Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um nada admirável mundo novo

O confinamento das empresas jornalísticas em grandes conglomerados com atividades múltiplas parece ser o destino dos grandes jornais brasileiros, a partir do momento em que o Executivo e o Congresso se vergarem às pressões do Consenso de Washington para que o capital estrangeiro possa também abocanhar os meios de comunicação do país, o que, por enquanto, ainda é proibido. Mas parece que tudo é apenas uma questão de tempo. De pouco tempo.

Basta ver que o Estado de S.Paulo, o mais influente dos jornais brasileiros, está sob um processo de reorganização administrativa por uma consultoria externa, com a família Mesquita, praticamente, afastada da direção à espera de quem faça um lance mais ousado. Por enquanto, a empresa está comprometida com bancos, mas, flexibilizada a lei, quem poderá impedir a oferta de um magnata da mídia como Rupert Murdoch ou de um desses grandes conglomerados meganacionais?

Já contra as Organizações Globo, que experimentaram por baixo dos panos, nos anos 60, um acasalamento financeiro com o grupo norte-americano Time-Life, corre um pedido de falência na Corte de Nova York, segundo editorial de seu concorrente Jornal do Brasil publicado em 9/2/2004.

A que vêm estas reflexões? Vêm a propósito do livro Os elementos do jornalismo: o que os jornalistas devem saber e o público exigir, em que os jornalistas norte-americanos Bill Kovach e Tom Rosenstiel contam o drama por que passa a categoria naquele país diante da ameaça que a conglomeração dos negócios informativos representa para a sobrevivência da imprensa como instituição independente.

Nos Estados Unidos, a melhor parte da indústria cultural está nas mãos de algumas poucas megamultinacionais: AOL Time Warner, AT&T, Bertelsmann, Disney, NBC Universal (General Electric/Vivendi), News Co., Sony e Viacom. Isso se explica pela própria dinâmica do capitalismo contemporâneo que faz, por exemplo, a Microsoft buscar parceria com a Disney, construindo uma ponte entre as companhias de softwares e Hollywood.

Idealismo mofado

Como contam os jornalistas, a ABC News representa menos de 2% dos lucros da Disney, enquanto o setor informativo que significava grande parte dos lucros da Time Inc., depois da fusão, é só uma fração disso dentro da América Online (AOL). Também a NBC News fornece menos de 2% dos lucros da General Electric, corporação que, como se sabe, mantém a GE Transportation, fabricante de armamentos, entre outras tantas atividades.

O jornalismo sempre foi um negócio, é verdade, mas, até poucos anos atrás, havia a ilusão de que o jornalista tinha uma obrigação social que poderia ir além dos interesses imediatos de seus patrões. E era isso o que movia um jovem idealista a optar por uma profissão que, dificilmente, iria levá-lo à riqueza, mas que poderia satisfazê-lo emocionalmente.

Agora, nesse nada admirável mundo novo, parece impossível que um repórter da revista Time possa cobrir com isenção não só a própria AOL, mas tudo o mais da internet, e-commerce, entretenimento, canais a cabo e telecomunicações. Se o fizer, está claro que, no dia seguinte, o olho da rua piscará para ele.

Ou que um jornalista da NBC News possa escrever um texto que venha a contrariar os interesses da GE em desovar seus artefatos bélicos numa guerra qualquer antes que fiquem obsoletos. Mas é possível admitir-se que um jornalista sabujo e carreirista produza uma reportagem em que incentive o governo de seu país à guerra porque isso vai ajudar a impulsionar os negócios do conglomerado para o qual, em última instância, trabalha.

Kovach e Rosenstiel lembram que a noção de que os jornalistas não devem encontrar obstáculos na hora de cavar informações e contá-las com veracidade – mesmo à custa de outros interesses financeiros do dono do jornal – é o que faz a sociedade acreditar numa empresa jornalística. Essa é a fonte de sua credibilidade, ou seja, o maior patrimônio da empresa e daqueles que nela trabalham. Mas isto já soa como idealismo mofado, velharia.

‘Murdoquização’ à vista

Kovach e Rosenstiel observam também que, depois de 25 anos perdendo leitores e anunciantes para a televisão e outros meios de comunicação, os jornais norte-americanos concluíram que constituíam um nicho, dentro do mundo da comunicação, para pessoas de melhor nível educativo e intelectual. O negócio da publicidade, por sua vez, decidiu usar os jornais para chegar às classes altas. Os menos prósperos são atingidos por outras mídias, como rádio e TV.

Os jornalistas norte-americanos alertam ainda para o fato de as notícias estarem sendo cada vez mais ‘produzidas’ por gente de fora da redação. O que ocorre em Washington ocorre também em Brasília e Lisboa. Muitas vezes, o governo fala consigo mesmo por intermédio da imprensa. E os jornalistas são utilizados como inocentes úteis.

Basta ver como se comportam os jornais quando há uma investigação em andamento. Os jornais imaginam que, ao atribuir uma informação a uma fonte oficial, estão dizendo a verdade, quando o que deviam fazer é uma investigação própria. Quando um alto funcionário procura a imprensa para ‘vazar’ uma informação, sob a condição de que seja mantido seu anonimato, há sempre interesses subalternos em jogo.

Tudo isso se dá cada vez mais por causa do enfraquecimento dos grandes grupos da mídia, crise que no Brasil é ainda mais grave do que nos Estados Unidos, em razão de uma grande queda da publicidade. Depois de ler este livro de Kovach e Rosenstiel, já ninguém há-de se surpreender se também ao Brasil chegar o fenômeno da ‘murdoquização’.

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doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003)