Ao longo desta campanha eleitoral, tem ficado claro para quem acompanha o jornalismo político praticado pela grande mídia brasileira que a missão de cunho iluminista, de ‘trabalhar em prol do interesse público’ e do ‘esclarecimento dos fatos’, está cada vez mais próxima da retórica legitimadora da profissão e longe da realidade prática.
No embate de opiniões que se seguiu à revelação de como um delegado da Polícia Federal vazou CDs com fotos do dinheiro que seria usado para pagar um dossiê anti-José Serra, e combinou com os jornalistas a versão que seria usada para disfarçar a origem do vazamento, os envolvidos apegaram-se ao profissionalismo e ao cumprimento de regras incontestáveis ao exercício da profissão – o sigilo da fonte, garantido pela Constituição, e o interesse público em divulgar as fotos – para justificarem suas decisões.
Quando CartaCapital, em edição histórica, apontou as inconsistências da cobertura feita pela TV Globo, no Jornal Nacional de 29/09/2006, rompeu-se o dique que continha a crítica do jornalismo e da mídia aos sites especializados e aos observadores profissionais ou acadêmicos. Atingido, o editor-executivo Ali Kamel escreveu uma resposta, publicada no Observatório da Imprensa, no jornal O Globo (com chamada na primeira página) e na própria CartaCapital desta semana como matéria paga.
Se fizermos um esforço, veremos que, em retrospectiva, o episódio do vazamento do CD não é isolado, tampouco atípico das relações entre jornalistas e fontes. Todos os que já trabalharam em redação, e aqueles mais atentos às entrelinhas das matérias jornalísticas, percebem, neste caso, algumas das características marcantes do jornalismo político nos últimos anos. Vale a pena analisar as mais explícitas:
1.
A dependência de vazamentos para obter informaçãoEsta não é uma característica nova e não somos os únicos a utilizá-la à exaustão. Há alguns anos, Silvio Waisbord (Watchdog Journalism in South América; New York, Columbia University Press, 2000) apontou a apropriação à moda latina dos valores jornalísticos de inspiração norte-americana. Waisbord constatou que, até anos recentes, houve independência precária de jornais e jornalistas, uma vez que muitas empresas disputavam ou dependiam da publicidade ou dos incentivos fiscais dos governos. Além disso, o autor afirma que as investigações jornalísticas dificilmente começam por iniciativa das empresas, mas sim por vazamentos ou indicações de fontes oficiais que têm interesse em ganhar pontos na disputa pelo poder.
Quanto mais contradições entre os grupos políticos, mais possibilidade de se obter vazamentos, até porque o local da política é, cada vez mais, a mídia – e as disputas de poder passam, quase que necessariamente, por este palco. Qualquer assessor de imprensa de políticos sabe o quanto é difícil conviver com os vazamentos de deputados, assessores, seguranças e até de quem serve o cafezinho, que ‘salvam’ muitas edições.
Além disso, o vazamento tornou-se a pedra de toque da prática jornalística, pois economiza tempo e dinheiro na cobertura. Na era da ‘sinergia’ (para não dizer concentração) entre os diversos meios, redução de equipes e ritmo de ‘tempo real’, é a forma mais fácil de se ter informação nova a qualquer momento.
2.
O jornalismo declaratórioVazamentos adquirem importância em um contexto em que as declarações são mais relevantes do que a apuração de fatos. As análises de cobertura jornalística mostram que não é o fato que se destaca, mas as versões sobre o fato. Importa que alguém fale, nem que seja sob anonimato – e, de preferência, denuncie para que haja drama e tensão.
No telejornalismo, por exemplo, as declarações (ou citações: fulano disse que…) tornam-se a representação do pensamento de grupos envolvidos em um fato. Elas ajudam a construir uma interpretação do fato, a interpretação dominante da matéria. O lugar onde determinada declaração se insere em uma reportagem televisiva já sinaliza ao espectador se a fonte está se defendendo (portanto, em condição desvantajosa) ou dando a palavra final sobre o assunto.
Tanto a omissão quanto a ênfase de alguma declaração são indicativos do enquadramento dado pelo telejornal a determinado assunto. No caso do vazamento das fotos, por exemplo, as declarações gravadas da fonte – que pediu anonimato – não apareceram nas reportagens do Jornal Nacional. Mas, como disse Luiz Weis, neste Observatório, ‘em jornalismo, o sigilo da fonte não se estende às suas palavras’. Se fosse assim, nosso jornalismo seria bem diferente.
3.
O jornalismo a serviço das fontesPodemos discutir se o jornalismo está ou não a serviço do interesse público, e mais ainda, o que é interesse público nas atuais democracias centradas na mídia; mas é possível exemplificar com segurança os episódios em que as fontes escolhem quando, como e a quem revelar suas informações – sem que os interesses que os levaram a tanto sejam expostos claramente nas reportagens.
Na cobertura política esta característica é evidente, até porque políticos profissionais são hábeis em identificar as oportunidades de divulgação de seus interesses e recebem, ademais, treinamento de jornalistas para isso. As fontes sabem hierarquizar suas informações, organizá-las de maneira convincente, fornecer um lead pronto e escolher em qual meio divulgá-lo em função de seus objetivos.
O delegado Bruno, por exemplo, preocupou-se em garantir a divulgação nos telejornais da noite, em especial o Jornal Nacional e o SBT Brasil; providenciou o CD com várias fotos, chamou o seleto grupo de repórteres para um local longe da PF e ainda forneceu uma desculpa falsa para não ser pego. Ao se ler/ouvir a transcrição dos diálogos entre o delegado e os jornalistas, percebe-se a ansiedade dos trabalhadores da notícia em garantir as cópias para si e os outros, em negociar a divulgação (combinando a versão) e sair correndo para dar o furo, sem a preocupação de checar a veracidade da informação. Alguém ainda pergunta: ‘É só isso mesmo, doutor?’, revelando uma patética falta de senso crítico em relação à fonte.
Em retrospectiva recente, poderíamos lembrar de outros casos do jornalismo a serviço das fontes, como quando o ex-deputado Roberto Jefferson procurou uma jornalista da Folha de S.Paulo para fazer suas denúncias. Também sob esta perspectiva se compreende que o cruzamento da famosa lista de parlamentares e assessores que foram ao Banco Rural, durante a crise política de 2005, tenha sido fornecida pela assessoria do PFL a uma jornalista da GloboNews, ou que o presidente Lula escolha quando e em quais debates vai, entre muitos exemplos.
Por outro lado, o jornalismo político também padece de um vício difícil de contornar: o reduzido grupo de fontes autorizadas que convive com o pequeno grupo de jornalistas que cobrem a área. Se existem o alto e o baixo clero no Congresso, é certo que também existem o alto e o baixo clero dos jornalistas políticos. No alto clero estão os articulistas, comentaristas ou chamados ‘formadores de opinião’ que, muitas vezes, formulam teorias e (des)orientam a ação de grupos políticos. No baixo clero, estão os que correm do Congresso para o Palácio do Planalto, e vice-versa, em infindáveis plantões, para obter – como já vimos – as fatídicas declarações que vão garantir o jornal do dia seguinte ou o telejornal da noite.
Há muitos anos, quando ainda era uma estudante de jornalismo, entrevistei um então integrante do alto clero do jornalismo político e recebi a primeira de muitas lições: os jornalistas que cobrem política escrevem, na maioria das vezes, para eles próprios e para suas fontes. Portanto, os constrangimentos organizacionais de que falam alguns teóricos como John Soloski (Jornalismo: Questões, Teorias e Estórias, organizado por Nelson Traquina, 1993) não estão somente nas redações, mas na prática jornalística junto às fontes. E é na convivência entre jornalistas e fontes que se reforçam as divergências e as afinidades, inclusive as políticas, que vão ajudar a moldar a cobertura.
Um último elemento a se observar a respeito do jornalismo a serviço das fontes é a cobertura política que legitima a ação dos atores políticos. Quantas vezes, nesta campanha, jornais ou revistas capitanearam a ação política de grupos, ao publicar informações não checadas, matérias baseadas em ilações ou indícios, até mesmo em informações plantadas ou com omissão de importantes atores? Isto para não falar de entrevistas compradas e capas baseadas em supostos furos que não se confirmam com o passar dos dias, utilizando-se informações requentadas e já negadas, produzidas para servirem como imagem no horário eleitoral ou como citação em relatórios da polícia.
4.
A ilusão dos critérios profissionais do que é notíciaO discurso do profissionalismo é sempre o primeiro a ser invocado quando há questionamentos sobre a cobertura jornalística. É como se os jornalistas, ao cumprirem determinadas regras para realizar sua cobertura, não pudessem ser responsabilizados pelo sentido que seu trabalho adquire ao final. Gaye Tuchman, socióloga norte-americana que escreveu alguns textos clássicos sobre o jornalismo, afirmou, ainda na década de 1970, que o cumprimento de atributos formais na produção das notícias – que ela chamou de ‘rituais estratégicos’ – concede aos profissionais um distanciamento entre aquilo que eles pensam e o que eles noticiam.
Em uma perspectiva bastante crítica, Tuchman (‘A objetividade como ritual estratégico: uma análise das noções de objetividade dos jornalistas’, publicado em Jornalismo: Questões, Teorias e Estórias, organizado por Nelson Traquina, 1993) derruba o mito da objetividade e do profissionalismo. Para ela, a objetividade nada mais é do que uma noção operativa, que permite aos jornalistas tomarem suas decisões com um mínimo de reflexão, no menor tempo possível, e com menos riscos. Mas, em nenhum momento, os procedimentos objetivos permitem alcançar de fato a objetividade. Apenas mostram uma percepção seletiva de quem produz e são um meio de o jornalista fazer passar sua opinião, delimitada pela política editorial, e de iludir os leitores ao sugerir que a análise é definitiva.
Nos estudos de jornalismo, milhares de páginas têm sido dedicadas ao problema da objetividade e dos critérios do que é notícia. De outro lado, sempre que se pergunta aos profissionais de redação, a resposta gira em torno do que é novo, desviante, importante, relevante, que causa impacto, ou que tenha interesse público.
A questão-chave que envolve a prática jornalística é que todos os critérios citados só adquirem sentido completo quando combinados com a realidade objetiva, os valores e a visão de mundo de jornalistas, editores e proprietários dos meios. É exatamente por isso que a cultura profissional se torna importante na equação que responde o que é notícia.
Silvia Moretzsohn (Jornalismo em ‘Tempo Real’, Editora Revan, 2002), afirma que ‘não há como definir notícia segundo critérios internos à profissão’. O jornalismo não existe em uma esfera ideal, pairando acima dos compromissos políticos e econômicos, como um deus-juiz do mundo; ao contrário, ele está no seio desses interesses; é palco e parte das disputas. Portanto, a definição do que é notícia está ligada de forma inerente aos interesses e visão de mundo de toda a cadeia de produção jornalística. Reduzir o jornalismo às tecnicidades é ocultar seu caráter político.
Assim, os jornalistas e seus respectivos jornais e emissoras de televisão que participaram do vazamento do delegado Bruno e divulgaram as fotos sem divulgar também o áudio (não era de interesse público o público saber qual o interesse da fonte?) podem até justificar que deveriam assegurar anonimato à fonte e que estavam a serviço do dito interesse, mas não podem fingir ignorar que a maneira como fizeram isso foi – explicitamente – uma escolha política.
Condição de credibilidade
Ali Kamel, em sua resposta à CartaCapital desta semana, escreve, ao final do texto, que não é…
‘…movido por paixões políticas e meu compromisso é apenas com minha profissão: relatar os fatos, com correção e imparcialidade, não importando se beneficiam ou prejudicam esta ou aquela corrente política. (…) Políticos passam. Eleições chegam ao fim. Mas o nosso trabalho jornalístico é diário e avança nos anos’.
Seu texto reproduz algumas das idéias norteadoras do atual jornalismo brasileiro, que se apega à noção de profissionalismo como a bóia que salvará a profissão de afundar nas críticas, e à imparcialidade como único fundamento da credibilidade e da autoridade. Porém, relatar os fatos não é uma ação isenta; é necessariamente uma ação que parte de um determinado ponto de vista, que pode ou não buscar a correção e a objetividade possível. Quem relata, narra; quem narra torna permanente um sentido, uma forma de organizar a política para os outros.
É nisso que reside grande parte do poder do jornalismo: tornar visível e coerente à sociedade o que ocorre dentro dela. O jornalismo organiza e interpreta os fatos. É por isso que as perguntas como? e por quê? fazem parte do lead. Se uma informação importante para se entender o sentido de um fato é escondida – como, por exemplo, o interesse do delegado Bruno em divulgar as fotos –, então o esclarecimento que o jornalismo pode trazer está comprometido.
E, por último, políticos não passam, políticos são parte essencial da democracia. Eleições não chegam ao fim no dia da votação. São um processo instável e difícil de construção democrática. O dia da eleição é só o começo de um governo; se um candidato é eleito, é porque as forças que estavam alinhadas a eles venceram a disputa, inclusive, as forças midiáticas.
Tornar transparente o ponto de vista editorial de que se parte, os compromissos políticos e os critérios jornalísticos, e desnudar os interesses das fontes nas reportagens é condição para um jornalismo de credibilidade. É preciso vencer o medo de desvelar a caixa-preta do jornalismo político, sob pena de não construirmos, efetivamente, uma sociedade democrática.
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Jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade de Brasília e pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da UnB