Quase sessenta anos após a fundação do primeiro curso no país, o ensino de jornalismo continua um desafio diário para todos os professores das mais de 280 escolas superiores brasileiras. E, a bem da verdade, uma tarefa muito difícil, em uma universidade de tradição bacharelesca, em que o docente convive com uma evidente escassez de manuais especializados e com um certo desprezo pela literatura produzida para a formação técnica. O que, em certa medida, representa uma flagrante contradição com a natureza do jornalismo como profissão.
Como atividade profissional, o jornalismo demanda uma formação específica que parta da realidade da prática em todas as suas dimensões. E uma metodologia de ensino que adote a prática como ponto de partida apresenta vantagens porque contribui para o exercício do que Paulo Freire define como pedagogia da pergunta. Um tipo de pedagogia em que o jovem estudante de jornalismo deixe de lado o receituário dos modelos pré-estabelecidos, predominante na chamada educação bancária, estruturada na simples reprodução de conhecimentos previamente acumulados.
Uma escola de jornalismo em que o aluno assume função central no processo de ensino-aprendizagem exige o contato com uma bibliografia qualificada que permita ao estudante dirimir as inúmeras dúvidas decorrentes das situações-limite da prática laboratorial supervisionada. Afinal, uma boa teoria nada mais é que uma descrição conceitual das particularidades de uma determinada prática. E não é por outro motivo que Adelmo Genro Filho alerta que sempre que a teoria na prática for outra existe uma necessidade de revisar o conhecimento estabelecido. Uma tarefa que numa boa escola de jornalismo caberia ao esforço coletivo permanente de professores e estudantes.
O livro Edição em Jornalismo – Teoria, ensino e prática, coordenado pelos professores Demétrio de Azeredo Soster, Fabiana Piccinin e Ângela Fellipi, da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), que ora chega às mãos do (a) leitor (a), revela o grau de amadurecimento alcançado pelos docentes do campo do jornalismo. Em primeiro lugar, pela definição do tema pouco comum na bibliografia em português; em segundo lugar, pela oportunidade da obra no atual momento devido à expansão das faculdades e, em terceiro lugar, pela capacidade de articulação dos organizadores do projeto, que congrega pesquisadores desta área de menos três gerações.
Discursos e processos
Na verdade, em qualquer que seja o suporte, o ensino do jornalismo deve partir da prática porque deste modo o estudante pode vivenciar o jornalismo como um processo que começa com a elaboração da pauta, passa pela apuração, pela redação, pela edição e conclui com a circulação. No mercado de trabalho e, mesmo nas faculdades de jornalismo, como demonstrado pela ausência de obras específicas, raras vezes sobra tempo para perceber a relevância estratégica da edição para a qualidade do trabalho jornalístico. E este é mais um motivo para saudar o lançamento deste livro que dedica capítulos às particularidades da edição em cada uma das modalidades existentes de jornalismo: impresso, rádio, TV e web.
Nesta coletânea que, como muito bem acentua Demétrio de Azeredo Soster, ‘mais que normatizar fazeres ou sugerir posturas, pretende suscitar novas reflexões’, a primeira das doze lições cabe às professoras da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), Christa Berger e Beatriz Marocco. No capítulo ‘A dupla falta do editor de jornal, nos livros e nos cursos de jornalismo’, o objetivo das docentes é revisar o que foi dito sobre as práticas de edição nos estudos de jornalismo e em outros discursos. Na segunda lição, ‘Ensino de edição em jornais impressos: uma abordagem metodológica’, o professor Demétrio de Azeredo Soster, da Unisc, defende a necessidade da revitalização desta disciplina nos cursos de jornalismo para melhor preparar os futuros profissionais para um mercado de trabalho que cada vez mais cobra este tipo de conhecimento.
Quando o próprio estatuto do jornalismo passa por modificações profundas nas sociedades contemporâneas, acarretando transformações nos processos que estabelecem a criação de vínculos de confiança entre o sistema de produção jornalística e a comunidade de leitores, a terceira lição fica por conta do professor Antonio Fausto Neto, da Unisinos. À luz destas mudanças, Fausto Neto sustenta, em ‘Mutações nos discursos jornalísticos’, que o campo jornalístico disporia, entre outras, de três propriedades: uma auto capacidade para gerar e gerir os mecanismos de construção de uma realidade simbólica específica; conectar-se com os demais campos sociais a partir de determinadas condições de lugar de fala e descrever os próprios processos de regramentos com que constitui a realidade.
Na quarta lição, ‘Formando sujeitos que sabem’, a professora Thais Furtado, da Unisinos, parte do pressuposto de que ensinar edição em sala de aula significa não ensinar a editar, mas também ensinar a criticar, a refletir sobre esta prática. Neste capítulo, Furtado comenta as semelhanças entre os discursos pedagógico e jornalístico e os processos de produção da revista semestral Primeira Impressão, que edita com o colega Miro Bacin na Unisinos e as estratégias pedagógicas utilizadas para evitar que o estudante de jornalismo repita os vícios existentes no mercado de trabalho. A Primeira Impressão, afirma Furtado, tem uma autoria coletiva, não só pelo trabalho em duplas, mas pelo fato de seu discurso ser construído desde o inicio na escolha do tema central de cada edição.
Ações editoriais
Na quinta lição, ‘A edição radiofônica no Brasil: aspectos históricos e técnicos’, o professor Luciano Klöckner, da PUC-RS, discute como ‘as programações radiofônicas influem diretamente nos tipos de edição, bem como os avanços tecnológicos aprofundam os formatos de seleção’. Ao final, Klockner conclui que a edição jornalística opera em diversas instâncias. ‘Tecnicamente, ela pode ser resumida, levando-se em conta a evolução da sociedade, dos aperfeiçoamentos tecnológicos e da conveniente preparação do editor para selecionar os fatos de maior abrangência pública’.
A sexta lição, ‘Edição em rádio: ensinar é preciso, escolher não é preciso’, do professor Marcos Santuário, da Feevale, complementa a anterior e trata de como a prática deve pactar com a teoria no ensino universitário da edição. Neste processo, que deve ser desenvolvido nos laboratórios das faculdades, cabe ao professor orientador uma análise do produto e do processo de elaboração.
No Brasil, ao contrário da maioria dos países, a atividade de assessoria de imprensa tem sido praticada por jornalistas. A contribuição da professora Márcia Amaral, da Universidade Federal de Santa Maria (Ufsm), na sétima lição, tem o mérito de, evitando o senso comum das disputas corporativas, assumir de modo inequívoco que assessoria de imprensa não é jornalismo. O capítulo parte do pressuposto que a assessoria pode ser exercida por diversos profissionais e suas formações imprimirão determinados estilos de trabalho, dedicando-se a expor as especificidades do trabalho do jornalista numa assessoria. A oitava lição cabe à professora Ângela Fellipi, da Unisc, que busca problematizar o uso das técnicas de edição jornalística nos produtos informativos confeccionados nas assessorias de imprensa.
Na nona lição, ‘O processo editorial na TV: as notícias que os telejornais contam’, a professora Fabiana Piccinin, da Unisc, põe o dedo na ferida: ‘A consolidação da ‘fórmula’ de contar a notícia e das decisões na edição também é fruto de intervenções ligadas às características do jornalismo como instância mediadora dos acontecimentos e da própria configuração da sociedade atual e das influências externas que intervém nessas decisões’. Para Piccinin, a normatização das ações editoriais em ‘dicas de edição’, embora importante, não dá conta da complexidade do tema, justamente porque significa o empobrecimento da discussão e que se impõe o desafio de promover uma reflexão mais integral do processo a quem se dedica a essas questões na sala de aula.
Iniciação científica
A décima lição, a cargo do professor Flavio Porcello, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), ‘Edição em TV: como contar bem uma história’, repassa as diferentes etapas do processo de edição na produção de matérias para os telejornais. Um processo que exige do jornalista ‘escolher certo e optar pelo melhor recorte porque da decisão correta sairá a melhor história a ser contada aos telespectadores no telejornal de todo o dia’.
As duas últimas lições dão conta do fenômeno do webjornalismo, a mais recente das práticas jornalísticas. Logo no começo da décima-primeira lição, ‘O desafio de aprender e de ensinar edição para webjornais’, Luciana Mielniczuck, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), afirma que escrever sobre edição para webjornalismo não é tarefa fácil devido à pouca padronização das práticas profissionais nesta modalidade de jornalismo. Mielniczuck conclui que os processos de edição se tornam mais complexos no webjornalismo e que existe a necessidade dos futuros jornalistas compreenderem conceitualmente o fenômeno estudado, colaborando na busca de soluções para o futuro do jornalismo digital.
Na décima-segunda e última lição, ‘A ditadura do CTRL C+CTRLV no webjornalismo’, Paulo Pinheiro, da Unisc, complementa o capítulo anterior e destaca as particularidades da edição do webjornalismo. Ao final, Pinheiro conclui que ‘quando o jornalista aprender a usar o tempo abolido pela tecnologia para retomar o cuidado das antigas redações, a web ganhará mais adeptos e o jornalistas que atuam nela mais respeito’.
A chegada de um livro deste tipo às livrarias representa a um só tempo um fato a comemorar e um desafio. Um fato a comemorar porque revela a capacidade de produção conceitual dos pesquisadores do campo do jornalismo, atentos às necessidades de elaboração de obras didáticas para uso em sala de aula. Um desafio porque uma boa parte dos pesquisadores em jornalismo continua a somente tangenciar o objeto em seus estudos, sem – ao contrário da tarefa assumida com muita competência pelos autores desta obra – voltarem-se para o desenvolvimento de teorias específicas sobre as particularidades da prática profissional.
A inversão nas prioridades de pesquisa depende, em grande parte, da disseminação da iniciação científica na graduação e da abertura de mestrados e doutorados em jornalismo ou ao menos de linhas de pesquisa em jornalismo nos cursos de pós-graduação em comunicação. O que esta coletânea demonstra é que cada um de nós, pesquisadores, pode fazer a sua parte para a melhora do ensino e para a institucionalização da pesquisa em jornalismo no país. A todos uma boa leitura.
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Jornalista, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo