ISRAEL
A mídia em Israel toca as trombetas da guerra, 2/1
Historiador do futuro que algum dia examine os arquivos dos jornais de Israel verá com clareza absoluta: para Israel, 200, 300 e, depois, 400 palestinos assassinados ‘não é’ manchete. A mídia em Israel é ‘poupada’ de ter de exibir imagens ‘fortes’. Israel abraça e sempre abraçará qualquer guerra, qualquer barbárie. Israel crê-se tão poderosa que se brutalizou, que já não sente. Em Israel a barbárie é regente. A análise é do jornalista israelense Gideon Levy.
‘Eis como estão as coisas em Israel: opor-se à paz é sempre atitude legítima e patriótica; opor-se à guerra é traição, atitude antipatriótica e atitude que deve ser combatida. Essa semana, falando do seu programa ‘London & Kirschenbaum’, Yaron London, apresentador, deu sinais de que a coisa está ficando difícil: ‘Tivemos problemas com o programa. Sabemos do amplo consenso a favor da guerra – acabar com eles, bater até que se calem. Mas também há outras vozes, não só dos israelenses-árabes, também de muitos judeus. Encontramos alguns poucos judeus que defendem o fim dos ataques, ou que jamais deveriam ter começado, e que é preciso iniciar negociações. Não é minha opinião. Minha linha é outra, e já a expus em muitos artigos. Mas é preciso ouvir as outras vozes. Falar sozinho leva sempre ao desastre. O problema é que todos têm medo. As vozes da paz estão em silêncio, porque estão aterrorizadas.’
Depois, London disse ao seu entrevistado, Amir Peretz, que planejara entrevistar também moradores de Gaza, para ouvir ‘o outro lado’, mas que, desgraçadamente, aquelas poucas vozes foram silenciados ‘pelo terror’.
Com terror ou sem terror, sei de muitos judeus, não de ‘alguns poucos’, que defenderiam ‘o outro’ lado e que não vacilariam, nem por um segundo, para declará-lo na televisão. Por exemplo, as centenas que tomaram a Praça da Cinemateca, em Telavive, no sábado à noite, para protestar contra a operação de guerra do exército israelense. Mas a equipe da produção do programa ‘London & Kirschenbaum’ não os procurou. Problemas de produção, claro.
Seja como for, ninguém quis saber da opinião deles, no mais ouvido programa de entrevistas da televisão – porque há expressa proibição de que sejam ouvidos.
Pouco antes de sermão de autojustificativa de London, alguém que defende a posição ‘do outro lado’, Ahmed Tibi, foi convidado para uma entrevista nos estúdios do programa ‘Erev Hadash’ [‘outra noite’].
O que dali se ouviu está fadado a tornar-se um clássico do telecine de terror: horror e horror, berros, gritaria e insultos. Veias a ponto de explodir e gargantas roucas de tanto berrar. Margalit [apresentador do programa]: ‘Você está inventando bobagens… Você não respondeu minha pergunta.’ Tibi: ‘Respondo o que eu queira responder.’ Margalit: ‘Baixe a voz. Fale como ser humano civilizado!’ Tibi: ‘Estou falando como ser humano civilizado.’ Margalit: ‘Me respeite!’ Até que Margalit deu-se por satisfeito e ordenou ao co-entrevistador, Ronen Bergman: ‘OK. Deixe-o falar.’ Tibi, então, tentou dizer que a única diferença entre o Hamas e o governo de Israel é a questão dos pontos de controle, ‘que têm de ser liberados’. Margalit, então, gargalhou em cena.
Pense: quando, algum dia, você ouviu Margalit ou qualquer outro entrevistador de televisão, dizer ao entrevistado ‘Você está inventando bobagens’? Será que falam assim a Benjamin Netanyahu? Ehud Barak? Tzipi Livni? E esses? Não ‘inventam bobagens’ vez ou outra? E quando, algum dia, alguém assistiu a um entrevistador dizer, na televisão ‘Baixe a voz. Fale como ser humano civilizado!’ Gargalhar em cena?! Os nervos estão mesmo em frangalhos e os árabes (além de vários judeus heréticos) andam criando dificuldades.
Porque é assim que estão as coisas em Israel. Opor-se à paz é sempre atitude legítima e patriótica; opor-se à guerra é traição, atitude antipatriótica e deve ser combatida. Podem debater o custo da paz eternamente; ninguém ouvirá uma palavra sobre o custo da guerra. Movimentos pacifistas são censurados. Movimentos pró-violência são ensinados. Pelo menos, até certo ponto.
A crítica da guerra, mais uma vez, terá de esperar. […] Esse é o teste de coragem e credibilidade da mídia, sempre igual, guerra após guerra. E sempre, guerra após guerra, a mídia fracassa.
Nos estúdios de televisão, só entram generais e analistas militares, as mesmas caras, nos mesmos estúdios, já desde a guerra passada, na de antes, na de antes daquela, porque só neles concentra-se a sabedoria e o talento que há na sociedade de Israel, na opinião da mídia de Israel.
Porque é assim que estão as coisas em Israel: os primeiros dias de guerra, de qualquer guerra, são sempre os mais sombrios. Mas nada de ‘Silêncio, não perturbem, estamos matando gente!’ Ah, não! Silêncio nenhum. O que se ouve é sempre o mesmo coro estridente de entrevistas e noticiários de televisão, gritaria, vinhetas espalhafatosas, clamores urgentes de ‘mais ataques, mais ataques’, ‘matem mais’, que Israel mate muito, que não pare de matar, entusiasmo crescente a cada nova chacina, guerra sem parar, cada vez mais.
Só depois, quando baixa a poeira, quando já todos sabem que mais uma vez a vitória converteu-se em derrota, e as conquistas foram ilusão (quando não apenas mentiras), então, sim, começam a falar outras vozes. Até que, algumas vezes, algum senso, depois, aos poucos, implanta-se também na opinião pública. Sempre tarde demais. Sempre desgraçadamente tarde demais.
‘Silêncio, não perturbem, estamos matando gente!’? Dia 6 de junho de 1982, há 25 anos, quando Israel embarcou na primeira Guerra do Líbano, talvez a mais ensandecida das guerras em que Israel embarcou, meu falecido colega Amiram Nir publicou, naquele seu artigo que fez história: ‘Silêncio, não perturbem, estamos matando gente!’: ‘Hoje não há oposição, nem Likud nem Ma’arakh, nem religiosos nem seculares, nem ricos nem pobres. Somos um só povo em armas. Estamos matando gente. Portanto, façam silêncio.’ Nir de fato não queria qualquer silêncio. Israel não quer silêncio. Quer sempre muito barulho, mas que só falem as vozes da beligerância, da violência, do nacionalismo fanático, da propaganda, da opinião ‘geral’. Exceto essas vozes, sim, o silêncio. Silêncio total. Silêncio de morte.
No primeiro dia dessa nova guerra, a televisão mostrou imagens horripilantes. Praticamente nada se escondeu. Telas divididas mostravam de um lado o medo em Ashkelon, de outro, o sofrimento em Gaza. (…) Todos os canais de televisão em Israel exibiram pedaços de cadáveres de palestinos carregados, com escavadeiras, para caminhões de carga. O pior de tudo: nem aquelas imagens despertaram qualquer protesto. Dessa vez, já não pareceu necessária qualquer tipo de consideração. Israel tornou-se tão indiferente à morte, o coração dos israelenses endureceu, petrificou-se de tal modo, que Israel vê o que viu essa semana… e nada! Apatia? Não, não é só isso.
A verdade é que, vez ou outra, muitos tiveram uma mesma idéia: Será que a ‘campanha de Relações Públicas do governo de Livni’ não nos fere mais do fere ‘o outro lado’? (…)
A mídia foi cuidadosamente preparada para essa guerra. Nenhuma comissão de inquérito, nem Winograd nem Doner, poderá jamais dizer que a mídia não tenha sido preparada para essa guerra. Durante meses, todos recebemos apavorantes ‘informes’ sobre o crescente poderio do Hamás, sobre como o Hamás se armava. Túneis, bunkers, casamatas, mísseis de longo alcance, exército cada dia maior. Nenhum jornalista investigou. Ninguém sequer suspeitou.
Assim a mídia em Israel inventou o Hamas. Apagou a realidade de uma organização em frangalhos, em luta desesperada para não se deixar assassinar e que lança rojões de salão contra o mais poderoso exército do mundo. Assim, também, a mídia de Israel encobriu o fato de que Israel, não o Hamas, foi quem quebrou o pacto de cessar-fogo, imediatamente, no mesmo dia em que firmou o pacto: um dos túneis foi bombardeado no mesmo dia em que o cessar-fogo foi assinado.
A mídia israelense também ocultou os efeitos do boicote. Durante dois anos e meio nenhum veículo da mídia de Israel pôde entrar em Gaza. A opinião pública em Israel não soube de nada. Tampouco se ouviu qualquer protesto dos jornalistas em Israel. O sofrimento pelo qual passa a população sitiada em Gaza não apareceu na agenda jornalística em Israel. Alguns ainda tentaram acalmar a própria consciência (nunca, de fato, muito torturada), com notícias de que não havia bloqueio; alguns ‘pressentiram’; alguns inventaram cenas piores do que a realidade. Mas os efeitos do sítio e do bloqueio de Gaza não foram noticiados em Israel.
Depois da fase de preparação, a fase de avaliação: isso não pode continuar, disseram todos os analistas, introduzindo a idéia de que a resposta teria de ser militar, exclusivamente militar. Os assustados moradores de Sderot passaram a ser as únicas vítimas conhecidas. Não as crianças de Gaza, que não têm nem caderno para escrever, não os adultos que não tem nem cimento para vedar os túmulos de seus mortos, não os motoristas que dirigiam carros movidos com óleo de cozinha que aprenderam a reciclar, não os médicos que operavam sem eletricidade, não os feridos operados sem anestésicos, não as famílias mortas de frio. Essas não são personagens da cena do ‘isso não pode continuar’.
E então começou a fase mais ativa da campanha pela mídia: à guerra, à guerra! Acabem com eles! Operação militar! Ação, reação, o que for, desde que ‘eles’ sejam detidos.
O último a aderir foi Nahum Barnea, colunista nacional, que entrou numa barbearia para cortar o cabelo, semana passada, em Sderot, e, é claro, não perdeu a oportunidade de partilhar a experiência com seus leitores e imediatamente, já de cabelo cortado, desafiou o ministro da Defesa, Ehud Barak, exatamente na véspera de Barak despachar seus aviões, para suas missões de morte. ‘Onde está o ministro da Defesa? Quem defenderá Israel?’ bradava aquela manchete inesquecível.
Mas essa ainda não foi a manchete da semana do jornalismo nacional em Israel. Esfuziante, imediatamente depois do início de mais uma guerra, um dia depois do Sábado Negro, quando mais de 200 palestinos foram mortos e havia mais de 1.000 feridos em Gaza, um terço dos quais, pelo menos, civis (70 eram guardas de trânsito, reunidos na cerimônia de formatura, jovens em busca desesperado de algum meio para ganhar a vida, que pensaram tê-la ganho na polícia, no instante em que a perderam sob bombardeio israelense), nesse mesmo dia e hora, com a tipagem que se reserva para guerras novinhas em folha, a principal manchete do dia declarava, em letras enormes: ‘Meio milhão de israelenses sob fogo’. Isso. Apenas isso. Coisa simples, modesta, com a muito clara certeza e o profissionalismo típico de jornal e jornalistas que sabem a importância que têm para seus leitores.
Quem quisesse saber o que ocorrera em Gaza naquele festim sangrento, e não só em Sderot e Netivot (‘Netivot da Morte’ dizia outra manchete), teria de andar até a página 13, para lá encontrar um relato muito sucinto do que, àquela hora, todos os telespectadores do mundo já sabiam: que o horror desabara dos céus sobre Gaza.
Historiador do futuro que algum dia examine os arquivos dos jornais de Israel verá com clareza absoluta: para Israel, 200, 300 e, depois, 400 palestinos assassinados ‘não é’ manchete. Que a mídia em Israel é ‘poupada’ de ter de exibir imagens ‘fortes’, que o que Israel e seus militares fizeram contra Gaza é assunto para especialistas em ‘Relações Públicas’, que a Livni tudo é permitido, que os palestinos fizeram por merecer, e que Israel abraça e sempre abraçará qualquer guerra, qualquer barbárie. Que Israel crê-se tão poderosa que se brutalizou, que já não sente, que em Israel a barbárie é regente.
(*) Gideon Levy é jornalista, colunista do jornal Haaretz.
Tradução: Caia Fitipaldi’
INTERESSE PÚBLICO
Voz do Brasil e o Papai Noel, 5/1
‘Acreditar que políticas de governos populares cheguem intactas ao conhecimento dos cidadãos através da mídia comercial, cujas prioridades são tiragens, audiências e faturamentos, equivale a crer em duendes ou no Papai Noel, de passagem recente entre nós.
Era o início da década de 1970. À noite, entre sete e oito horas, quem passasse pelo pátio central da Faculdade de Psicologia ‘Sedes Sapientiae’, no centro de São Paulo, quase não perceberia o vulto franzino andando ao redor das árvores. Só mais de perto distinguiria a figura da Madre Cristina Sodré Doria com um pequeno rádio portátil (seria Spica?) colado ao ouvido. No ar, A Voz do Brasil.
Talvez naquele mesmo momento, numa sala próxima ao pátio, estivessem escondidos alguns dos líderes da resistência à ditadura mais procurados do país. Por obra e graça da Madre. Que não temia também colocar uma enorme faixa preta em frente ao prédio do Sedes, na rua Caio Prado, quando sabia da morte, pela repressão, de algum combatente.
Em plena ditadura, Madre Cristina confiava mais na Voz do Brasil do que em qualquer outro noticiário transmitido pelas emissoras comerciais. Lá, pelo menos, ela podia ouvir trechos de discursos de parlamentares do MDB, chamados de ‘autênticos’ por suas posturas mais críticas em relação ao regime. Todas as rádios estavam sob censura, mas nas particulares às imposições policiais somavam-se os interesses político-empresariais.
A democracia foi restabelecida e as restrições do Estado desapareceram, mas resta até hoje a censura privada. Seus mentores tentam, há vários anos, acabar com A Voz do Brasil. Perspicaz, o professor Venício Lima, pinçou, ao final do ano, uma informação omitida dos noticiários: a Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados rejeitou um projeto de lei que propunha a ‘flexibilização’ da Voz do Brasil. Por ele, o programa poderia ser transmitido em qualquer horário entre 18h e 24h, a critério das emissoras. Muitas já fazem isso, sustentadas por liminares. A decisão da Câmara deve ser comemorada. Nem que seja apenas pelo argumento apresentado no parecer vencedor, elaborado pelo Deputado Miro Teixeira: a Voz, às 19 horas, ‘é um hábito que já faz parte da cultura brasileira’.
É mais do que isso. É uma forma de termos – pelo menos durante uma hora ao dia – notícias despoluídas de interesses comerciais, oferecidas a um só tempo a todo povo brasileiro. A hora ocupada simultaneamente pela Voz do Brasil em todas as emissoras nacionais, além de informar, aproxima o ouvinte dos poderes públicos, constituindo-se dessa forma em importante instrumento de pedagogia política. Goste-se ou não do que ali é dito.
Ao mesmo tempo, é inconcebível que governos e parlamentares democraticamente eleitos tenham que se relacionar com a sociedade apenas através da mídia cujas prioridades são tiragens, audiências e faturamentos publicitários. Nada disso tem a ver com os interesses dos cidadãos. Daí a necessidade de canais públicos e estatais em número cada vez maior.
Não se trata de um problema apenas brasileiro. Vale para todos os países da América Latina governados por lideranças populares sitiadas pelos barões da mídia globalizada. Não é por acaso que o presidente Evo Morales aponta a necessidade urgente de o estado boliviano possuir o seu jornal diário, capaz de restabelecer o equilíbrio informativo no país. Além de propor a criação de canais de TV para dar voz e imagem às populações rurais.
São providências necessárias, justificadas pelo longo histórico de golpismo latino-americano, sempre sustentado por forte apoio midiático. Evo lembra Vargas que procurou defender seu governo impulsionando a Última Hora de Samuel Wainer. Não foi o bastante para evitar as tentativas de golpe, abortadas temporariamente pelo suicídio. Naquele momento talvez uma emissora de televisão já fizesse falta. Getúlio deve ter intuído isso, tanto é que deu uma concessão à Radio Nacional para implantar a primeira TV pública do país. Era o canal 4, do Rio, que JK alguns anos depois, sob pressão dos radiodifusores, transferiria para as Organizações Globo.
Até na Europa, onde o equilíbrio informativo é maior já se percebe essa atrofia do espaço comunicacional determinado pela concentração crescente das corporações da mídia. Atento ao problema o filósofo Jurgen Habermas lembrava em artigo de 2007 que ‘em termos históricos, a idéia de regular o mercado da imprensa tem alguma coisa de contra-intuitivo. Afinal, o mercado foi outrora o cenário em que idéias subversivas puderam se emancipar da repressão estatal. Mas o mercado só é capaz de desempenhar essa função se as determinações econômicas não penetrarem nos poros dos conteúdos culturais e políticos nele dispersos’.
No caso brasileiro, o mercado da mídia está longe desse distanciamento. Ao contrário, é quase sempre o porta voz dos interesses privados dos que o controlam. Em 2006, o presidente Lula sentiu isso na pele quando o seu débil adversário chegou ao segundo turno das eleições presidenciais graças ao esforço concentrado dos grandes grupos de comunicação. Acreditar que políticas de governos populares cheguem intactas ao conhecimento dos cidadãos através dessa mídia equivale a crer em duendes ou no Papai Noel, de passagem recente entre nós.’
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