamente, o país pertencia a outra era [antes da irrupção do escândalo]. Mais cega, sem dúvida. Menos cínica, talvez.’


** Quando diz: ‘Se mais ou menos corrupta [a era] é difícil mensurar.’


** E quando diz: ‘Entre desiludida e anestesiada, a opinião pública ainda espera respostas.’


O que este leitor tira disso é que a questão da mentalidade dos brasileiros hoje se tornou parte integrante da abordagem jornalística, que pretenda ir além do trivial variado de todo dia, de uma prática cujo tamanho nem jornalistas nem ninguém são aparentemente capazes de medir.


Esse nó está presente nas pensatas dos convidados da Folha a explicar o mensalão e as suas implicações – os historiadores Boris Fausto e Luiz Felipe de Alencastro, e os economistas Paul Singer (do PT e trabalhando no governo) e Gustavo Ioschpe.


Singer, depois de reconhecer que o que chocou a opinião pública foi a revelação de que até o PT ‘utilizava métodos que sempre denunciou e combateu’, critica o seu partido por assimilar gradualmente ‘métodos de ação que caracterizam a política profissional em quase todos os países capitalistas democráticos’.


[Um exemplo desses métodos, no exterior, está na reportagem do New York Times que O Estado de S.Paulo publicou também em 4/6 sob o título ‘Clientelismo nos EUA sobrevive a escândalos’.]


Não será absurdo deduzir daí serem difíceis de distinguir as fronteiras entre a cobertura da política profissional e a cobertura dos métodos de ação que a caracterizam.


Alencastro traz o mensalão a valor presente – o quadro pré-eleitoral em que ‘um enfrentamento mais insidioso toma conta do país’, na ‘clivagem entre as intenções de votos dos pretensos `ilustrados´, de um lado, e dos alegados `desinformados´ de outro; entre o nordeste e o centro-sul; entre os mais ricos e os mais pobres’.


Seja qual for a verdadeira dimensão dessa clivagem, por sinal identificada em tudo quanto é pesquisa eleitoral, a imprensa tem oferecido pouca mercadoria de produção própria, e não dos explicadores dos ibopes, sobre o mensalão ser – ou não – um fator decisivo para a decisão do eleitor em outubro. De todo modo, a corrupção não atravessa apenas a cobertura da atividade política no plano das instituições, mas também no plano das campanhas eleitorais.


Fausto, no seu artigo, fala em ‘abalo das instituições’, ‘crise dos valores’ e na ‘sensação de desalento [que] toma conta das pessoas informadas’. Prova disso, a seu ver, é que ‘o tema do desvio de dinheiro público […] tornou-se aborrecido, mesmo aos olhos dos cidadãos informados’.


Para concluir, pessimista:




‘Instituições e valores atingidos não se restauram facilmente. Por isso seria ilusório acreditar numa renovação e reconstrução a curto prazo. Elas dependerão das iniciativas de uma sociedade civil indignada, mas pouco mobilizada […].’


‘Ninguém denunciará as impropriedades do outro’


Isso é o que focaliza – a começar do título, ‘O ano em que desistimos’ – o texto de Ioschpe, concentrado na relação dos brasileiros com o mensalão.


Ele se detém em 13 fatos ou atitudes da esfera política que não são ‘o mais surpreendente destes doze meses’, antes de disparar:




‘O que é verdadeiramente surpreendente, o que beira as raias do chocante é que […] a sociedade brasileira tenha aquiescido e aquietado-se. Que tenha aceitado mansamente escândalo depois de escândalo.’


Entre as possíveis causas dessa ‘inação’ ele inclui ‘a fadiga com o sistema político’ que teria chegado ao ponto da total indiferença, mas não separa os bandidos da sociedade política dos mocinhos da sociedade civil:




‘Os eleitos nos enganam e os eleitores tentamos burlar leis, sonegar taxas e tratar a urna como penico, e ficamos acertados que ninguém denunciará as impropriedades do outro.’


Não estará aí a semente não de uma pauta específica, mas de um modo de enquadrar jornalisticamente, matéria depois de matéria, o que um acadêmico chamaria a imbricação social da corrupção?


Como não, se a manchete dessa mesma edição da Folha é sobre os US$ 20 bilhões enviados clandestinamente ao exterior, de 1996 a 2003, provenientes de ‘caixa dois das empresas, tráfico de drogas ou corrupção’?


A cifra equivale ao faturamento somado da Petróleo Ipiranga, Volkswagen e General Motors.


‘O mercado paralelo de dólar gira anualmente US$ 63 bilhões no Brasil’, informa a reportagem. Desses, US$ 49 bi são movimentados por empresas, ‘os principais clientes de doleiros’, segundo uma fonte.


Com base nas investigações da CPI do Banestado, a Receita Federal aplicou autuações na casa de R$ 6,7 bilhões, investiga 1.100 contribuintes por remessa de recursos não declarados ao exterior e poderá ainda investigar outros 3 mil.


Apenas o fio da meada


E tem os sanguessugas – prefeitos, empresários, parlamentares, assessores, funcionários federais – cujos desvios do Orçamento da União para financiar a venda de ambulâncias superfaturadas e cuja disseminação pelo país compõem um quadro ainda mais sombrio do que o do mensalão.


Digamos que o mensalão/caixa 2 tenha movimentado qualquer coisa como R$ 50 milhões. As autuações da Receita (impostos não pagos, multa e juros) já alcançam R$ 16 milhões. Trinta e seis empresas e 84 pessoas estão na mira do Fisco.


Já os 48 quadrilheiros das ambulâncias identificados pela Polícia Federal e denunciados pelo Ministério Público – sem falar nos outros 159 parlamentares suspeitos – movimentaram R$ 110 milhões.


E isso é apenas o fio da meada, revelou ao Globo o ministro-chefe da Controladoria Geral da União, Jorge Hage. Passando o pente-fino em 300 convênios do governo federal com prefeituras, 90% dos quais com irregularidades, os fiscais da CGU localizaram uma segunda quadrilha do gênero, agindo, diz o ministro, ‘em praticamente todos os estados do Brasil’.


O monstrengo é tão feio que ambulâncias eram vendidas não apenas pelo dobro do preço em muitos casos, mas, conforme o deputado Delfim Netto conta no Valor de segunda-feira (5/6), com a ‘recomendação de que os veículos deveriam ser entregues com defeito, para se roubar um pouco mais’.


Ainda não acabou. Segundo Hage, o total de repasses da União para as prefeituras é de R$ 100 bilhões por ano. Há fraudes na aplicação dessa montanha de dinheiro para todo tipo de finalidade. De cada sete contratos firmados pelas prefeituras com verbas federais, ‘mais de 70%’ contêm irregularidades, informa o Globo.


As coisas, dizem os filósofos, mudam de qualidade quando mudam de quantidade. A escala da corrupção brasileira é de tal ordem, e de tal forma ela perpassa a vida nacional – ou assim é percebida – que a receita clássica para a apuração jornalística da roubalheira parece irremediavelmente obsoleta.


Hoje como hoje, a imprensa dá conta de apenas uma parte – e olhe lá – da endemia.