Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Agência Carta Maior


MÍDIA & POLÍTICA
Laurindo Lalo Leal Filho


Está na rede, 8/12


‘A Rede TV afirma que sempre vai defender ‘a liberdade de expressão e o não
cerceamento do jornalismo de informar os telespectadores’. Gostaria de saber
onde há informação numa entrevista realizada com um seqüestrador em pleno ato
criminoso.


Não há palavras para descrever. Só vendo. Quem puder entre no Youtube e
assista a algo inacreditável. A conversa do produtor do programa ‘A Tarde é
Sua’, apresentado por Sonia Abrão, na Rede TV, com Lindemberg Alves, em plena
ação de sequestro da menina Eloá. Por mais que o fato já tenha sido comentado,
qualquer descrição do que aconteceu fica muito longe da realidade. Trata-se da
visão trágica dos limites a que chega a dignidade humana. E aqui não falo do
sequestrador e sim de quem o entrevista, dos seus chefes e patrões. Eles mentem,
usurpam funções especializadas pretendendo-se negociadores, violam o Estatuto da
Criança e do Adolescente e intervêm indevidamente numa ação do Estado,
representado naquele momento pelas forças policiais.


A espetacularização da notícia na TV não é novidade, com conseqüências
trágicas em alguns casos. Escola Base e Bar Bodega são apenas os exemplos mais
conhecidos. E o caso Isabela Nardoni, o mais recente. Mas nunca a televisão
havia ultrapassado o limite da informação (ainda que distorcida ou
sensacionalista) passando à intervenção. No caso Eloá, a TV mudou o rumo dos
acontecimentos ao bloquear as negociações telefônicas da polícia com o
seqüestrador e interferir no seu humor. No vídeo ele chega a dizer para o
entrevistador: ‘não me deixa nervoso não’ que responde do alto do seu
conhecimento psicológico pedindo calma.


Que direito tem uma empresa comercial de intervir num processo da alçada
exclusiva do Estado? Espero que essa pergunta seja respondida na ação proposta
pelo Ministério Público Federal contra a Rede TV. Cabe ao Judiciário decidir se
houve abuso ou não. Nesse sentido, para embasar melhor o processo seria muito
importante que entidades como o Conselho Federal de Psicologia, a Federação
Nacional dos Jornalistas, a Associação Brasileira de Imprensa e a Ordem dos
Advogados do Brasil oferecessem pareceres sobre o caso. Afinal produtores e
apresentadores de televisão transformaram-se, nesse caso, publicamente em
psicólogos, advogados e jornalistas sem escrúpulos.


Claro que a Rede TV já está tratando a possibilidade da ação como ‘uma forma
velada de censura’. Ao que a procuradora Adriana Fernandes, autora do pedido,
respondeu com propriedade dizendo que a liberdade de expressão não é absoluta e
que, neste caso, deveria ter sido respeitado o fato de uma menor estar
envolvida. É sempre assim, e não é só a Rede TV que faz isso. Basta qualquer
setor da sociedade exigir um pouco mais de responsabilidade de um concessionário
de TV que a resposta é sempre a mesma. Infelizmente a combinação cronológica
entre o fim da ditadura militar e a ascensão do neoliberalismo pelo mundo
deixaram a população brasileira refém do fantasma da censura e da fantasia do
mercado como regulador supremo. É através desse casamento que a TV deita e rola.
Tudo que a incomoda é censura e o limite admitido é dado apenas pelos índices de
audiência. Como se eles refletissem algum tipo de escolha democrática e não
fossem mera sanção do mercado, no dizer preciso de Pierre Bourdieu.


A Rede TV também afirma que sempre vai defender ‘a liberdade de expressão e o
não cerceamento do jornalismo de informar os telespectadores’. Gostaria de saber
onde há informação numa entrevista realizada com um seqüestrador em pleno ato
criminoso. Pode-se afirmar que até a Constituição Federal foi afrontada. Lá está
dito que ‘a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão
atenderão a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas’. Em
nenhum momento está prevista a intervenção da concessionária num crime, como fez
a Rede TV.


Ressalte-se que essa emissora é reincidente. No final de 2005 foi obrigada,
judicialmente, a retirar do ar um programa que violava os Direitos Humanos e,
durante um mês, colocar no mesmo horário produções elaboradas por organizações
sociais. Fato inédito na história da TV brasileira, tornado possível graças à
articulação da sociedade e o acolhimento da demanda pelo Ministério Público. Em
vista do trágico desfecho, o caso atual é ainda mais grave. E não ficou restrito
à Rede TV. Record e Globo a seguiram.


Uma outra referência pode ser utilizada, talvez, para auxiliar na instrução
da ação judicial caso ela ocorra. São alguns trechos das normas editoriais da
BBC. Dizem elas que ‘em casos de seqüestros devemos estar cientes de que
qualquer informação pode ser vista ou ouvida pelos responsáveis pelo ataque.
Devemos avaliar as questões éticas envolvidas em conceder uma vitrina a
seqüestradores, especialmente se eles fazem contato direto’. Reparem que a
preocupação é com o contato que o seqüestrador possa fazer com a emissora. Nem
passa pela cabeça dos jornalistas britânicos a possibilidade da emissora fazer
contato com o seqüestrador como aconteceu por aqui.


E mais: ‘devemos permanecer no controle editorial da cobertura dos eventos e
não entrevistar um responsável por um ataque ao vivo; instalar um delay (pequeno
atraso na veiculação de sons e imagens em relação ao tempo real) quando
transmitimos ao vivo material de coberturas delicadas, por exemplo, um cerco a
escola ou seqüestro de avião. Isto é especialmente importante quando o desenlace
é imprevisível e podemos registrar material perturbador, impróprio para
transmitir sem uma reflexão cuidadosa’. Em Santo André, nós todos corremos o
risco de ver um assassinato ao vivo.


E para finalizar, diz a BBC que ‘quando cobrimos seqüestros devemos ouvir a
orientação da polícia e de outras autoridades sobre qualquer coisa que, se
divulgada, possa exacerbar a situação’. Parece que estão falando conosco,
não?


Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo
da ECA-USP e da Faculdade Cásper Líbero. É autor, entre outros, de ‘A TV sob
controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão’ (Summus
Editorial).’


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