50 ANOS DE ILUSTRADA
Daqui pra frente
‘Livro, exposição, debates. As comemorações dos 50 anos da Ilustrada começaram com o lançamento de ‘Pós-Tudo – 50 Anos de Cultura na Ilustrada’ (Publifolha), de Marcos Augusto Gonçalves, no dia 24 de novembro, quando uma mostra sobre a história do caderno foi aberta na Fiesp.
Ao longo da última semana, Caetano Veloso, José Padilha, Lobão e Contardo Calligaris foram alguns dos convidados para um ciclo de discussões que teve lugar no Masp.
Agora, é hora de pensar no futuro. Nas páginas desta edição especial, o leitor encontrará reportagens sobre os assuntos que devem estar na pauta do caderno nas próximas décadas. O impacto das novas mídias, os dilemas do financiamento público da cultura e o que deve acontecer com o conceito de autoria são alguns dos tópicos.
Mônica Bergamo (na página ao lado) traz as apostas dos famosos de hoje sobre quem serão as personagens das colunas de amanhã. E os cartunistas Laerte, Glauco, Angeli, Caco Galhardo, Adão e a dupla Fábio Moon e Gabriel Bá tematizam as últimas cinco décadas.’
Laura Mattos
Consumo popular
‘‘Era um mega-chororô. Adolescentes, em sua maioria da classe C, pagando para ver um show internacional e chorando como se o mundo fosse acabar.’ O antropólogo Hermano Vianna, estudioso da cultura popular, assim descreve a apresentação da banda mexicana RBD, em novembro, no Rio.
E cita a paraense Calypso, outro fenômeno, para festejar ‘sucessos de massa que surgem sem aval de gravadoras ou de críticos de jornais’. ‘Que bom que tais ‘elites’ estejam perdendo o controle.’
Números deixam claro que, se a atual crise global não inverter a lógica, a inserção da classe C no consumo cultural deverá ser um dos grandes desafios para produtores de música, cinema, TV e outras áreas nos próximos anos. Essa fatia da população brasileira, cuja renda familiar se situa, em média, entre R$ 726 e R$ 1.195, subiu de 33% para 54% entre 2003 e 2008 (Datafolha). Além de crescer, ganhou poder aquisitivo.
De acordo com o Ibope, entre 2003 e 2004, só 17% da classe C tinha acesso à internet. Entre 2007 e 2008, saltou para 34%.
Os assinantes de TV foram de 10% para 13% no mesmo período, e esse mercado trabalha para ampliar a nova clientela. Sabe que, uma vez que a classe AB está quase conquistada, a popularização é o caminho.
O presidente-executivo da ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura), Alexandre Annemberg, diz que empresas do setor estão investindo em canais dublados. ‘O desafio é saber o que atrairá a ‘classe emergente’, que já tem muito conteúdo na TV aberta.’
Outra tendência é a criação de pacotes mais econômicos, com canais de custos baixos. ‘O preço das assinaturas ainda é uma barreira. Mas a oferta de TV com banda larga é atrativa, e a venda de computadores no país ultrapassou a de televisores. A TV fechada pode até ser vista como supérflua na classe C, mas a internet é uma ferramenta de inclusão social.’
A inclusão digital da classe C mudará os rumos da produção cultural, para Rick Bonadio, produtor de Mamonas Assassinas, Charlie Brown Jr. e CPM 22. ‘A classe C, a grande consumidora de música, será cada vez mais importante no consumo de música digital, o negócio do futuro, graças ao maior acesso a celulares sofisticados, banda larga e players como o MP3.’
Nessa virada, a classe popular tem outra importância: garantir sobrevida ao CD. ‘É um fã com muita identificação com o artista e, por isso, além de nem sempre poder ir a shows, ainda compra CD e DVD.’
Produtor de filmes populares recordistas de bilheteria, como os de Xuxa, Padre Marcelo e Didi, Diler Trindade também busca na inclusão digital a solução para atingir a classe C. ‘Devemos vender filmes por downloads baratos, a uns R$ 3.’
Cinema caro
Mas ele revela estar, por ora, deixando de lado a classe C como alvo em troca de filmes com perfil mais jovem e para exportação. ‘O cinema está caro, e essa classe se endividou comprando computadores, televisores de plasma, DVDs e home theaters. Não sobrou muito para ir ao cinema.’ Dados do Ibope mostram que há fundamento. De 2003/2004 para 2007/2008, a freqüência desse público no cinema caiu pela metade, de 14% para 7%.
Enquanto o cinema volta as lentes a novas formas de atingir a classe C, a TV aberta precisa garantir um caminho para não perdê-la. Ainda ‘reis’ da mídia, os canais abertos são vistos por 97% da população, que ampliou em 30 minutos o tempo diário dedicado a eles nos últimos sete anos, segundo o Ibope (4h42/dia de janeiro a junho).
Mas, diante da parafernália tecnológica que invade os lares, ‘a ruptura vai acontecer’, na opinião de Rubens Glasberg, editor da ‘Tela Viva’, entre outras conceituadas publicações sobre TV e telecomunicações.
Para ele, o modelo de negócio da TV, hoje baseado no faturamento com publicidade, terá de mudar. ‘A digitalização e a ligação com a internet farão com que as pessoas vejam programação de forma não-linear, escolhendo o horário para assistir à novela sem comerciais. A questão será como ganhar dinheiro com isso.’
Glasberg vê uma tendência de vulgarização na televisão, que vai ter de reduzir custos e se atrelar mais às classes C, D e E. ‘Não será possível manter uma novela, como hoje, com custo médio por capítulo de R$ 200 mil. Ou a TV acha um caminho ou vai para o beleléu.’’
Cássio Starling Carlos
O artista diluído
‘Após mais de 50 anos de sua emergência, a noção de autoria da produção audiovisual distanciou-se do molde de expressão de visão genial e única que funcionou, nos primórdios da ‘política dos autores’, como estratégia da afirmação artística do cinema em meio à lógica industrial de Hollywood.
Cineastas, roteiristas, diretores de TV, autores de novela e criadores de séries conquistam cada vez mais um lugar ao sol sob o céu da autoria sem ter que enfrentar a falta de escrúpulos de produtores ‘desalmados’.
Não se trata de enxergar no atual quadro histórico e no que ele esboça daqui para a frente um estágio em que os criadores alcançaram plena autonomia.
O que testemunhamos é a eleição do autor ao posto de importante fator de marketing para um produto. Um bom nome pode ajudar a vender se estiver no alto do cartaz.
No caso das séries de TV, J.J.Abrams, David Chase, Alan Ball, Tim Kring, entre outros, se tornaram nomes reconhecidos como criadores de ‘Lost’, ‘Família Soprano’, ‘A Sete Palmos’ e ‘Heroes’.
Na TV aberta brasileira o reconhecimento de um autor encontra-se habitualmente associado ao nome de quem escreve o texto. Gilberto Braga, cuja assinatura acompanha alguns dos mais importantes ‘clássicos’ da teledramaturgia brasileira, relativiza a tendência em transformar uma produção coletiva como uma telenovela em trabalho de um homem só. ‘É uma obra de equipe, todos contribuem.’ Contudo, ressalta que ‘autor e diretor são líderes. A telenovela é do escritor e do diretor, mas o escritor geralmente tem mais visibilidade’.
Luiz Fernando Carvalho, criador da microssérie ‘Capitu’, assume a particularidade de seu trabalho como autor na TV. ‘Como no meu caso escrevo e dirijo meus projetos, ser autor é imprimir meu pensamento em todas as áreas e departamentos da produção.’
No caso de uma obra como ‘Alice’, série da rede a cabo americana HBO com a brasileira Gullane Filmes, é outra a margem de autonomia para a expressão de personalidades.
Como enfatiza o cineasta Karim Aïnouz, que assina, ao lado de Sérgio Machado, a direção de ‘Alice’, ‘a gente sabia, é claro, que se tratava de um filme de produtor no formato TV, com partes dirigidas por nós dois e por outros profissionais, mas no qual conseguimos imprimir uma personalidade. Isso porque existia um formato que comportava uma flexibilidade. Havia uma estrutura padrão de série, mas com um espaço que nos permitiu exercer aquilo que a gente sabia fazer bem nos filmes que tínhamos feito’.
Do lado de quem escreve roteiros, a reivindicação de autoria revela outros aspectos. Di Moreti, um dos fundadores e atual presidente da associação Autores de Cinema, que congrega roteiristas, argumenta que ‘a intenção do grupo, de fato, é defender o mínimo direito do roteirista, o direito sobre a obra que deu origem ao filme. Queremos apenas nossa parcela de culpa no resultado final’.
Em defesa do próprio trabalho se posiciona com firmeza a roteirista Elena Soarez. ‘Sou totalmente contrária à invasão dos diretores nos créditos de roteiro, uma prática, infelizmente, comum no nosso cinema, herdada do tempo em que o diretor fazia tudo. Curiosamente, diretores não se imiscuem nos créditos de direção de arte, fotografia e figurino.’
No lugar de disputa de território, o diretor Kiko Goifman, do recém premiado ‘FilmeFobia’ no Festival de Brasília, propõe a autoria como uma prática compartilhada, expressão de uma subjetividade de grupo, em vez do autor que se encontra no cume de uma estrutura piramidal como o público leigo supõe que se organiza uma produção de cinema.
‘A hipertrofia do autor provoca o efeito de a pessoa superar a obra. Com isso, a repetição ocupa o lugar da criação, o que para o artista é o maior risco.’
Ponto de vista equivalente é dado por George Moura, que insiste em apagar a ilusão de que a TV mereça ser encarada como um paraíso autoral. Para Moura, roteirista da Globo e um dos criadores do programa ‘Por Toda Minha Vida’, ‘existe, sim, a possibilidade de invento, mas em TV a autoria é algo absolutamente secundário. Como diriam os modernistas brasileiros: abaixo o gênio e viva a rapaziada!’’
Guilherme Werneck
Quem paga a conta?
‘A idéia de que tudo estará à mão, instantaneamente, é a que predomina quando se coloca sob a perspectiva tecnológica o futuro da produção e do consumo cultural. A boa notícia: é quase certo que, em 2018, quando a Ilustrada for lida pela internet, ninguém precisará de uma máquina de escrever colada a um aparelho de TV para acessá-la. O computador, assim como todos os gadgets daqui a dez anos, caberá no bolso. Será ativado por voz, projetará filmes, tocará música e escreverá o que você ditar, corrigindo os erros.
Essa visão foi coletada depois de conversar com quatro pensadores da tecnologia e da cultura que não têm medo de arriscar palpites: Chris Anderson, editor da revista ‘Wired’, Joichi Ito, CEO do Creative Commons, Silvio Meira, cientista-chefe do C.E.S.A.R. (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife) e Ronaldo Lemos, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV-RJ. Para Lemos, um fenômeno que já é observado agora, a nuvem computacional é a chave para se ter tudo na mão. ‘É o fim da era do iPod, da troca de arquivos. Tudo migra para a rede e você acessa com qualquer dispositivo, a qualquer hora, em qualquer lugar.’
Silvio Meira partilha da visão, mas não deposita tanta fé no ‘cloud computing’. ‘Hoje tenho um celular que é mil vezes mais rápido do que o computador do MIT em 1965. No futuro, com a internet ultra-rápida, vou sintonizar serviços, e a rede vira uma estação de rádio bidimensional, que atende aos meus comandos’, diz. ‘Mas uma parte da computação vai continuar na mão das pessoas’, completa.
Mais prudente, Joi Ito acredita que a rede estará sempre ligada e em todo lugar, mas tem dúvidas quanto a ela ser acessada livremente. ‘Hoje as maiores nuvens são fechadas. Ainda vai demorar para que o streaming tenha um custo baixo, então o iPod ainda será economicamente necessário’, pondera. O caso de filmes será similar, mas ninguém acha que o ato de ir ao cinema acabará. ‘Hollywood não quer fazer filmes para telas pequenas. Fará as duas coisas, mas vai ganhar em experiências, como exibições 3D, Imax’, diz Chris Anderson.
Ronaldo Lemos crê que o cinema se tornará uma atividade de nicho. ‘Isso não significa que a produção audiovisual diminui, mas que ela assume outras formas, talvez mais colaborativas’, arrisca. Silvio Meira imagina a possibilidade de reproduzir a mesma sensação de estar no cinema, em casa.
‘Você vai poder marcar uma sessão sincronizada com outras 5.000 pessoas. Sentamos num ambiente imersivo e o meu canal passa o filme e capta as informações das pessoas que estão assistindo.’ No caso de livros, novos leitores deverão dar lugar aos e-books de hoje. Coisas mais agradáveis como papel plástico e a e-tinta, que emulam a sensação do papel, servirão para a leitura. Lemos diz que, por conta dos novos gadgets, surgirá uma nova literatura voltada para o meio. ‘O romance existiu por causa do formato livro. ‘Guerra e Paz’ foi feito para ler no inverno russo. O livro vai migrar para objetos móveis, e faremos literatura para eles.’
Com tudo acessível a toda hora e em todo lugar, resta a pergunta: quem paga a conta? Como remunerar quem produz arte? ‘As leis da economia do século 21 não mudam, mas são diferentes das de Adam Smith. O gratuito passa a ser uma opção, mas também há modelos com menor margem de lucro e mais abrangência. Outra questão em jogo é a reputação de quem faz, como no caso da venda do ‘In Rainbows’, do Radiohead’, diz Chris Anderson. ‘A escassez na produção acabou e não há o que fazer do ponto de vista econômico. A informação é abundante, o que é escasso é o tempo, a atenção’, completa Lemos.
Para ele, o desafio dos novos modelos de negócios é chamar a atenção do consumidor e não apenas vender os produtos.
GUILHERME WERNECK é editor da ‘Trip’’
Silvana Arantes
Do paradoxo ao impasse
‘As engrenagens da produção cultural no Brasil operam sob um paradoxo. Principal peça da estrutura de financiamento à cultura, a Lei Rouanet nunca foi tão usada em seus 18 anos de vigência -movimentou cerca de R$ 1 bilhão em 2007-, nem tão arduamente combatida pelo MinC (Ministério da Cultura), órgão que a opera.
‘Esse mecanismo beira a farsa. Não construiu responsabilidade social, não criou um capitalismo cultural, não fortaleceu empresas; pelo contrário, os produtores viraram dependentes, precisam de uma dose diária de Lei Rouanet para sobreviver’, diz o ministro da Cultura, Juca Ferreira.
O instrumento constituiu a primeira experiência de fomento à cultura com base em incentivo fiscal no Brasil, autorizando o destino de parte do Imposto de Renda à realização de projetos culturais previamente aprovados pelo MinC.
‘A concentração dos recursos no eixo Rio-SP é de 80%. O interesse básico do empresariado que se associa à lei é financiar quem já é consagrado, para ter retorno de imagem. O Estado disponibilizou recursos para aprofundar as distorções sociais e regionais do Brasil’, afirma Ferreira.
A preocupação do ministro ‘é legítima, mas está mal aplicada no caso da Lei Rouanet’, avalia o secretário estadual de Cultura de São Paulo, João Sayad, que cita a participação da região Sudeste de 73% no PIB (Produto Interno Bruto).
‘A distribuição de recursos entre a federação é um tema delicado. Nessa discussão, SP e o Sudeste apanham, porque, do ponto de vista populista, é um argumento fortíssimo. Há até hoje quem acredite que o Nordeste é pobre porque São Paulo é rico, quando, na verdade, é o contrário. O Nordeste é menos pobre porque São Paulo deu um pouco certo’, diz Sayad.
A intenção de reformar a Lei Rouanet está expressa no programa de Lula à Presidência nas eleições de 2002, porém, nunca foi feita. O MinC já promoveu incontáveis seminários para tratar do tema.
As discussões, no entanto, resultaram em pouco mais que uma extensa lista de lamentações, cujo fundamento é a reivindicação por mais dinheiro e mais facilidade para obtê-lo.
Entre artistas, é espinhoso o tema da desnecessidade do público, um efeito do uso da lei, que o ministro cita abertamente: ‘Estimulou uma distorção enorme na arte. Ninguém precisa mais do seu público’, diz ele, já que as obras estréiam com seus custos de produção já cobertos pelo patrocínio.
Outra distorção, o financiamento público de produtos culturais para o consumo da elite, ficou transparente em 2006, quando o MinC autorizou a companhia canadense Cirque du Soleil a captar R$ 9,4 milhões para apresentar no Brasil um espetáculo cujos ingressos custavam entre R$ 50 (meia-entrada) e R$ 370.
‘Acho que não é um erro da lei; é um erro da administração. Não deviam ter aprovado. Não deviam ter dado crédito ao banco xis, que quebrou lá no passado’, diz Sayad, argumentando que ‘toda política governamental tem uma taxa de atendimento de seu objetivo inicial e uma taxa de não-atendimento, por corrupção, etc’.
De acordo com o projeto de reforma da Lei Rouanet que Ferreira quer mandar ao Congresso, ela será diluída num conjunto de outros mecanismos cuja peça-chave é um fundo a ser gerido pelo MinC.
Pela proposta do ministério, o financiamento à cultura seguirá público, em sintonia com tendência mundial. A questão é: a decisão sobre como, quanto e onde aplicar esses recursos cabe ao Estado ou não?
Em si já complexa, a equação terá de ser resolvida com um ingrediente a mais -os desdobramentos da crise financeira mundial.
Em suma, o futuro próximo do financiamento à cultura no Brasil tende a sair do paradoxo para o impasse.’
Sérgio Dávila
Ordem no caos
‘O norte-americano médio consome por ano 973 horas de TV paga e 639 horas de TV aberta, passa 189 horas online, joga 85 horas de videogames, assiste à 61 horas de DVD, navega 15 horas em internet via celulares e passa 12 horas no cinema, segundo levantamento realizado em 2007 pela Veronis Suhler Stevenson, um fundo de investimentos especializado em mídia.
São 5,7 horas de consumo desse tipo por dia, pouco menos do que o gasto para dormir pelo mesmo norte-americano médio. Nunca a oferta de entretenimento e cultura foi tão grande na história da humanidade. Organizar e dar nexo a esse fluxo ininterrupto será uma das tarefas do jornalismo cultural impresso do futuro. Para fazer isso, enfrentará duas barreiras: espaço e tempo.
No ‘New York Times’, um dos maiores e o mais influente jornal norte-americano, o caderno ‘The Arts’ e seus primos ricos, ‘Weekend Arts’, às sextas, e ‘Arts & Leisure’, aos domingos, entregam uma média de 15 páginas diárias aos seus leitores, incluídos todos os anúncios.
Obviamente, a editoria não tem espaço para cobrir tudo.
Para ficar apenas no exemplo de livros, o jornal publica seis resenhas por semana, excluídas as que saem no caderno literário dominical. Pois só na área de ficção para adultos em 2008 nos EUA, segundo a empresa R.R. Bowker, que analisa esse mercado, foram lançados 100 livros -por dia.
Se não pode ser exaustivo, também não pode ser ‘em tempo real’. O ruído que a profusão de blogs dos últimos dois anos vem causando no ciclo noticioso de 24 horas tem sido especialmente sentido no jornalismo cultural.
Não há uma aferição precisa de quantos são os diários virtuais dedicados ao assunto, mas uma estatística dá idéia da proliferação: em 2008, pela primeira vez na história, o número de blogueiros e jornalistas online presos por motivos políticos ultrapassou o dos da mídia tradicional, segundo o Comitê de Proteção aos Jornalistas, ONG baseada em Nova York.
Rápido: medíocre
Sobre o tempo, o futurista-residente do ‘New York Times’ acha que muitas vezes no jornalismo cultural o mais rápido é o mais medíocre. ‘A crítica leva tempo para ser pensada e escrita, e uma resenha disparada do iPhone de alguém no lobby de uma peça de teatro pode não ser a melhor obra’, diz à Folha Michael Rogers.
Ele mesmo apresenta um exemplo: ‘Resenha no Twitter – 1º Ato A Gaivota Tchekhov. Arrastado. Por que Konstantin está fora do palco e que coisa é essa com a lua?’.
Para o especialista no impacto da tecnologia na sociedade, a mídia tradicional ainda está tentando descobrir o que fazer exatamente com o formato do blog. ‘É a verdadeira forma original de jornalismo a surgir da internet -uma forma que de fato não pode existir em nenhuma outra mídia. Estamos todos experimentando -mesmo o ‘New York Times’ tem mais de 50 blogs hoje.’
Uma das hipóteses levantadas por analistas de mídia é que o futuro papel do jornalismo cultural será também o de colocar ordem na cacofonia de informações, opiniões e achismo que é a blogosfera em geral nessa área -num blog, tudo é manchete. Nesse sentido, a mídia impressa será alimentada pela blogosfera, mas, ao hierarquizar assuntos por tamanhos, destaque nas páginas, uso de fotos, organizará o Carnaval.
Faço essa proposição a Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, autor de peças e de livros como a coletânea de reportagens ‘Queda Livre -Ensaios de Risco’ (Companhia das Letras). Ele concorda.
‘A edição impressa de um jornal funcionará como uma revista (sintética e analítica) do que aconteceu de relevante não nos últimos sete dias, mas nas últimas 24 horas’, afirma.
E sugere outro ângulo: ‘Talvez o impresso assuma também a vocação de síntese e análise dos fatos de interesse público, geral -já que o jornalismo online tenderá a uma personalização (‘customização’ ou atendimento ‘taylored’) da leitura de cada consumidor’.
Desastre
Visão mais radical e pessimista tem o crítico cultural norte-americano Lee Siegel, autor do libelo antitecnológico ‘Against the Machine – Being Human in the Age of the Electronic Mob’ (Contra a Máquina – Sendo Humano na Era da Turba Eletrônica, Spiegel & Grau, 2008). Em entrevista recente à Folha, disse considerar a invenção da internet um ‘desastre sem proporções’.
Para ele, não faz sentido uma inovação tecnológica que compromete a qualidade do jornalismo, em vez de a melhorar. É o que ele julga estar acontecendo nos Estados Unidos hoje. ‘Mas também sou culpado’, me diz. ‘Enquanto falo com você, estou checando o e-mail.’’
Rafael Cariello
O papel do intelectual
‘O jornalismo cultural e os intelectuais vinculados ao mundo acadêmico sempre tiveram uma relação tensa e indissolúvel. Tanto quanto a ligação dos cadernos de cultura com o mercado. É das características desse triângulo ‘amoroso’ que resulta o tipo de jornal que o leitor terá nas mãos.
Para Marcos Nobre, professor de filosofia política da Unicamp, o impasse em que se encontra hoje o jornalismo cultural deriva de sua relação quase simbiótica com o mercado. E se o papel dos cadernos de cultura, mais do que qualquer outra seção do jornal, é o de romper parâmetros, sua oportunidade e agenda futura estão dadas.
O parâmetro a ser rompido hoje, diz Nobre, é o de que o único elemento unificador da cultura, e legitimador da agenda jornalística, é o mercado.
‘A Ilustrada anda no fio da navalha para não fazer do consumidor de cultura o seu denominador comum. A Ilustrada corre o risco permanente de se tornar um Guia da Folha explicado’, ele diz. ‘Também porque, durante algum tempo, teve-se a ilusão de que essa seria uma saída para a tensão entre jornalistas e acadêmicos que tem caracterizado o pêndulo do jornalismo cultural nos últimos 30 anos.’
Que tensão é essa, afinal? O jornal precisa dos intelectuais e da universidade, segundo Nobre, como garantia de certa opinião independente de interesses comerciais, além de tecnicamente competente para a avaliação dos produtos e eventos noticiados.
Durante algum tempo -que teve como auge os anos 80- intelectuais também confluíram para o jornal. ‘Quando se consolida a universidade -depois do bem-sucedido processo de implantação do sistema de pós-graduação-, ela é ao mesmo tempo impedida de se apresentar ao público de maneira mais ampla pela repressão da ditadura militar. Acadêmicos passaram a ocupar os jornais como forma direta e explícita de intervenção política.’
Um dos canais de veiculação dessa cultura e crítica represadas foi, nos anos 80, o caderno Folhetim, que teve como um de seus editores o hoje crítico de arte Rodrigo Naves. Em entrevista para o livro ‘Pós-Tudo – 50 Anos de Cultura na Ilustrada’ (Publifolha), ele diz que o jornal abriu espaço para assuntos, autores e artistas até então ‘recalcados’, segundo a expressão do editor da Ilustrada, Marcos Augusto Gonçalves.
‘Houve uma renovação temática e autoral’, diz Naves.
O historiador Milton Ohata, editor de ensaios e obras de ciências humanas na editora Cosac Naify, cita o trabalho de Naves como um momento marcante de boa resolução nessa tensão entre universidade e jornal que lhe parece improvável de ser repetido. ‘Aquilo marcou muito toda a minha geração’, diz Ohata.
Para Marcos Nobre, tal confluência entre universidade e jornal não tem resultado, em geral, num encontro harmonioso. Ao contrário, há ‘um conflito entre produção acadêmica e produção jornalística que permanece’. ‘Até hoje, quando se quer desqualificar um acadêmico, diz-se que ele é jornalista. E quem trabalha em jornal entra em desespero diante de textos de acadêmicos que não conseguem formulações adequadas à linguagem jornalística.’
Produtos demais
Uma primeira tentativa de fazer os dois mundos convergirem mais fortemente na definição de agenda do debate cultural no país ocorreu, a seu ver, com a criação do caderno Mais!. Ocorre que o momento era justamente o de uma revolução na quantidade de produtos culturais ofertados.
‘A descoberta da produção cultural mundial em tempo real teve muito de deslumbramento. E provocou uma reação que perdura até hoje: a de que a cultura se estilhaçou e que não forma mais um todo homogêneo.’ Daí a impressão de que só pelo mercado é possível unificar tal cultura ‘estilhaçada’.
Contra essa tentativa de continuar a cobrir a cultura como se fosse possível abarcar a totalidade dos produtos e assuntos, Nobre propõe uma agenda para o jornalismo cultural em que a aproximação com os intelectuais teria papel importante.
Os principais pontos são: 1) politizar a cobertura de cultura, apresentando os projetos conflitantes de vida cultural no país, e 2) ‘produzir conversas’.
‘É muito mais produtivo cobrir menos coisas, mas fazer uma discussão sobre alguma coisa, do que tentar abraçar tudo. Menos coisas com mais densidade.
Menos espelho do que acontece, e mais escolha do que deve ser discutido a fundo. A quantidade tem atrapalhado, e muito’, ele diz.
O antropólogo Hermano Vianna acrescenta um projeto extra: diz que o próprio ‘mercado’ em que o jornalismo cultural se baseia já não é a totalidade do mercado, que nem forma estabelecida tem.
Caberia perguntar, ele diz: ‘O que é o mercado? Como funciona? Como fazer uma crítica consistente do funcionamento contemporâneo do mercado?’.
‘Por exemplo: falar em mercado da música hoje, o que significa? As tais grandes gravadoras em atuação no Brasil não têm nem cem artistas contratados. E esse número declina todos os dias.’’
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‘Uma nova ‘vanguarda’ tem caracterizado a intervenção intelectual no jornalismo brasileiro em anos recentes -e ela é de direita.
As idéias que geram debate e reações apaixonadas de apoio ou contestação partem de colunistas e intelectuais que podem ser caracterizados como liberais, de direita ou conservadores -mas que se unem na crítica ao capitalismo ‘manco’ brasileiro e à longa hegemonia de valores de esquerda no debate político e cultural no país.
De certa forma, a Ilustrada participou desse processo. O jornal contribuiu, nos anos 80, para despolitizar a cultura e o entretenimento e a tendência de simpatia, gerada no regime militar, por obras e artistas de inclinação esquerdista. Procurou separar apreciações estéticas de valores políticos.
Isso no período final da Guerra Fria. Com a queda do Muro de Berlim, uma nova hegemonia liberal instalou-se, primeiro, no pensamento econômico. Enquanto o mercado do país se abria, e se distanciava no tempo a ditadura militar, tornou-se possível associar a esquerda à defesa de um ideário ‘ultrapassado’ e, até, defensor de ‘privilégios’.’
Folha de S. Paulo
História em quadrinhos
‘Desde os anos 80, os quadrinhos são como a cereja do bolo da Ilustrada. Personagens célebres como Bob Cuspe, Geraldão e os Piratas do Tietê captaram como poucos o espírito de seu tempo. Para esta edição especial, a Folha chamou seus principais cartunistas, Angeli, Laerte, Glauco, Caco Galhardo, Adão e Fábio Moon e Gabriel Bá, para criar tiras inspiradas em cada década em que o suplemento circulou.
Um dos primeiros a desbravar esse espaço, Angeli estreou na Ilustrada em 1983, com a tira ‘Chiclete com Banana’, de personagens como o comunista ortodoxo Meia-Oito e a junkie liberada Rê Bordosa. Antes disso, porém, em 1975, ele começou a publicar charges políticas no jornal, quando tinha apenas 18 anos.
Logo depois de Angeli, chegou Glauco, em 1984, com os conflitos pós-revolução sexual do Casal Neuras e as aventuras e roqueiro frustrado Doy Jorge, inspirado em personagens da noite paulistana.
Laerte, que já havia colaborado com a própria Folha na Copa de 1982 e com o Pasquim, estreou no caderno em 1991, com os ‘Piratas do Tietê’. No mesmo ano, o trio criou a tira ‘Los Tres Amigos’, que passou a ser publicada no Folhateen.
Caco e Adão juntaram-se ao time em 1996, com os Pescoçudos e Big Bang Bang, que trazia a personagem Aline com seus dois namorados, Oto e Pedro.
Os ‘novatos’, mas já internacionalmente reconhecidos -com dois prêmios Eisner conquistados este ano-, são os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, 32, autores da tira ‘Quase Nada’, publicada aos domingos desde setembro.’
Marcos Augusto Gonçalves
Roda da cultura
‘Naquele que se tornaria o país da música e do futebol, a conquista da primeira Copa do Mundo e o lançamento da batida perfeita do violão de João Gilberto em ‘Chega de Saudade’ marcaram o movimentado ano de 1958.
O final da década de 50 foi um momento em que o Brasil parecia condenado a participar do novo bazar mundial de modernidades. O chamado modelo ‘urbano-industrial’ tornava-se realidade, uma nova capital se desenhava no Planalto Central e a cultura e a política pareciam anunciar o alvorecer de uma sociedade mais criativa e menos desigual.
Foi no dia 10 de dezembro de 1958 que a primeira edição da Folha Ilustrada chegou às bancas. Era o que se chamava na época de um caderno de leitura e variedades. Notícias quentes não eram o seu forte. Por suas páginas desfilavam os ‘fait divers’, as tendências da moda européia, as estrelas do entretenimento, as notas sociais, as tiras de quadrinhos e os artigos sobre literatura, artes e avanços da ciência.
O nascimento da Ilustrada é um episódio no processo de modernização da imprensa brasileira, que já havia produzido, poucos anos antes, um importante suplemento literário semanal em ‘O Estado de S. Paulo’ e outro, mais vanguardista, no ‘Jornal Brasil’ -além da histórica revista ‘Senhor’.
Foi a partir de 1964, quando o novo proprietário da Folha, o empresário Octavio Frias de Oliveira, contratou o jornalista Cláudio Abramo para auxiliá-lo na renovação do jornal, que o caderno começou a ganhar um novo rosto. Na seqüência do golpe de 64, a efervescente, imaginosa e politizada produção artística da época indicava que era tempo de dar à editoria um perfil mais cultural.
Mas o AI-5 (que ontem completou 40 anos) envolveu o país numa atmosfera sufocante, que só começaria a desanuviar em meados dos anos 70. Foi a partir desse momento que a Folha começou a assumir posições mais avançadas no cenário da imprensa e a Ilustrada a ganhar a simpatia de estudantes e intelectuais de esquerda.
No início dos anos 80, tempo em que a redemocratização do país parecia inevitável, uma nova geração assumiu o caderno e, ao lado de jornalistas mais experientes, realizou uma pequena revolução editorial.
Muita coisa mudou desde então. A democracia tornou-se fato, o socialismo ruiu, a globalização se consolidou e a tecnologia digital começou a mudar a face da produção cultural e das comunicações. É nesse novo contexto que a cinqüentenária Ilustrada enfrentará o desafio de permanecer como uma referência para seus leitores e o mundo cultural.’
POLÍTICA CULTURAL
Juquinha, paz e amor
‘NOS SEIS anos em que esteve à frente da Secretaria Executiva do Ministério da Cultura, Juca Ferreira manteve com setores da classe artística uma relação tensa, atritada e até ameaçadora em alguns momentos, o que lhe rendeu acusações de autoritarismo.
Feito ministro, com mais poder, portanto, eis que surge um outro Juca: acessível, conciliador, cativante, deixando os seus ‘marcadores’ procurando a bola, como fazia Garrincha. Sua performance lembra o Lula de 2002 que, candidato à Presidência da República, surpreendeu o mundo político com uma campanha eleitoral de inspiração gandhiana. Mas, a que, exatamente, Ferreira é candidato? Bem, há numerosas teorias a respeito.
O mais provável, do meu ponto de vista, é que se trate mesmo daquilo que parece, um esforço do ministro para unificar a produção cultural que, progressivamente, vem se apresentando como um condomínio complexo, problemático, assentado sobre bases precárias e com razoável risco de pane ou colapso.
O Brasil tem uma população equivalente à de Inglaterra, França, Itália e Portugal somados, mas sempre dispôs de um orçamento federal para a cultura de padrão municipal. O resultado é um déficit imenso e histórico no setor, cuja redução depende de variáveis complicadíssimas como verbas, política e ideologia. Não é tarefa fácil, portanto.
No centro das atenções, o espinhoso empreendimento de reformar a Lei Rouanet de incentivo fiscal à cultura que, para além dos seus aspectos técnicos, adquiriu uma dimensão simbólica no ambiente cultural. Ser contra ou a favor deste mecanismo tornou-se quase um indicador de caráter e a partir deste exagero instalou-se um verdadeiro cabo-de-guerra.
Simplificação
É neste cenário que surgem os ‘Diálogos Culturais’, seminários que correm o país para explicar a proposta do governo para alteração dessa legislação e nos quais o ministro Juca vem se consagrando, ganhando corações e mentes. De fato, é admirável a sua incansável disposição para o diálogo e o domínio que revela sobre problemas da cultura brasileira.
Contudo, na minha opinião, as teorias do ministro apresentam pontos de inconsistência que, às vezes, fazem o seu discurso resvalar na simplificação. Em nome do bom debate, vamos a eles. Por exemplo, em um dos pontos altos de sua apresentação, o ministro questiona o porquê de um produtor cultural, depois de ver os seus projetos aprovados no ministério, ‘ainda ter de se ajoelhar aos pés dos diretores de marketing nas empresas’ para conseguir dinheiro.
A pergunta lançada à platéia com eloqüência tem um efeito poderoso, mas: 1 – Como seria o cenário, aceitas as alterações que o governo propõe? Todos os produtores culturais com projetos aprovados no ministério receberiam o dinheiro de que necessitam? Sabemos que anualmente são habilitados mais de 9.000 projetos naquele órgão e que para atender a todos precisaríamos de uma montanha de recursos, que não existe.
O que aconteceria com mais de 80% dos produtores que ficariam de fora do processo? É óbvio que esta multidão de desatendidos nada tem a ver com diretores de marketing e tudo a ver com a falta de verbas. Esta é a vilã que mantém a área cultural de joelhos não é de hoje.
2 – Um dos problemas da Lei Rouanet, sabemos, é a alta concentração dos seus recursos nas regiões Sul e Sudeste. Existem meios técnicos para reduzir este descompasso, mas que nunca foram adotados pelo governo que preferiu apostar no aumento do seu poder no que diz respeito ao destino dos impostos das empresas interessadas. Pois bem, os gráficos apresentados agora pelo ministério mostram que, em 2003, o Sul e o Sudeste ficavam com 72% do bolo e, em 2007, este percentual subiu para 80%.
Isto é, a coisa piorou nos últimos cinco anos. Por quê? Simples, em se tratando de incentivos fiscais, não se consegue desconcentrar a sua distribuição centralizando as decisões. Claro que centralizar está no DNA do Estado. Claro, também, que essa é a sua tendência natural. Porém, os excessos e a sua aplicação fora de lugar podem se transformar em irracionalidade, como no conhecido caso da burocracia e tantos outros.
O incentivo fiscal é outro bom exemplo no qual a centralização das decisões é desastrosa porque neutraliza a sua essência, remove as suas virtudes ao mesmo tempo em que dobra os seus defeitos. É como querer pilotar um avião com a sua aerodinâmica invertida. Não é difícil prever o resultado.
PAULO PÉLICO é produtor de cinema e teatro e diretor de assuntos institucionais da Apetesp (Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo)’
ECOS DA DITADURA
Site e caderno sobre AI-5 encerram 46ª turma de treinamento da Folha
‘Uma edição multimídia e reportagens especiais sobre um dos momentos históricos mais importantes da história recente brasileira -a edição do AI-5, há 40 anos- foram os trabalhos de conclusão de curso do 46º programa, que terminou na última sexta-feira.
A íntegra dos textos e entrevistas -parte deles publicada ontem pela Folha- e fotos e ilustrações inéditas estão em www.folha.com.br/083444. A partir de uma sugestão do colunista da Folha Elio Gaspari, e com orientação inicial dele, os trainees fizeram também um site interativo que traz a íntegra da reunião em que foi votado o AI-5, uma animação dos melhores momentos e várias informações complementares. Essa experiência de jornalismo multimídia antecipou uma ampliação que será feita no treinamento da Folha a partir da próxima turma, no semestre que vem: as atividades do curso vão incluir vídeo, podcasts e infografias on-line. O programa manterá, porém, sua essência: reforçar a reflexão e a prática do jornalismo seguindo os preceitos do projeto editorial da Folha -fazer uma seleção coerente dos assuntos do noticiário e reportá-los de forma clara, contextualizada, pluralista e precisa (leia o projeto em http://www1.folha.uol.com.br/folha/conheca/projetos-1997-1.shtml).
Como participar
Para se inscrever para o treinamento basta preencher a ficha no site do programa, www.folha.com.br, que traz informações detalhadas sobre o processo de seleção e as atividades realizadas nele. No momento, está em curso a seleção para a 47ª turma, que começa em março. Estão abertas até amanhã inscrições para a 48ª turma, prevista para o segundo semestre de 2009. O programa de treinamento da Folha é patrocinado pelas empresas Odebrecht e Philip Morris Brasil.www.folha.com.br/ 083455′
INTERNET
YouTube já dá dinheiro a produtor caseiro
‘DO ‘NEW YORK TIMES’ – Criar vídeos para o YouTube, que durante três anos foi passatempo para milhões de internautas, hoje é uma maneira de ganhar a vida.
Um ano depois de o site ter convidado seus membros a virarem ‘parceiros’ e acrescentado anúncios a seus vídeos, os usuários mais bem-sucedidos estão ganhando rendas de seis dígitos. Para alguns, como Michael Buckley, apresentador de um show de fofocas sobre celebridades, produzir vídeos agora é emprego em tempo integral. Buckley abandonou seu emprego regular em setembro, quando seus lucros on-line já tinham superado de longe o salário que recebia como assistente administrativo de uma empresa de promoção musical. Seu show, transmitido três vezes por semana, ‘é bobo’, disse ele, mas o ajudou a zerar suas dívidas com cartões de crédito.
Buckley, 33, era apresentador em tempo parcial de um programa semanal num canal de acesso público do Connecticut quando, em 2006, seu primo começou a postar trechos do programa no YouTube. As tiradas cômicas sobre celebridades atraíram espectadores on-line e não demorou para Buckley começar a formatar seus segmentos para a web. Ele sabia que, ‘no canal de acesso público, o programa teria alcance limitado’. ‘Mas no YouTube eu já fui visto 100 milhões de vezes. É uma coisa maluca.’
Ele só precisou de uma câmera Canon de US$ 2.000, um tecido que custou US$ 6 para servir de pano de fundo e um par de lâmpadas. Buckley é um exemplo do efeito democratizante da Internet sobre a divulgação. Sites como o YouTube permitem que qualquer pessoa que tenha uma conexão de alta velocidade encontre uma base de fãs, simplesmente postando vídeos e os promovendo.
É verdade que construir um público on-line leva tempo. ‘Eu passei 40 horas por semana no YouTube por mais de um ano antes de começar a ganhar um centavo’, disse Buckley. Mas, em alguns casos, esse esforço rende resultados.
Buckley é um dos membros originais do programa de parceiros do YouTube, que hoje inclui milhares de participantes, desde criadores de vídeos de porão até grandes empresas de mídia. Subsidiária do Google, o YouTube insere anúncios dentro e em volta dos vídeos parceiros e divide a receita com os criadores. ‘Nossa proposta era converter esses hobbies em negócios’, explicou Hunter Walk, diretor de gerenciamento de produtos do site.
O YouTube se negou a comentar quanto dinheiro os parceiros ganham, em média, em parte porque a demanda dos anunciantes varia segundo os diferentes tipos de vídeos. Mas um porta-voz, Aaron Zamost, disse que ‘centenas de parceiros do YouTube estão ganhando milhares de dólares por mês’. Pelo menos alguns deles estão ganhando a vida integralmente com isso: Buckley disse que vem ganhando mais de US$ 10 mil com anúncios no site.
O programa é uma solução parcial para um problema incômodo para o YouTube. Os seus vídeos são dez vezes mais vistos que os de qualquer outro site de compartilhamento desse material nos EUA, mas o Google vem tendo dificuldade em lucrar com ele, porque a imensa maioria dos vídeos é postada por usuários anônimos que podem ou não ter os direitos autorais sobre os conteúdos. Embora o YouTube tenha suspendido boa parte da partilha ilegal de vídeos no site, ainda teme colocar anúncios com conteúdos sem a autorização explícita dos donos dos conteúdos. Por essa razão, apenas cerca de 3% dos vídeos do site são acompanhadas de anúncios.
Mas a empresa nutre grandes esperanças em relação ao programa de parceria. Executivos o comparam ao Google AdSense, a tecnologia que revolucionou a publicidade e tornou possível a colocação de anúncios de texto ao lado de conteúdos.
‘Algumas dessas pessoas fazem vídeos em seu tempo livre’, disse Chad Hurley, co-fundador do YouTube. ‘Achamos que, se pudéssemos lhes oferecer uma fonte real de receitas, elas poderiam burilar suas habilidades e criar conteúdos melhores.’
Numa época de demissões no setor de mídia, a fonte de receita -e a perspectiva de ter uma empresa formada por uma só pessoa- pode ser especialmente atraente aos usuários. Mas produtores de vídeo como Lisa Donovan, que posta esquetes cômicos no YouTube e atraiu atenção com suas paródias de Sarah Palin, não descrevem o processo como fácil. ‘Para usuários novatos, é muito trabalho’, afirmou Donovan. ‘Todo mundo está lutando para ser visto on-line. Você precisa traçar uma estratégia e fazer o seu próprio marketing.’
Buckley, que se formou em psicologia e vive com seu marido e quatro cachorros em Connecticut, filma o show em sua própria casa. Cada episódio é visto em média 200 mil vezes e os mais populares chegam a ultrapassar os 3 milhões de pessoas. Ele disse que escrever e gravar cinco minutos de piadas sobre a turnê de volta por cima de Britney Spears ou as habilidades de dançarina de Miley Cyrus não é tão fácil quando pode parecer. ‘Eu realmente trabalhei muito duro para aperfeiçoar a minha apresentação e o meu texto’, afirmou.
À medida que os seus espectadores e a sua receita foram crescendo, ele passou ‘a ter tantas oportunidades on-line que não conseguia mais trabalhar.’ Ele deixou seu emprego para dedicar-se integralmente aos vídeos na internet.
A história de Buckley tem simetria. Algumas chamadas celebridades da internet vêem o YouTube como ponto de passagem para a televisão. Mas Bu- ckley começou na TV e chegou à fama no YouTube. Três meses atrás ele assinou um contrato de desenvolvimento com a HBO, uma oportunidade que não passa de sonho para muitos. Mesmo assim, disse, ‘sinto que o YouTube é a minha casa. Acho que o maior engano que qualquer um de nós, personalidades da web, pode cometer é fazer nosso nome na internet e então abandoná-la.’
Cory Williams, 27, é produtor do YouTube e concorda com Buckley. Conhecido no YouTube como smpfilms, Wil- liams vem criando vídeos on-line desde 2005 e disse que sua grande oportunidade chegou em setembro de 2007 com uma paródia musical intitulada ‘The Mean Kitty Song’. Esse vídeo, que apresenta a companheira felina malévola de Wil- liams, já foi visto mais de 15 milhões de vezes. Recentemente, o vídeo incluía um anúncio da Coca-Cola.
Williams, que tem cerca de 180 mil assinantes de seus vídeos, disse que vem ganhando de US$ 17 mil a US$ 20 mil por mês através do YouTube. Metade do lucro vem dos anúncios, e a outra metade, de patrocínios e merchandising de produtos em seus vídeos. É um modelo que ele copiou da mídia tradicional.
Fica claro no YouTube que as entidades da mídia estabelecida e os usuários novatos e em ascensão estão aprendendo uns com os outros. Os usuários amadores estão criando arcos narrativos e vídeos semanais, atraindo visitantes regulares. Alguns estão acrescentando merchandising em seus vídeos. Enquanto isso, empresas de marca estão embutindo seus vídeos em outros sites, aproveitando idéias sobre promoção on-line tiradas de outros usuários. Walk, do YouTube, chama isso de uma sutil ‘polinização cruzada’ de idéias.
Alguns dos parceiros são grandes empresas de mídia. Entre aqueles cujos vídeos estão entre os mais vistos, estão Universal Music Group, Sony BMG, CBS e Warner Brothers. Mas os internautas individuais agora podem competir em pé de igualdade com eles. Buckley, que dois anos atrás nem sequer tinha banda larga, afirmou que seu hobby do YouTube mudou sua vida financeira por completo. ‘Não comecei a fazer isso para ganhar dinheiro’, disse ele, ‘mas que surpresa maravilhosa acabei tendo!’ Tradução de CLARA ALLAIN’
TELEVISÃO
Capitu de olhos límpidos
‘‘CAPITU’ é uma beleza. Capitu também. Quando ela surge, ao som da canção neo-folk do Beirut, com um vestido folhudo, dançando, enche a pequena tela da televisão de luz, cor e encantamento. Como o próprio Bentinho de 15 anos, Luiz Fernando Carvalho está apaixonado por ela. A grande ousadia do diretor nesta versão de ‘Dom Casmurro’ não é a trilha sonora, ou a mistura de linguagens, ou a cenografia pop, mas, sim, a de se colocar como mais um narrador, tão caprichoso e interessado como qualquer outro narrador de Machado de Assis. Ele cria uma espécie de Carvalho-Bentinho, que se transmuta em Carvalho-Bento Santiago, acelerando ainda mais a instabilidade da narrativa machadiana.
Como narrador, Carvalho não é Casmurro. É generoso, algo nostálgico e, sim, completamente capturado, quase como se quisesse restaurar, depois de tantas camadas interpretativas aderidas ao romance, uma mirada anterior a todas elas. Não pode, ele sabe -é inteligente e, mesmo se não o fosse, lá está a voz de Dom Casmurro, que não permite muitas ilusões-, mas tenta, restabelecendo o encanto dessa grande história de amor.
Nada de olhos oblíquos, mas diretos e cativos. A dissimulação vai por conta da perfídia que o agregado José Dias vê na ‘mocetona alta, forte, cheia’. O agregado vê cálculo. Bentinho só enxerga os encontros e desencontros de dois desejos. Capitu olha para dentro de si mesma, para o centro de seu desejo.
Depois, a Capitu adulta entra envolta em véus e rendas e, aí sim, o olhar de Carvalho-Bento Santiago, algo já desencantado dessa Capitu não-interditada pela promessa do seminário, torna-se oblíquo, enxergando em tudo a dissimulação. Não se pense com isso que Carvalho quer resolver Capitu. Quer, muito machadianamente, propor outra dúvida, outra camada.
Claro que, para isso, ele toma liberdades, como a de precipitar a casmurrice de Bento Santiago para o burlesco, trocando o irônico pelo ridículo, de forma a desnudar o homem ciumento, caprichoso e trágico, que mata todos os seus objetos de afeição (nesse sentido, há, antes, um julgamento de Bentinho).
Luiz Fernando Carvalho, desta vez, chegou a uma obra admirável. De certa forma, a reverência ao texto que aparece em ‘Lavoura Arcaica’ ou o delírio visual-narrativo de ‘A Pedra do Reino’ encontram-se aqui em outro ponto de tensão, mais fluido. Continua ‘difícil’, por mais que as referências pop queiram forçar um apelo jovem. Ainda bem. A beleza é mesmo difícil.’
CULTURA POP
Madonna de ferro
‘Talvez o maior ícone da música pop atual, Madonna Louise Ciccone -que inicia hoje, no Brasil, shows da sua badalada turnê ‘Sticky & Sweet’- teve um passado menos glamouroso antes de atingir o estrelato.
Ela cresceu em Detroit, cidade-símbolo do capitalismo industrial por ser a sede da indústria automobilística dos EUA, mas que hoje enfrenta a pior crise econômica de sua história.
Foi lá, em meio a uma fervilhante vida cultural, em que conviviam gêneros como rock, disco e punk e o ambiente industrial e sindical, que Madonna se formou na música e na dança. Essa faceta pouco conhecida da trajetória da artista é revelada no livro ‘Madonna -A Biografia do Maior Ídolo da Música Pop’ (Ed. Nova Fronteira, 512 págs., R$ 59,90), que saiu no Brasil neste ano. A obra é o resultado de 20 anos de pesquisas. Na entrevista abaixo, a autora, Lucy O’Brien, fala da formação de Madonna, desde a infância em Pontiac à adolescência em Rochester Hills -ambos subúrbios de Detroit-, entre 1958 e 1976.
Madonna viveu em Detroit no período em que emergiram as raízes do punk e do tecno, sons que ecoavam das fábricas da cidade. Filha de Tony Ciccone e Madonna Fortin, ela nasceu em 16 de agosto de 1958 em Bay City -uma pequena cidade do Estado de Michigan à beira do lago Huron, perto da fronteira com o Canadá-, onde os pais estavam de férias.
Seu pai era engenheiro na General Dynamics, empresa de equipamento militar. A mãe, católica influenciada pelo jansenismo -que prevê um estilo de vida cristão moralmente rigoroso-, teve seis filhos e morreu em 1963, aos 30 anos, vítima de câncer de mama.
Desde a adolescência, Madonna interessou-se pela dança -fez aulas de jazz, sapateado, balé e era animadora de torcida nos jogos escolares. Ainda em Detroit, descobriu o entusiasmo pela música disco.
Em 1976, conseguiu uma bolsa para estudar dança na Universidade de Michigan, em Ann Arbor -quando deixou Detroit definitivamente.
Mas as influências da cidade industrial de inverno rigoroso, que viu nascer o punk e o tecno, não a abandonaram.
Segundo O’Brien -que leciona no departamento de mídia e comunicação do Goldsmiths College, na Universidade de Londres-, foi lá que Madonna, impregnada da visão do trabalho como uma virtude, delineou sua ‘obsessão’ pela carreira profissional.
FOLHA – Como eram Pontiac e Rochester Hills à época que Madonna passou lá a infância e a adolescência, respectivamente?
LUCY O’BRIEN – Pontiac era uma cidade voltada para a indústria automobilística que prosperou nos anos 1950, mas, com seu declínio, ela também definhou.
Rochester é muito mais classe média. Quando a família de Madonna se mudou para lá, era um novo subúrbio, cercado de florestas e campos -um lugar agradável para crescer.
FOLHA – Que influência a formação familiar católica teve sobre ela?
O’BRIEN – Enorme. Seu pai é um católico devoto, e assim era sua mãe [que morreu quando ela tinha 5 anos]. Madonna trouxe temas religiosos para o centro do seu trabalho, como no álbum ‘Like a Prayer’ [1989] e na turnê ‘Blond Ambition’ [1990], em que realmente explorou a tensão entre sexualidade e espiritualidade.
FOLHA – Qual era o ambiente cultural em Detroit nos anos 1970? Como ele foi influenciado pela vida industrial, operária e sindical da cidade?
O’BRIEN – Detroit era uma cidade voltada para a indústria automobilística que atraiu muitos trabalhadores migrantes e apresentava uma mistura cultural vibrante.
Isso se refletiu nas estações de rádio, em que havia uma real mistura de rhythm and blues, soul, pop e rock.
Nos anos 1970, entretanto, como em boa parte dos EUA, ainda havia muita segregação, com trabalhadores negros vivendo na cidade e brancos vivendo nos subúrbios mais prósperos.
FOLHA – Como o punk e o tecno surgiram em Detroit? Que bandas emergiram desses movimentos e qual a relação da cidade com eles?
O’BRIEN – O punk emergiu por meio de bandas barulhentas, ruidosas e dinâmicas como MC5 e The Stooges. O punk refletia a ética comum nonsense da cidade. Como alguém me disse certa vez, as pessoas em Detroit gostam de ‘trabalhar firme e jogar duro’.
O tecno veio das discotecas negras underground. Ele era uma mistura dos estilos soul/ rhythm and blues e mestres europeus dos sintetizadores, como [o pioneiro grupo alemão] Kraftwerk.
O tecno ecoou a ética pura da linha de produção da Ford em Detroit. Penso que DJs como Kevin Saunderson [pioneiro do tecno] gostavam de Kraftwerk porque era, de alguma forma, a trilha sonora da sua cidade: todas as linhas limpas e espaçosas, mas também nitidamente definidas.
FOLHA – Madonna participou, de alguma forma, dos movimentos punk e tecno em Detroit? O’BRIEN – Ela regularmente ia a clubes gays, como Menjo’s, mas, no final dos anos 1970, a música que ela estava predominantemente dançando era disco. Ela não absorveu realmente o punk até se mudar para Nova York e tornar-se ativa na cena urbana.
E o tecno a conquistou depois que ela deixou Detroit.
FOLHA – Ela foi influenciada por bandas como The Stooges e MC5?
Ela conhecia os integrantes dessas bandas? Ela ouvia Iggy Pop? O’BRIEN – Penso que ela os conhecia, mas nos anos 1970 Madonna ouvia mais música disco.
Não acho que tenha realmente conhecido Iggy Pop, a não ser muito depois. Ela e Iggy são muito diferentes, provêm de diferentes gêneros.
Mas foi muito terno eles acabarem compartilhando o palco na turnê ‘Re-Invention’ [2004], durante show na Irlanda. E, neste ano [10/3, em Nova York], ele cantou a canção ‘Ray of Light’ na cerimônia de inauguração do Rock and Roll Hall of Fame. Eles têm conexão porque ambos são de Detroit e têm essa ética do trabalho duro no showbusiness.
FOLHA – O que a jovem Madonna fazia em Detroit para se divertir?
Que locais freqüentava e quais bandas gostava de ouvir?
O’BRIEN – Ela ia a festas. Um velho amigo de escola disse que eles alugavam um quarto de motel para dar festas e beber cerveja. Havia bailes na escola.
Madonna assistia a artistas locais como Mitch Ryder e Bob Seger tocando.
Ela também foi a grandes shows no estádio Silverdome, como o de David Bowie, para o qual foi escondida (seu pai não queria que fosse!).
FOLHA – Madonna cresceu durante a eclosão do feminismo, do punk e da liberação sexual. Como ela lidou com todas essas influências na juventude?
O’BRIEN – Quando estudava na Universidade de Michigan, teve como professora a coreógrafa e feminista Gay Delanghe e, quando se mudou para Nova York, já tinha familiaridade com as idéias feministas.
Entusiasmou-se pelo punk e pela ética ‘do it yourself’ [faça você mesmo] da cena artística urbana. Inspirou-se nisso.
E, naqueles tempos pré-Aids, a experimentação sexual era moda.
FOLHA – Como filha de uma segunda geração de imigrantes italianos, ela tinha consciência do preconceito racial que segregava Detroit e seus subúrbios? Ela ouvia música negra?
O’BRIEN – Seu avô paterno [Gaetano Ciccone] foi discriminado porque era um trabalhador de origem italiana, e, crescendo em Detroit, Madonna tomou consciência da segregação racial que dividia a cidade.
Ela sempre foi instintivamente igualitária e [apóia o Partido] Democrata. Seu avô foi um sindicalista. Ela sempre considerou importante envolver-se politicamente.
Muitos dos seus amigos de infância de Pontiac eram negros. Ela cresceu dançando [música da gravadora] Motown e, mais tarde, disco. Todas essas vertentes influenciaram sua música.
FOLHA – De que maneira o fato de ter crescido numa cidade industrial, que via o trabalho como uma grande virtude, definiu a ‘obsessão’ de Madonna pela carreira profissional?
O’BRIEN – Quando pesquisava esse tema, achei fascinante o quanto Madonna era um produto do ambiente onde cresceu. O trabalho duro e a energia com que se dedicou a ele é algo que muitos habitantes de Detroit compartilham.
O compositor Gardner Cole (que escreveu para ela a canção ‘Open Your Heart’) também cresceu em Michigan e disse que era preciso fazer algo com os invernos rudes.
Chamava isso de passatempo individual, estar dentro de algum lugar durante os longos invernos lendo e escrevendo canções, porque não havia nada mais a fazer.
FOLHA – Madonna era muito dedicada à dança. Que influências tiveram sobre ela artistas como a dançarina e coreógrafa Martha Graham?
O’BRIEN – Madonna foi muito influenciada por ela, a ‘Picasso da dança moderna’. Graham tinha um estilo muito centrado na mulher -e algumas das suas técnicas apareceram em shows ao vivo de Madonna.
Ela também adorava o coreógrafo negro Alvin Ailey, que misturou ritmos do jazz a movimentos africanos.
FOLHA – Qual foi a importância que teve a banda punk anarquista inglesa ‘The Slits’ para Madonna
O’BRIEN – Madonna ia às apresentações da banda em Nova York aparentemente para dar uma olhada e copiar seu estilo anárquico fashion.
FOLHA – No seu livro, você escreve que Madonna ‘combinou elementos do punk, da dança underground e da música disco europop para, assim, inventar um conceito próprio -o conceito Madonna’. Como ela absorveu essas influências ainda em Detroit?
O’BRIEN – Ela absorveu a energia independente ‘faça você mesmo’ do punk – e disso saiu muito do seu estilo brechó. Ela foi levada para a dança underground em suas incursões em boates gays em Detroit. O europop disco veio um pouco mais tarde, quando dançou com Patrick Hernandez em Paris.
FOLHA – Madonna transformou o modo como o artista pop deve lidar com as mais diversas mídias?
O’BRIEN – Completamente. Ela não aparece como uma cantora ‘politicamente correta’ com o clube do Mickey Mouse -era parte de uma subcultura. Também teve preparo intelectual, com formação em dança contemporânea.
Tudo isso tem influenciado o seu trabalho. Possui uma estética realmente forte, e é por isso que tem se mantido no topo por tanto tempo. O desafio para ela, agora aos 50 anos, é superar a imagem de ‘garota sexy’ e nos provocar de uma maneira diferente. Estou certa que ela o fará. E, mesmo que não o faça, será uma tentativa divertida.’
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Folha de S. Paulo