O encontro deu-se há alguns dias. Estava bebendo vinho com um desembargador aposentado. Ele tem tempo para observar o mundo e ler: o tormento da pressa foi substituído por um jugo suave do cotidiano, que lhe permite ocupações mais escolhidas do que impostas pela urgência da práxis da sobrevivência, principalmente nesses anos, quando, depois de criarem os filhos, os pais têm também que criar os netos, pois a exclusão do jovem na sociedade brasileira, inculto ou letrado, é um tabu do qual poucos falam com clareza.
Quanta gente bem pensante, educada, culta e generosa vive à margem no Brasil. Só falamos nos marginais do crime, seja crime de camiseta, seja crime de colarinho branco, terno, gravata ou bermuda e regata.
Mas e os outros marginalizados, como os aposentados que pagam fielmente, todos os meses, a Previdência, antes mesmo de receberem o que lhes é devido, pois os proventos já vêm descontados e que vêem um futuro ameaçador, vai governo, vem governo?
Vivem no Brasil milhares de profetas desconhecidos na própria terra, arrostando ofensas que os tornam humilhados e ofendidos depois de muito trabalharem pela pátria.
Conversávamos sobre tais questões, o desembargador reconhecendo, para meu espanto, ser o governo um pertinaz litigante de má-fé, quando humilhados e ofendidos vão aos tribunais. Quando vão, porque há os que já desistiram também da Justiça, tamanha é a demora.
E ele, com aquela sabedoria que apenas a velhice traz, tem muito mais e melhores argumentos do que os meus sobre a maldade que o Estado brasileiro perpetra contra trabalhadores. Naturalmente não aqueles que se diziam trabalhadores e se aproveitaram espertamente de brechas nos aparelhos do Estado e infiltraram ali cerca de vinte mil cargos de confiança, entre os quais notórios quadrilheiros recentemente denunciados por ninguém menos do que o procurador-geral da República.
Saber alijado
O garçom nos levou, porém, a outro assunto: disse, num murmúrio, que na mesa ao lado estavam alguns alemães.
Olhamos e quem não reconhece o Kaiser? Estava lá, agora com os cabelos brancos, aquele jovem que nos campos liderava a seleção da Alemanha rumo a tantas partidas inesquecíveis. Sim, leitores, Franz Beckenbauer. Veio ao Brasil, o país do futebol, aprender conosco, mas já chega ensinando. Posto na direção da similar da CBF na Alemanha, cercou-se de famosos colegas de campo.
Vários estavam ali e entre eles reconhecemos imediatamente o goleiro Sepp Meyer, aquele que defendeu o time alemão de toda a artilharia da celebérrima seleção holandesa, o carrossel holandês, a laranja mecânica, na final de 1974, dando o título de campeã mundial à Alemanha, contrariando todo mundo, inclusive Zagallo quando era Zagalo apenas e com um time de cracaços perdeu para a mesma Holanda e para a Polônia na mesma Copa, só por teimoso como os muares e achar que a Europa não estava com nada. Estava com tudo e se livrou do Brasil nas quartas de final. Mas um homem com a biografia de Zagallo (ele prefere os dois eles) merece todos os perdões!
Conjecturamos por que na CBF não há um único de tantos campeões mundiais na diretoria, se Beckenbauer, para mover-se no Brasil e pesquisar como andava nosso futebol, procurou o capitão do tri, Carlos Alberto, que jantava com ele na mesma mesa.
Encurtando a conversa, que isso não é livro nem tese, concluímos que no Brasil é assim em todos os setores: o saber está alijado das decisões. E o dublê de escritor e professor universitário obriga-se a concordar que até mesmo na Educação os melhores foram alijados das instâncias de poder.
Exclusão perigosa
Foi-se o tempo, por exemplo, em que o reitor de uma universidade pública brasileira era uma referência intelectual. Hoje ele é, com as exceções de praxe, apenas aquele que um ente estranho, denominado equivocadamente de comunidade universitária, indicou numa lista para que dos nomes elencados o Estado escolhesse o menos pior.
Quantas diferenças entre Brasil e Alemanha, entre seus estadistas e os nossos, os seus reitores e os nossos, a organização de seu futebol, um dos melhores do mundo, e a desorganização do nosso, ainda assim o melhor futebol do mundo, mas sem condições de manter no Brasil os nossos craques, exportando-os para o mundo inteiro.
Especialmente para a Europa, enquanto aqui o povo é obrigado a assistir e torcer por times da segunda e terceira divisões, pois titulares e reservas foram embora e só aparecem em tempos de Copa do Mundo.
É quando o generoso povo brasileiro torce por aqueles jogadores que não jogam mais no território nacional, foram compulsoriamente expatriados por quem lhes traduz em realidades concretas, como a conta bancária e menos jogos por ano, o reconhecimento por seu talento.
Nas letras, como todos sabem, isso ainda não ocorreu e tudo indica que vai demorar mais do que uma geração para acontecer. Em recente estatística da Unesco descobrimos que no Brasil alunos da quinta série ainda não aprenderam a ler. Não um conto, romance, ensaio ou poesia, fronteiras avançadas de quem sabe ler e escrever, mas não entendem uma notícia de jornal, bula de remédio ou nota de falecimento.
Se nem isso entendem, como haverão de entender os mistérios da literatura, da música, da dança, da pintura, da escultura, da arquitetura etc?
Em vez de encher o bandulho de leitores, ouvintes e telespectadores com a repetição de tudo o que já sabem ou, pior ainda, com besteróis de todos os calibres, nesses tormentosos dias de pré-Copa, nossa imprensa poderia, pelo menos, fazer algumas analogias, começando pelos motivos que levam os jogadores da seleção a trabalhar e viver no exterior, pois o Brasil não deu mais pé. Nem para eles e muito menos para aqueles jovens que escolheram o curso superior na esperança de terem uma vida melhor na mãe-pátria.
O Brasil exclui os mais velhos, exclui os negros, exclui os índios, exclui milhões de brasileiros. E, principalmente agora, está excluindo os jovens. Esta história pode acabar muito mal.
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Escritor e doutor em letras pela USP, diretor do Curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro)