Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Carta Capital

LITERATURA
Antonio Luiz M. C. Costa

O sucesso literário e suas muitas receitas

‘O que têm em comum Machado de Assis, Johann Wolfgang von Goethe, Paul de Kock, Eça de Queirós, Georges Ohmet, H. P. Lovecraft , J. R. R. Tolkien, Ponson du Terrail, J. K. Rowling, Paulo Coelho e André Vianco? Em estilo, qualidade e durabilidade, pouco ou nada. Mas todos foram bem-sucedidos em atingir e interessar um público, seja grandes massas com efeito imediato (e geralmente lucrativo, apesar de efêmero), sejam os apreciadores mais exigentes ao longo de muitos séculos.

As obras e autores de interesse duradouro para a corrente principal de literatura são trabalhos que brilham pelo estilo, de maneira a casar a forma ao conteúdo de maneira realmente memorável e lançar um olhar novo e surpreendente sobre a vida. Mas isso não as transforma em best-sellers instantâneos. Muitas delas, talvez a maioria, custam a ser reconhecidas.

Machado de Assis, para muitos o melhor estilista da literatura brasileira, teve em vida um sucesso apenas moderado: Memórias Póstumas de Brás Cubas, que revolucionou a literatura brasileira e foi um de seus melhores livros, levou quinze anos para ter a oportunidade de uma segunda edição. Vendeu menos que O Mulato, de Aluísio Azevedo – obra hoje vista como de menor estatura e, o que era mais importante para aquele tempo, de autoria de um estreante do Maranhão, bem longe do mercado literário da Corte, enquanto o carioca Machado já tinha dez volumes publicados. Aliás, Memórias Póstumas vendia menos no Brasil do que A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy de Laurence Sterne, a obra do século XVIII que lhe serviu de inspiração.

Já os trabalhos duradouros de ficção científica e fantasia são, em geral, obras que se destacam pela ousadia, consistência, amplitude ou riqueza de sua imaginação, desafiando o leitor não com um olhar inovador sobre seu próprio mundo, mas com a ampliação dos limites de sua imaginação por uma abertura a outros mundos possíveis, ou pelo menos concebíveis. Também nem sempre as obras reconhecidas a longo prazo como boas nesses gêneros fazem imediatamente um grande sucesso: H. P. Lovecraft, que em vida publicou apenas contos em revistas baratas e um único livro em uma edição pequena e de má qualidade, tornou-se cult muito depois de sua morte em 1938. Philip K. Dick teve algum sucesso dentro de um círculo restrito de fãs da ficção científica, mas só foi descoberto depois de sua morte em 1982. Mesmo O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien, publicado em 1954-55, só começou a receber maior atenção na segunda metade dos anos 60.

Por outro lado, algumas obras, tanto das que pretendem se posicionar como literatura mainstream, quanto de gêneros mais específicos, têm um impacto estrondoso e imediato. Umas poucas delas se tornam também clássicos a longo prazo – foi o caso do Dom Quixote de Miguel de Cervantes, assim como de Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe.

Como se sabe, Werther era um jovem rebelde e ultrassensível que se suicida por causa de sua paixão sem esperança por Charlotte, noiva de outro homem ao qual ela amava sinceramente. Nos anos seguintes ao lançamento do livro em 1774, houve uma epidemia de jovens que se suicidavam por se identificar com o personagem (junto com uma pandemia de calças amarelas, casacos azuis e camisas abertas, de acordo com a descrição do rapaz no livro).

Por várias décadas, o livro, um best-seller de seu tempo, foi proibido em muitos países. Em Portugal, por exemplo, a censura da época do Marquês de Pombal tolerava iluministas subversivos como Voltaire e Diderot por julgar que seriam lidos apenas por intelectuais que não se deixariam influenciar à toa, mas proibia Werther, considerado influência nefasta e perigosa sobre a juventude.

Por outro lado, certamente são mais numerosas as obras que tiveram muito sucesso a seu tempo, mas foram esquecidas pelas gerações seguintes. Quem hoje aprende história da literatura pode pensar que o século XIX foi uma idade de ouro em que todos liam Balzac, Zola, Tolstoi, Flaubert e outros mestres de primeira linha. Seria um engano: o círculo de elite dos leitores desses e de outros autores que se tornaram clássicos não era desprezível, mas era bem menor que a de outros dos quais hoje mal ouvimos falar.

No Brasil e em Portugal, como em outras partes do Ocidente, um dos autores mais vendidos era Paul de Kock, autor de 400 novelas picantes (‘brejeiras’, como então se dizia) sobre o bas-fond parisiense, com best-sellers como O Amante de Minha Mulher. Os autores realmente grandes de sua época contemporâneos não deixaram de atestá-lo como mania de seu tempo.

Em O Triste Fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, o pedante Dr. Borges dorme ao tentar ler Guy de Maupassant ou Anatole France e decide iludir os conhecidos e a mulher encomendando novelas de Kock, que lhe afastam o sono, com capas trocadas. Eça de Queirós, quando cônsul em Cuba, queixou-se em carta da solidão intelectual que o emburrecia: ‘Estou tão só que minha conversação ordinária é com o meu criado; estou tão imbecil que leio Paulo de Kock!’. ‘Não temos tempo para ler os romances de Paul de Kock!’, irrita-se o revolucionário Gavroche de Victor Hugo, em Os Miseráveis. ‘Não é um negócio fácil ser simples. Eu tenho medo de cair em Paul de Kock ou fazer Balzac à moda de Chateaubriand’, confidenciou Flaubert a um amigo.

Contemporâneo de Kock, igualmente popular em seu tempo e autor de 73 volumes, vários dos quais traduzidos no Brasil foi seu compatriota Ponson de Terrail, mais conhecido por As Aventuras de Rocambole e suas sequências. Também no alto das listas das mais vendidas estavam as obras de Eugène Sue, da quais a mais conhecida era Os Mistérios de Paris. Georges Ohnet, autor de uma série de novelas conhecida como As Batalhas da Vida, chegou a vender mais de seis milhões de exemplares anuais e foi citado por Eça de Queirós em A Cidade e as Serras, em diálogo entre o narrador Zé Fernandes e o protagonista Jacinto, quando este se entusiasma pela Odisséia:

– Ó Zé Fernandes, como sucedeu que eu chegasse a esta idade sem ter lido Homero?…

– Outras leituras, mais urgentes… o Fígaro, George Ohnet…

– Tu leste a Ilíada?

– Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Ilíada.

Todas essas obras foram genuinamente populares. Seus capítulos eram avidamente esperados pelos leitores dos jornais que os publicaram como folhetins para as massas e havia quem ganhasse a vida lendo-os de casa em casa. O crítico e escritor Théophile Gautier dizia que doentes adiaram a morte para poderem ler (ou ouvir) o último capítulo de Os Mistérios de Paris. Uma vez encadernados, seus volumes compunham grande parte dos catálogos das livrarias e estavam presentes nas bibliotecas particulares de médicos e advogados.

Mesmo escritores e pensadores dos mais sisudos se divertiram com eles, ainda que nem sempre o admitissem em público. Algumas das crônicas de Machado de Assis parecem ser baseadas em situações do Rocambole. O mais conhecido texto de Karl Marx sobre literatura é uma crítica (impiedosa) da obra do socialista Eugène Sue, contida em A Sagrada Família e o genro Paul Lafargue comentou que Paul de Kock estava entre seus ‘modernos’ prediletos.

Para uma certa mentalidade que no tempo desses autores era dita ‘filisteia’ e hoje se diria ‘realista e objetiva’, autores como Ohnet, Terrail, Kock e Sue deveriam ser laureados como gênios da literatura, visto terem sido julgados e aprovados com louvor por quem realmente conta, os leitores e o mercado que lhes encheram as burras de dinheiro, enquanto seus críticos não passavam de fracassados invejosos destinados a serem esquecidos como poeira de osso, terrível e irremediavelmente chatos – enfadonhos, se diria então.

O fato é, porém, que hoje edições recentes de Eça de Queirós podem ser encontradas nas prateleiras de qualquer boa casa do ramo. Mas quem quiser conhecer Kock e Ohnet, pelos quais ele parecia nutrir uma ponta de dor-de-cotovelo, terá de cavar fundo nas mais antigas bibliotecas públicas ou em algum sebo de raridades para encontrar algum exemplar mofado e roído de traças, provavelmente do início do século passado. Terrail legou às línguas ocidentais o adjetivo ‘rocambolesco’, alusivo às suas intricadas peripécias, mas a obra e o personagem estão esquecidos. Dos tão populares folhetins do século XIX, apenas os de Alexandre Dumas ainda são reeditados.

Por quê, se eram considerados tão bons e fáceis de ler? Não se pode atribuir seu esquecimento a uma conspiração de intelectuais invejosos e preconceituosos. Que editora não haveria de querer publicar o equivalente a um Dan Brown, J. K. Rowling, Paulo Coelho ou Stephenie Meyer sem ter de pagar direitos autorais? Mas o fato é que deixaram de interessar, assim como provavelmente acontecerá com estes três dentro de algumas décadas. É mais arriscado investir na previsão de que daqui a 50 ou 60 anos as livrarias ainda venderão volumes de papel do que apostar que, na forma de papel ou de e-book, Machado, Eça e Flaubert estarão sendo mais lidos do que os grandes sucessos da virada do milênio, para não falar naqueles do século XIX.

Mas nem todos os escritores têm a obrigação de aspirarem a ser imortais. Muito menos os leitores, mesmo os capazes de apreciar um Guimarães Rosa, James Joyce ou Thomas Mann, têm a obrigação de ler apenas os clássicos. O mais refinado dos letrados tem momentos em que quer apenas relaxar. ‘Quando me sinto fatigada ou aborrecida, só este diabo de homem consegue divertir-me’, disse George Sand a seu editor, quando este se surpreendeu ao vê-la lendo um volume de Dumas. Há um espaço para a literatura descartável e para discutir, dentro desse nicho, quais são as obras que, em determinado momento histórico, melhor cumprem o seu papel e por quê.

O que têm em comum essas obras que conquistam tantos leitores tão rapidamente, para um dia serem completamente esquecidas? Não é tão óbvio: algumas dessas obras são maliciosas, outras puritanas. Algumas se mostram conservadoras e até monarquistas, outras críticas ou mesmo revolucionárias.

Talvez essas obras conquistem facilmente o leitor por se identificarem muito precisamente com seus problemas e desejos e mostrarem-se cúmplices de seus pontos de vista, sem o convidarem ao desafio e esforço de percorrer um caminho mais árduo que o levará a apreciar a realidade sob um aspecto novo. Mas, por isso mesmo, caem em uma irremediável obsolescência quando o leitor a quem se dirigiam deixa de existir.

É difícil colocar-se na pele de um leitor de 1860 ou 1890 para quem vive o século XXI e tentar analisar o exato encanto que tinham as aventuras de Rocambole para uma costureira parisiense que poderia ser personagem de Paul de Kock, ou o fascínio deste para um Dr. Borges que poderia encontrar histórias bem mais ardentes se as quisesse. É mais fácil tentar entender o apelo dos autores populares de hoje.

Seja, por exemplo, a obra de J. K. Rowling, que quanto a resultados financeiros foi a mais bem-sucedida da última década. É uma escrita excepcional? Não. Quando muito é mediana, como muitos críticos já apontaram – muitas vezes com mau humor, talvez até com inveja, mas também com razão. A linguagem é trivial e deselegante, ideias e moral não saem do lugar-comum, tramas são frequentemente forçadas (Harry Potter sempre está no lugar certo, na hora certa…), abusa-se de clichês e assim por diante.

Tudo isso é verdade, mas não nos ajuda a entender o fenômeno. Por que essa escrita fascinou tantas pessoas (não só crianças)? As editoras bem gostariam que o marketing fosse explicação suficiente, pois nesse caso poderiam ter o mesmo lucro com qualquer autor medíocre que decidissem promover, o que não é o caso. A tiragem da primeira edição de Harry Potter e a Pedra Filosofal (pela qual Rowling recebeu um adiantamento de 1.500 libras) foi de meros mil exemplares, metade deles vendidos a bibliotecas. Se as sucessivas edições da série ultrapassaram, em 2008, a marca dos 400 milhões e os remanescentes da primeira edição são hoje leiloados por dezenas de milhares de libras, foi porque, desde o início, tiveram uma boa recepção e propaganda boca-a-boca por parte de seus leitores.

O truque de Rowling esteve em descobrir uma maneira particularmente eficaz de mobilizar as fantasias de uma determinada geração, ou pelo menos de um grupo significativo dentro dessa geração. São crianças (mesmo crescidas) frustradas com a hipocrisia cinzenta do mundo real ‘trouxa’, que suspiram pelo mundo virtual ‘mágico’ e colorido de aventuras e heroísmo de jogos eletrônicos e desenhos animados, mas sem conseguir imaginá-lo como algo que seja radicalmente diferente para além do plano das aparências.

Essa cumplicidade com o ponto de vista infantil é acentuada pela adesão a fantasias, mais ou menos secretas, de desobediência, vingança e pequenas perversões, presentes em qualquer criança normal, talvez até principalmente nas mais boazinhas. Potter quebra regulamentos escolares, humilha os pais (representados pelos tios arrogantes), os irmãos (representados no primo mala sem alça), o colega mauricinho e a diretora autoritária, come cera de ouvido (na forma dos ‘feijõezinhos de todos os sabores’) e assim por diante.

Ao mesmo tempo, todas essas pequenas ‘maldades’ se tornam perdoáveis e boas, porque os regulamentos são descritos como ridículos, as autoridades como corruptas, tios e primo como idiotas pretensiosos. No fim das contas, Potter sempre está com a razão e é aprovado pela autoridade que realmente conta, que é a dos amigos e do ‘bom pai’ Dumbledore.

A inserção da história em um contexto aparentemente estranho e fantástico, mas na verdade muito familiar ao público-alvo e lhe dá a sensação de verossimilhança. É uma versão fantasiosa e colorida da vida escolar de uma criança de classe média. Potter começa por comprar material escolar como qualquer criança no início do ano, ainda que seu material seja engraçado.

Na fantasia infanto-juvenil brasileira de hoje, não existe um termo de comparação satisfatório para Rowling: Monteiro Lobato é de outra época e outro calibre. Mas podemos tomar como aproximação satisfatória um autor como André Vianco. Sem chegar aos milhões de exemplares de Rowling ou Paulo Coelho, tem hoje um sucesso bastante razoável em termos de literatura brasileira de fantasia. Tem 14 volumes publicados (dez romances, mas alguns deles de dois ou três volumes). Segundo o escritor e a editora, suas tiragens iniciais são hoje de 15 mil exemplares. O mais vendido, Os Sete, chegou a 70 mil, depois de um início pouco promissor: Vianco pagou do próprio bolso os mil exemplares da primeira edição do primeiro livro, que venderam bem e abriram caminho à contratação por uma editora comercial, a Novo Século.

A escrita, falando francamente, é ruim, pior do que Rowling. A linguagem é um paulistanês coloquial com pouco respeito pela gramática convencional. Se usado de maneira mais criativa, poderia ser interessante, mas o que se lê são frases curtas, raramente com mais de dez palavras, repetitivas e banais no vocabulário e na estrutura, alinhavadas como mera sucessão de atos e sensações, sem recorrer a conjunções ou outras conexões lógicas.

Para quem aprecia estilo e sutileza, é de uma monotonia insuportável. Passar das primeiras páginas exige teimosia e força de vontade. Mas é claro que muitos leitores acham essas obras fascinantes, embora até os entusiastas encontrem muitos trechos que lhes parecem bastante aborrecidos e julguem os personagens superficiais.

Não se peça a este resenhista para desbravar os longos romances vampirescos que são suas obra mais conhecidas – pela ordem, Os Sete tem 379 páginas; Sétimo, 459; Bento, 516; O Vampiro-Rei, 920; O Turno da Noite, outras 920 – embora haja quem leia as três mil e tantas páginas e peça mais.

Esta reflexão é baseada em dois livros talvez atípicos, com personagens humanos e menor extensão: A Casa (Novo Século, 227 págs, R$ 29), de 2002, que é promovido pela editora como ‘o melhor livro de André Vianco’ e esteve sendo adaptado para o cinema, e O Caminho do Poço das Lágrimas (mesma editora, 208 págs, R$ 34,90).

Ao contrário da saga dos vampiros, cuja movimentada violência lembra um filme de ação hollywoodiano ou um folhetim de aventuras do século XIX, estes são livros que procuram ser sensíveis e explorar com calma a subjetividade e as angústias de pessoas comuns, com tons espiritualistas que lembram romances espíritas e Paulo Coelho. Mas a maneira de usar a linguagem é exatamente a mesma, como se a forma fosse independente do conteúdo.

Tanto o narrador quanto dos personagens, adultos ou crianças, se expressam pelas tais frases curtas e desarticuladas, meros registros de emoções e percepções brutas. Deixam-se conduzir por elas como se não fossem capazes de refletir, tirar conclusões e fazer planos, mesmo quando supostamente são empresários bem-sucedidos, profissionais competentes ou artistas capazes.

Ambos os livros falam de pessoas que sofrem por decisões e atitudes do passado, recente ou distante, que por ressentimento, ambição egoísta ou obsessão pelo trabalho causaram a infelicidade de parentes já mortos, todas igualmente incapazes de articular alguma consciência de seu arrependimento até serem orientadas por algum tipo de guia mágico que lhes dá oportunidade de conseguir (mais de si mesmos do que das pessoas ofendidas) o perdão milagroso e, por meio dele, encontrar paz e redenção.

São histórias que visam comover o leitor até as lágrimas, valorizar o sentimento e a atenção para com a família e os entes queridos, ameaçados pela incompreensão ou pela ânsia por sucesso. Como no caso de Rowling, a cumplicidade do leitor não parece difícil de explicar: em um tempo de culto à autoajuda, ao pensamento positivo e de obrigação de ser feliz e otimista, pode ser um alívio ler que outras pessoas, algumas delas representadas como inteligentes e bem-sucedidas, secretamente levam uma vida miserável, de profunda carência emocional e espiritual.

Não é impossível fazer uma aproximação com o Werther, também cúmplice de sentimentos sufocados e socialmente desaprovados, embora comuns e reais. Vinha-se de uma era de sobriedade clássica, de submissão dos sentimentos à lei e à razão e da individualidade aos interesses familiares e coletivos. Mas o próprio Goethe sofreu na juventude por uma paixão não correspondida e um de seus conhecidos cometeu suicídio por razões semelhantes.

Daí a identificação tão forte de tantos leitores jovens de sua época com essa obra fundadora do romantismo. O movimento que ajudou a iniciar, ou do qual foi um dos primeiros sintomas, mudou a cultura e a sensibilidade europeias, ao aumentar o respeito e valorização dos sentimentos e mudar a concepção da família e do casamento. ‘Paixão’, antes um termo algo pejorativo para uma condição a ser lamentada, tornou-se uma experiência ardentemente desejada e o casamento por amor, antes visto com desconfiança, passou a ser um ideal.

O estilo de Werther, além de bem elaborado, adéqua-se à sua maneira peculiar de explorar a subjetividade. Permaneceu como obra-prima da literatura universal mesmo depois que o romantismo desbragado passou de vanguarda a característica estereotipada de uma literatura popular de gosto duvidoso. Werther, o personagem, sofre de uma maneira incomum e individualizada, embora quem o acompanhe em sua odisseia sentimental não possa deixar de sentir compreensão e simpatia por sua personalidade única. Exemplo:

Ela mimou a avezinha com a boca e o canário insinuou-se gracilmente entre seus lábios sedutores, como que experimentando uma ternura infinita.

– Vai beijar você também – disse-me ela estendendo-me o canário. O biquinho passou da sua para a minha boca, e as bicadas deram-me a sensação de um sopro, qualquer coisa de prelibação voluptuosa.

– O seu beijo – disse eu – não é de todo desinteressado; Ele está à procura de alimento e esta carícia inútil vai desapontá-lo.

– Ele come na minha boca.

E, colocando algumas migalhas nos lábios, que desabrocharam num sorriso onde havia todas as delícias do amor feliz, da ternura inocente, ofereceu-as ao canário. Virei a cabeça para não ver aquilo. Ela não devia fazê-lo, excitando a minha imaginação com tais cenas de cândida e celestial felicidade, despertando meu coração que às vezes dorme embalado pela insignificância das coisas deste mundo! E por que não? … Se ela confia tanto em mim, é porque sabe quanto a amo.

A Casa e O Caminho… não compartilham, infelizmente, dessas características. Mas talvez a falta de elaboração e articulação do pensamento e a pobreza do estilo facilitem a identificação com seu público específico (ao mesmo tempo que repelem leitores mais exigentes). Não que seu leitor seja necessariamente pouco articulado, mas essa característica dá aos personagens uma superficialidade que passa por universalidade.

Pormenores externos aproximam o quotidiano dos personagens do leitor paulistano de classe média: a marca do carro, o ator favorito, o esporte da moda, o personagem de videogame, o sanduíche de uma conhecida franquia paulistana. Mas o que lemos é algo que qualquer pessoa poderia sofrer em seu lugar, pois apenas registram passivamente sentimentos genéricos, sem articulá-los com uma individualidade especial. Um exemplo, de A Casa (mantenho a pontuação e gramática do original):

Rosana fez um lanche rápido. A hora do almoço tinha escoado com a ida não planejada ao doutor Samuel. Parou na Casa do Pão de Queijo e pediu um sanduíche Tropical. Não sabia que estava vivendo feliz, pois preocupada com a loja cheia e a possível demora na feitura do seu pedido, tinha esquecido momentaneamente dos comprimidos e do passado. Era por isso que lutava para continuar empregada. Precisava trabalhar para manter a casa, as filhas. Uma luta, sem dúvida. Mas o trabalho era necessário principalmente para absorver seus pensamentos, alienar seu eu e conservá-la longe do passado. O trabalho era necessário para mantê-la viva.

Outro, de O Caminho… (idem):

Preocupado, o pai andou pelo restaurante. Sem achar a filha, pagou e foi para o lado de fora, olhando para o estacionamento. Aflição. Não viu a filha. Andou mais. Então os bancos de madeira. Lá estava ela, vermelha, encabulada, sentada e um garoto bem mais velho, pisando num skate, falando com ela. O garoto usava um boné vermelho, jogado de lado sobre a cabeça e curvava-se, chegando perto dela, querendo beijá-la certamente. E ela, menina rendida aos encantos da adolescência, não fugia, apenas ia ficando cada vez mais vermelha. O monstro de boné parecia um predador da savana, pronto para abocanhar a presa. Jonas ficou colérico.

Esse efeito de superfície é análogo ao que consegue Paulo Coelho com seus personagens quase abstratos. Um minimalismo que exige pouco esforço de compreensão e simpatia, mas que também provoca pouco e rende pouco em termos de ampliação de horizontes humanos e culturais.

Por isso, é com mágica simplicidade com que a angústia é ‘curada’ quando os personagens de A Casa, graças à intervenção do fantástico, voltam a enfrentar as situações e as escolhas que os sobrecarregaram de culpa e consequências indesejadas. Corresponde à fantasia de quem sonha livrar-se do sofrimento com uma só sessão de exorcismo, ‘descarrego’ ou terapia e seguir com uma versão mais feliz da vida de sempre, quando na vida real, isso exige um longo trabalho de reconhecimento e reflexão e, muitas vezes, o enfrentamento de decisões difíceis e de uma mudança de rumo. Mas como expor uma justa metáfora desse processo na linguagem simplista dessas obras?

Também chama a atenção a excessiva rapidez e facilidade com que filhos perdoam e esquecem longos períodos de descaso ou crueldade por parte dos pais e vice-versa. Reflete a convenção, cômoda, mas infelizmente falsa, de que ‘no fundo’, todos os filhos amam os pais e vice-versa e que cairão nos braços dos outros sem ressentimentos, uma vez que os mal-entendidos sejam esclarecidos.

Seria injusto, porém, dizer que André Vianco segue sistematicamente o caminho mais fácil: também aceita riscos. O primeiro deles foi o de escrever histórias de vampiros, anjos e demônios em cenários brasileiros urbanos (e suburbanos), contrariando o leitor acostumado com associar tais histórias ao glamour de ambientes de ‘Primeiro Mundo’. Depois, quebrou a expectativa de um público que esperava por novas histórias de seres sobrenaturais ao escrever sobre seres humanos como qualquer outro, embora confrontados com experiências inusitadas. Poderia apostar apenas em personagens e situações de fácil aceitação por um leitor mediano, mas também ousa convidá-lo, por exemplo, a pensar no ponto de vista de uma artista lésbica viciada em drogas (em A Casa) ou de quem perde filhos de maneiras trágicas (em O Caminho…).

Mesmo na literatura mais descartável, ousadia, criatividade, estilo e trama fazem diferença, mesmo que não sejam necessárias nas mesmas formas e proporções de uma literatura que aspira a ser clássica. Neste caso, é de pensar que Vianco, embora tenha boas ideias e faça algum esforço para desbravar caminhos novos para ele mesmo e seus leitores, continua aquém do grau ótimo de elaboração (mesmo do ponto de vista do sucesso comercial), e do que seria de se esperar da experiência de um escritor cuja obra já é comparável, ao menos em número de volumes e páginas, à de J. K. Rowling.

Provavelmente, seus leitores estão preparados para descobrir uma linguagem um pouco mais refinada e ideias um pouco mais complexas e o autor é capaz de fornecê-las. A literatura popular também é necessária, e seria bom que tanto os autores se esforçassem para torná-la o melhor possível quanto os teóricos e críticos se dispusessem a orientá-los e esclarecê-los sobre a melhor maneira de entreter seu público sem subestimá-lo.’

 

 

 

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