Qualquer professor de jornalismo, independente do suporte midiático, sabe o que representa desenvolver a disciplina Edição em sala de aula. A tarefa é complicada, em primeiro lugar, porque o aporte didático-teórico é quantitativamente tímido – não mais que meia dúzia de páginas de autores fundadores e duas ou três edições especializadas –, o que exige verdadeiros malabarismos conceituais por parte de quem ensina, de quem pesquisa e de quem aprende. Dessa forma, construir a disciplina para além dos limites da prática torna-se uma tarefa muitas vezes limitada do ponto de vista teórico para quem trabalha com ensino de edição em jornais, em especial para os professores de jornalismo em revista, rádio, tevê, assessoria de imprensa, e, mais recentemente, internet. [As bibliotecas especializadas confirmam: há mais livros didáticos sobre jornais impressos do que revista, tevê, rádio, assessoria de imprensa e internet.]
Mas os problemas não se restringem à sala de aula e à falta de livros especializados; tampouco dizem respeito apenas a quem ensina.
Nas últimas duas décadas, mais notadamente a partir da chegada dos primeiros computadores às redações, o jornalismo tem sofrido mudanças significativas. A mais evidente diz respeito aos modos operacionais, que foram alterados substancialmente a partir do aporte das novas tecnologias: se, até então, para se tornar um editor, um repórter demorava alguns anos de aprendizado, a partir do momento em que os computadores entraram para as redações isso passou a ocorrer cada vez mais prematuramente, à revelia do suporte midiático.
Hoje, basta que o repórter tenha algum conhecimento da tecnologia, saiba escrever, fale bem e tenha boa aparência, e logo será solicitado a exercer o papel de editor, pois a lógica produtiva assim o exige. O restante – maturidade jornalística, conhecimento da estrutura de funcionamento da empresa, como pensa a direção, sua orientação político-editorial e as nuanças que permeiam as relações entre os departamentos (redação, comercial e circulação, principalmente), cujo aprendizado exige tempo – parece ter ficado relegado a um segundo plano.
A constatação sugere que estamos diante de um momento evolutivo diferenciado, em que se reconfiguram fazeres, mudanças estas que acabam por interferir de forma específica no habitus profissional [segundo Barros e Martino (2003: p. 136), o ‘(…) habitus profissional é a matriz comum das práticas de todos os agentes que vivem e viveram nas mesmas condições sociais da existência profissional’], aqui entendido como o conhecimento que se adquire por meio da experiência nas redações e fora delas.
Contexto diferenciado
Esta aparente fragilidade ganha novos contornos, no entanto, se observarmos as mudanças a que nos referimos não como perda, mas como uma espécie de ‘reacomodação’ cíclica, ainda que diferenciada [o ‘diferenciada’ fica por conta do fato de esta mudança operar majoritariamente com nuanças tecnológicas: mais do que nunca, a tecnologia afeta a técnica jornalística, criando novas formas, valores e conceitos], em relação às que lhe antecederam. Adequação esta que tem suas bases fundadas no conceito de território: para que este exista, é preciso que tenha havido antes uma desterritorialização, e assim sucessivamente (Haesbaert: 2004). A exemplo do que ocorre ciclicamente no jornalismo (nem sempre houve fotografias; os anúncios, quando chegaram, foram muito malvistos; a cor é uma invenção tão recente quanto os satélites etc.), as inovações tecnológicas são decorrentes do processo evolutivo da profissão desde há muito. E sempre que surgem exigem rearranjos.
Contudo, parece-nos evidente que nem todas as mudanças ocorrem no mesmo ritmo – e a chegada da internet em escala comercial, em 1990, parece ser a face mais visível deste processo, porque alterou em pouco tempo o que vinha sendo feito de forma relativamente harmônica há pelo menos 300 anos. Mas, mesmo aqui, é preciso relativizar: a gênese da mudança parece residir principalmente no tempo de operação; tempo visto como ‘transcurso, a sucessão dos eventos e sua trama’ (Santos: 1997). Ou, por outra, ainda estamos falando de jornalismo, mas em um contexto diferenciado, mais acelerado – de reconfiguração técnica [técnica como o universo dos meios (as tecnologias), que em seu conjunto compõem o aparato técnico, quanto à racionalidade que preside o seu emprego, em termos de funcionalidade e eficiência. (Galimbert: 2006, p. 8); neste sentido, o jornalismo é uma atividade técnica] e espacial [espaço é o meio, o lugar onde os eventos ocorrem] –, que exige, portanto, mais habilidade de quem exerce a função de editor, só que com menos tempo disponível para aprender a exercê-la.
Fazeres e posturas
De um lado, formação acadêmica fragilizada; de outro, mercado cada vez mais exigente, e chegamos, então, ao motivo deste livro. A preocupação foi contemplar o tema edição de forma que alunos, professores e pesquisadores pudessem encontrar respostas às suas angústias mais imediatas. Considerando que o suporte livro foi, desde o início, unanimidade, a questão então recaiu sobre a forma mais adequada de trazer a público a discussão. Optamos por fazê-lo de maneira a contemplar todos os suportes midiáticos, incluindo assessoria de comunicação no que ela tem de jornalístico. Quanto à ordem de distribuição, achamos por bem adotar como critério a data de nascimento de cada suporte.
Cerca de 300 e-mails depois; telefonemas, reuniões presenciais e discussões virtuais em horários não necessariamente convencionais (às vezes restavam apenas as madrugadas), angústias as mais diversas e um sem-número de inquietações, eis que finalmente chega às suas mãos os 12 artigos que compõem o livro Edição em jornalismo – teoria, ensino e prática. Mais que normatizar fazeres ou sugerir posturas, é nosso desejo que as questões nele postas sirvam principalmente para suscitar novas reflexões a respeito desta disciplina que, sabemos, carrega em seu escopo uma importância para além de seus limites conceituais. Uma boa leitura a todos.
Referências bibliográficas
BARROS, Clóvis de; SÁ MARTINO, Luís Mauro. O habitus na comunicação. São Paulo: Paulus, 2003.
GALIMBERT, Umberto. Psiche e Techne: O Homem na Idade da Técnica. São Paulo: Paulus, 2006.
HAESBAERT, Rogério. O mito da desterritorialização: do ‘fim dos territórios’ à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico científico informacional. São Paulo: Unitec, 1997
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Professor de jornalismo da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), doutorando pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e gerente de redação do jornal Vale do Sinos, de São Leopoldo (RS)