Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um poder sob controle

Não há nenhuma dúvida: dos três poderes do Estado, o Judiciário é o mais controlado, quer analisemos a questão do ponto de vista interno quer examinemos os aspectos extrínsecos desse controle.

Administrativamente, aí estão os Tribunais de Contas, que exercem uma fiscalização absoluta sobre os gastos e despesas do Judiciário. Um mero processo de aposentadoria é submetido ao Tribunal de Contas para exame de sua regularidade, bem assim as decisões administrativas que, direta ou indiretamente, possam impor ônus ao Estado (licitações para construções de prédios para fóruns, por aí afora).

Há as Corregedorias de Justiça, sempre muito atentas a problemas envolvendo magistrados e não são poucos os casos de punição. Apenas, na maioria das vezes, não são publicados – mas, se for feito um levantamento sério, muitos casos que passaram despercebidos na cena comunitária atual serão trazidos à luz.

Os próprios órgãos jurisdicionais superiores, como os tribunais estaduais, ou o STJ e o STF, exercem função fiscalizadora e podem – e devem – determinar providências visando a punição de juiz ou magistrado que tenha cometido irregularidade que vislumbrarem em apreciação recursal.

Considerando que a atividade de um juiz é preponderantemente jurisdicional, temos dois órgãos importantes e absolutamente independentes a fiscalizar os passos dos processos e seu regular andamento; cabe-lhes propor medidas contra os juízes (reclamação ou correição parcial), desde que algum ato desidioso, errôneo ou tumultuário, ainda que não de má-fé, tenha sido cometido. Sem contar os recursos normais interponíveis contra qualquer decisão que contrarie o interesse da parte – e nesse aspecto a nossa lei processual é exageradamente pródiga.

Cair no vazio

A OAB, ou os advogados, são os principais e mais diretos fiscais da atuação jurisdicional. Porque em todo o processo é indispensável a presença de pelo menos um advogado, quer na área cível, quer na criminal (exceto na primeira fase dos processos de competência dos juizados especiais).

Os promotores, em geral, não atuam em causas cíveis, apenas naquelas previstas especificamente em lei (em que há interesse de incapazes etc), mas atuam em todos os processos criminais. Nestes, portanto, há dupla fiscalização: do Ministério Público e do advogado.

Por isto é surpreendente que a OAB, da qual fui membro por mais ou menos sete anos, defenda a criação do controle externo do Judiciário, de certo modo transferindo a esse malfadado Conselhão a responsabilidade, que é sua, de fiscalizar a atividade jurisdicional.

Estão os advogados receosos de represália de juízes? Não creio, porque a Ordem sempre foi destemida e atuante em defesa da classe e isto não combina com sua tradição de luta e independência. Uma das atividades mais importantes da OAB é exatamente essa fiscalização – e seus membros são, por conhecimentos jurídicos e pela lida diária com processos, os mais qualificados a exercê-la.

É de lembrar a gloriosa luta da OAB, entre 1977 e 1980, contra a ditadura militar, que queria subordiná-la ao Ministério do Trabalho. Era advogado no interior de Santa Catarina e, na medida das possibilidades, lutei contra essa tentativa de submissão. Agora, ao que parece, a luta é no sentido inverso ao do ideário purista e liberal da classe. Parece preponderar o pensamento de que ‘o que é bom para os outros é ruim para mim’. O que aconteceria se alguém propusesse um controle externo da OAB?

Mas há algo, além disto tudo, no tema geral, muito importante que não está sendo considerado. Constitucionalmente nada, absolutamente nada, pode ser subtraído ao crivo do Poder Judiciário. Qual então a praticidade do controle externo se, ao final, qualquer decisão dele poderá ser modificada pelo próprio Judiciário? É possível entender que um órgão de controle possa ser controlado pelo mesmo órgão que ele controla? Esse Conselhão vai cair no vazio e não revolver nada, apenas acomodar mais cargos e somar despesas que os contribuintes pagarão.

Benefícios evidentes

Estamos diante de um governo que mete o nariz em tudo porque integra sua linha ideológica a idéia fixa de que está tudo errado apenas porque sua base programática é diversa. Intromete-se na vida dos cidadãos como se fosse dono da verdade e detivesse o insano (sim, insano) poder de compreender tudo e tudo com profundidade.

Agora quer intervir no Judiciário quando deveria intervir no judicial, pois são estes os predicados falhos: as ferramentas necessárias a que o Poder realize seu papel com desenvoltura e celeridade estão enferrujadas e são anacrônicas. Por exemplo: criar mais cargos, dotar os estados de mais juízes, para que possam dar conta do seu trabalho, é uma coisa a ser pensada, mas não é só.

Principalmente, deve o governo (não digo o ‘Estado’ de propósito) deixar de nos tratar, a todos os cidadãos, como pascácios. Deixar de promulgar leis que firam nossos direitos e que só vão provocar mais litígios. O Estado é parte privilegiada na maioria das ações que tramitam nos foros nacionais e por isto lhe cabe grande parte da responsabilidade pela morosidade da Justiça. Se evitar cometer erros e praticar atos que vão resultar em processos, se reduzir o número e a oportunidade de recursos, reformular a regulamentação dos precatórios, só por aí haverá sensível redução da morosidade da Justiça.

É óbvio que o Judiciário necessita de uma reforma, mas ela está longe de passar por um controle externo. Nenhum juiz aprecia suas condições de trabalho, pois a grande maioria vive estressada, assoberbada de serviço, usa as férias para tentar pôr em dia seu trabalho, não percebe horas-extras e trabalha à noite, aos sábados e domingos. A sobrecarga de trabalho de um magistrado é desumana e ainda assim, por mais que se esforce, ele não consegue vencê-la. Esse erro não está nos juízes nem em sua capacidade laborativa. Está no sistema e é este que deve ser alterado.

Ouçam os juízes e faça-se a reforma de acordo com aquilo que eles propõem e já propuseram, mas que, lamentavelmente, parece não estar sendo levado a sério. Eles têm amplo conhecimento de causa e, principalmente, interesse: a resolução dos problemas do Judiciário importará na solução de muitos problemas dos próprios magistrados.

Então, é esperar resultados que eles virão de forma automática. Serão evidentes os benefícios para a população, que ainda busca o Judiciário como salvaguarda de seus direitos, principalmente num Estado tradicionalmente vesgo e especialista em criar problemas como o nosso.

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Desembargador aposentado, Porto Alegre (RS)