O rádio reina como o meio de notícias mais popular no isolado e empobrecido Nordeste brasileiro, onde os radialistas são figuras extremamente populares e queridas. Muitos deles tem fortes ligações com emissoras de rádio controladas por políticos, que estão crescendo em número através do interior, freqüentemente em desacordo com a lei.
Francos e altamente partidários, estes comentaristas também se tornaram alvos da violência. Cinco radialistas foram mortos nos últimos cinco anos na região, fazendo do Nordeste brasileiro uma das áreas mais fatais para jornalistas nas Américas.
Pelo interior do Nordeste, radialistas costumam se envolver em política, fazendo campanha para aliados com ardor, atacando com ímpeto seus rivais e usando as ondas do rádio como um trampolim para as suas próprias aspirações políticas. Muitos são jornalistas autodidatas; poucos são considerados independentes. Pouco, aparentemente, está fora de seu alcance: acusações de casos extraconjugais e condutas criminosas são lançadas sem restrição ou devida atenção aos fatos.
Ainda assim, esses radialistas se tornam também depositários das esperanças e expectativas da população pobre, dando voz aos seus problemas cotidianos e intervindo diretamente para fornecer assistência. Isso pode explicar porque nem mesmo o estádio local pode acomodar a multidão que se amontoou no velório de um destes radialistas, Nicanor Linhares Batista, assassinado em seu estúdio no estado do Ceará em 2003. Rivais políticos foram acusados de planejar seu homicídio em represália por seus comentários.
Profissão perigo
Os homicídios de jornalistas como Linhares – cujo apelo popular cala fundo, mas cujas transmissões partidárias abalam nervos – levaram o Comitê para Proteção dos Jornalistas a enviar missão aos estados do Ceará e Pernambuco, no Nordeste, em agosto de 2006.
‘É difícil estabelecer até que ponto os jornalistas tem liberdade para fazer o trabalho deles quando a rádio está ligada a questões políticas’, disse Marcello Gadelha, secretário-executivo de Direitos Humanos do estado de Pernambuco. ‘Muitos radialistas utilizam a rádio não só como instrumentos do grupo político, senão também para se projetar politicamente. É difícil diferenciar jornalistas de políticos’.
Todo o Brasil pode ser perigoso para jornalistas. Repórteres que trabalham em grandes centros políticos e econômicos, como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro, correm risco sempre que informam sobre crime organizado, tráfico de drogas e corrupção política. Mas, no interior do Nordeste, jornalismo, política e assuntos municipais fundem-se de forma rara e volátil, expondo jornalistas a assassinatos.
O mundo no rádio
O Nordeste brasileiro abrange nove estados, com população de aproximadamente 50 milhões de pessoas. A região abriga a população mais pobre do país, e é onde a distribuição da riqueza é mais desigual. A violência é comum. O Ceará é conhecido como refúgio para seqüestradores e pistoleiros profissionais. Tanto no Ceará como em Pernambuco, grupos de extermínio compostos por ex-policiais e oficiais na ativa fazem justiça com as próprias mãos. Os cidadãos contam com empregos, principalmente, nos governos municipais e entidades públicas.
Os principais diários de Fortaleza, capital do Ceará, e Recife, capital pernambucana, não são distribuídos nas áreas mais remotas do estado devido ao alto custo e baixo potencial de circulação. Os canais televisivos focam as notícias regionais e nacionais, deixando as notícias locais para outros meios de comunicação – a grande imprensa das duas capitais enfrenta significativa pressão de interesses comerciais e judiciais, mas não do mesmo tipo de violência política vista com maior freqüência no interior e no meio rural.
Alguns semanários e outros periódicos são publicados nas cidades de porte médio no interior, mas sua circulação é pequena. Assim, a maioria dos cidadãos interioranos recebe as notícias locais através do rádio.
Apropriação política
E o rádio se tornou uma força política. Em uma tendência nacional, que teve início com o processo de redemocratização, em 1985, numerosos políticos passaram a possuir ou controlar emissoras de radiodifusão comerciais, cujas concessões são leiloadas pelo governo federal. O Observatório da Imprensa, mantido pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), informou no ano passado que 51 deputados federais, cerca de 10% do total, eram sócios ou diretores de emissoras de rádio ou TV em todo o país. O Projor moveu representação ao procurador-geral da República, alegando que a posse de meios de comunicação por políticos viola o artigo 54 da Constituição, que diz que os legisladores federais não poderão firmar ou manter contrato com ‘empresa concessionária de serviço público’. A análise preliminar da Procuradoria Geral da União não encontrou nenhuma atividade ilegal.
A propriedade, por políticos, de rádios comerciais é forte no Ceará e em Pernambuco onde, segundo a maioria das estimativas, políticos de todos os níveis de governo possuem ou controlam dúzias de emissoras.
Porém, mais preocupante é o significativo aumento da apropriação política de emissoras supostamente não comerciais. Funcionários públicos reconhecem que alguns políticos manipularam a legislação de 1998, que pretendia diversificar o conteúdo das transmissões concedendo licenças para prestar serviço de radiodifusão comunitária, em freqüência modulada, para associações e fundações comunitárias.
Ação clandestina
Pela lei, as rádios comunitárias devem ser de propriedade de organizações sem fins lucrativos, e elas não podem transmitir publicidade ou propaganda política. No entanto, desde que a legislação foi aprovada, políticos correram para montar rádios comunitárias que são, na verdade, pouco mais que porta-vozes, disseram ao CPJ jornalistas e pesquisadores. O pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) Israel Bayma, cujo trabalho tem sido citado nacionalmente, disse que dos 820 pedidos de licença para rádios comunitárias apresentados ao Congresso para aprovação, em 2002, 87% não eram de legítimas organizações sem fins lucrativos. Bayma também disse ao CPJ que essas emissoras ‘sem fins lucrativos’ doaram, em todo o país, 879 mil reais (US$ 400 mil) a campanhas políticas municipais nas eleições de 2004.
Francisco Câmpera, assessor de imprensa do Ministério das Comunicações, reconheceu que a legislação sobre rádios comunitárias tem sido manipulada, mas disse que o ministério está fazendo o máximo para verificar a propriedade dessas emissoras. ‘O ministério cumpre com as suas obrigações legais’, afirmou. ‘Se a rádio é usada politicamente, e for denunciada… ela será fiscalizada e corre o risco de ser lacrada, como já aconteceu em vários casos’.
A influência política permeia outra categoria de rádio – estações que operam clandestinamente, sem concessão ou licença de radiodifusão. Conforme estimativas amplamente citadas pela mídia brasileira, centenas de emissoras de rádio operam desta forma. A pesquisa do CPJ encontrou dezenas dessas rádios ilegais operando no Ceará e em Pernambuco, muitas de propriedade ou controlada por políticos.
Peões num tabuleiro
Baixos padrões profissionais e forte influência da política local formaram uma mistura explosiva em outras partes do mundo. Desde 2000, nas Filipinas, um número recorde de 17 radialistas do interior foi morto, em seis anos, numa escalada atribuída a seus comentários focados em ataques políticos.
A pesquisa do CPJ indicou que, no interior do Nordeste brasileiro, a cobertura informativa não se caracteriza pela objetividade. ‘Quem basicamente faz jornalismo no interior é o radialista’, disse Nonato Lima, professor de Comunicação, produtor independente de rádio e apresentador de um programa na Rádio Universitária FM, da Universidade Federal do Ceará. ‘O radialista vira produtor, escreve, apura, faz tudo’.
Novos radialistas normalmente obtêm o certificado após um curso de quatro meses, que inclui um mês de aula e três meses de estágio. ‘É um jornalismo de opinião, muito partidário e político’, disse Lima.
Freqüentemente os radialistas formam alianças com políticos, o que lhes proporciona renda e proteção. Alguns desses políticos, descendentes de famílias que comandaram dinastias políticas no interior, são conhecidos por aterrorizar seus críticos. Os radialistas são, de fato, peões neste tabuleiro. ‘Tem que falar bem do dono e mal do adversário’, disse Lima.
Ascensão política
Os fatores econômicos também desempenham papel importante. Como as fontes de publicidade comercial são escassas, os radialistas costumam assinar contratos com administrações municipais para fazer divulgação e promover suas atividades. Apesar dos contratos serem legais, algumas vezes incluem pagamentos ‘por fora’ para garantir a fidelidade do radialista. Jornalistas disseram ao CPJ que os próprios radialistas são conhecidos por solicitar tais pagamentos.
À medida que assumem certas responsabilidades, os radialistas acabam realizando funções que o governo local oferece com pouca eficiência ou nem mesmo proporciona. Falando de igual para igual e com linguagem acessível, os radialistas tentam resolver as necessidades das pessoas – solicitando doações aos ouvintes ou apelando às autoridades para corrigirem o problema. Eles ajudam a encontrar trabalho para desempregados e distribuem cadeiras de roda para deficientes. Com o tempo, vários carismáticos radialistas se tornam verdadeiros mediadores entre a audiência e as autoridades locais, transformando a gratidão de seus ouvintes em votos para seus patronos políticos. Alguns radialistas decidem entrar diretamente na política, por conta própria ou a pedido de políticos ansiosos por aproveitar a popularidade dos radialistas em benefício de seus partidos.
Márcia Vidal Nunes, professora de curso de Comunicação da Universidade Federal do Ceará (UFC), tem documentado a ascensão de vários radialistas de Fortaleza e sua transformação em candidatos políticos. O radialista conhece as necessidades de seus ouvintes e ‘vai, aos poucos, colocando sua voz a serviço do ouvinte, possibilitando que o cidadão que não tem como exercer sua cidadania nessa sociedade, faça o contato indireto através do rádio com a autoridade capaz de dar uma solução concreta ao seu problema’, Vidal Nunes escreveu, em 2000, um rigoroso estudo que acompanhou a carreira de vários radialistas que se tornaram políticos.
Obscura convergência
Cid Carvalho usou sua reputação como radialista policial como base para ganhar uma cadeira como senador pelo Ceará, em 1986. Carvalho, que cumpriu um mandato, ainda apresenta em Fortaleza um programa diário na Rádio Cidade e na TV Cidade. ‘A rádio não é perigosa’, afirmou. ‘A política é perigosa’. Carvalho disse que as cidades no interior são divididas por antigas disputas familiares e políticas. Políticos, disse ele, são compelidos a controlar estações locais de rádio para difundir suas mensagens.
O clima de Pernambuco reflete, em muitos aspectos, o do Ceará: ‘As rádios pertencem quase todas a grupos políticos e eles se confrontam através das rádios’, disse Aquiles Lopes, repórter do jornal Diário de Pernambuco, com sede em Recife. ‘Daí partem as ameaças contra jornalistas. Os jornalistas acabam sendo vítimas de jornalismo comprometido com interesses políticos, não de jornalismo independente’.
O assassinato do radialista José Cândido de Amorim Filho, ocorrido em 1º julho de 2005 na cidade de Carpina, ilustra a obscura convergência entre imprensa e política. Amorim, também vereador, era um ácido crítico do prefeito da cidade, tanto no rádio como na câmara de vereadores. Lopes contou que a polícia disse possuir várias linhas de investigação, incluindo jornalismo, política e dívidas de campanha. A investigação ainda está aberta.
Os mandantes
Poucos radialistas inspiraram admiração ou raiva como Nicanor Linhares, carismático e controverso apresentador do programa líder de audiência Encontro Político na Rádio Vale do Jaguaribe, na cidade de Limoeiro do Norte, no Ceará.
‘Ouvir o programa político de Nicanor Linhares era um hábito sagrado para a maioria da população da região’, disse a historiadora e socióloga Dália Maia, nascida na região. ‘Nicanor Linhares era uma pessoa muito querida, principalmente pela população pobre da região. Ele fazia um trabalho social muito forte: campanhas na rádio para conseguir empregos, comida e remédios. Em ocasiões ele dava dinheiro, chamava os ouvintes para fazer doações’.
Linhares era um caso à parte, pois era proprietário da emissora, mas sua visão política era aberta e estridente. Em seu programa, Linhares participava ativamente da campanha à prefeitura municipal criticando diariamente a candidata rival, Maria Arivan de Holanda Lucena. Acusações de corrupção se misturavam a ataques pessoais. Por outro lado, Linhares era atacado por duas emissoras de rádio que apoiavam Lucena; uma das rádios transmitia uma ‘novela’ que ridicularizava a família de Linhares e um suposto caso extraconjugal dele. A escalada de críticas se tornou violenta. Em junho de 2003, dois membros de uma conhecida quadrilha criminosa atacaram o estúdio onde Linhares gravava seu programa, atiraram várias vezes à queima-roupa, e fugiram numa motocicleta.
Em outubro de 2003, promotores estaduais apontaram Maria Arivan Lucena e seu marido, o desembargador federal José Maria de Oliveira Lucena, como os mandantes do assassinato. Em maio de 2004, por solicitação de promotores federais, um ministro do Superior Tribunal de Justiça de Brasília indiciou o casal. Vários outros suspeitos foram indiciados. Os Lucena ainda não foram julgados. E a população ainda comenta vivamente o velório de Nicanor Linhares. ‘Nicanor se pautava em fatos, tanto como em opiniões, era um jornalismo político. Ele era uma pessoa boa, caridosa’, disse Maia. ‘O velório dele foi um acontecimento na região, parecia uma romaria’.
Pressões econômicas e do Judiciário
Jornalistas nas capitais do Ceará e do Pernambuco enfrentam riscos de natureza muito diferente dos de seus colegas no interior. Repórteres em Fortaleza, capital do Ceará, são extremamente prudentes quando falam do Poder Judiciário e das grandes empresas. Sua cautela beira a autocensura. Num caso emblemático, poucos meios de comunicação noticiaram as supostas ligações entre a maior cadeia de drogarias do Brasil, as Farmácias Pague Menos, com sede em Fortaleza, e policiais fora de serviço acusados de matar várias pessoas em casos de roubo a drogarias. Vários meios de comunicação nem mesmo cobriram a história, enquanto outros deram pouca notoriedade ou omitiram o nome da empresa, disseram jornalistas entrevistados pelo CPJ.
Embora em maio de 2005 o diário O Povo tenha informado, em primeira mão, a respeito de uma investigação federal sobre o envolvimento de policiais nos assassinatos, apenas depois que o assunto foi abordado pelo jornal televisivo de maior audiência do país, o Jornal Nacional, da TV Globo, é que a história passou a ser noticiada pela maioria dos meios de comunicação cearenses. Promotores federais e estaduais declararam que um grupo de extermínio composto por cinco policiais fora de serviço, ilegalmente contratados como seguranças – a legislação brasileira não permite que os policiais trabalhem também como seguranças particulares – estavam por trás de, pelo menos, três assassinatos. A rede de Farmácias Pague Menos negou ter contratado os policiais para proteger suas lojas; alegou ter contratado uma legítima empresa privada de segurança, e que alguns policiais prestavam apenas consultoria.
Em Recife, capital do estado de Pernambuco, jornalistas descreveram o clima de autocensura relacionado a reportagens sobre o poderoso sistema judicial. Ivanildo Sampaio, diretor de redação do diário Jornal do Commercio, disse que os jornalistas são rotineiramente pressionados quando informam sobre o poder judiciário – e a pressão aumenta se o meio de comunicação para o qual trabalham tem alguma questão judicial pendente. Durante 2006, o Jornal do Commercio publicou várias matérias e artigos opinativos sobre o nepotismo no sistema judicial. ‘Tem pressões do Poder Judiciário por conta de matérias sobre nepotismo no Judiciário do Estado: ligaram para os donos do jornal’, informou Sampaio. E acrescentou que, apesar de as pressões não terem interrompido a cobertura do Jornal do Commercio, os editores tiveram que parar e ver como poderiam driblar aquilo.
Fátima Beltrão, diretora-executiva do Diário de Pernambuco, expressou preocupação semelhante: ‘O Judiciário é um poder que não é fiscalizado, é um poder autônomo. É difícil fazer denúncia contra o Judiciário, tem que estar bem baseado. Não chega nem vazamento do Judiciário. Os juízes se protegem, é um sistema muito fechado’.
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O primeiro, coordenador do programa das Américas do CPJ; o segundo, consultor do programa das Américas do CPJ sediado em Miami