O segundo turno da eleição começou em alta temperatura para os candidatos à Presidência. Do lado de cá, o da imprensa, idem. As capas de algumas das principais revistas em circulação mostram o quanto o clima anda efervescente. O leitor está em meio a um fogo cruzado sem precedentes recentes na história política nacional.
Não é a primeira vez que veículos de imprensa desprendem-se de sua pretensa imparcialidade, aberta ou veladamente, para assumirem posições (ideológicas, partidárias ou comerciais). Desta vez, parece-me que a tendência se generalizou, distribuindo jornalistas em trincheiras opostas. A troca de acusações é tão flagrante que fica difícil o leitor não acreditar que realmente existam ‘armações de bastidores’. Só resta saber de que lado (ou lados) estão.
O envolvimento direto da imprensa na disputa eleitoral deste ano vem se desenhando há meses. A matéria Vedoin acusam Serra’, porém, publicada na capa de IstoÉ em 20 de setembro, deflagrou um embate mais acirrado, sobrepondo-se as entrelinhas costuradas sorrateiramente nas edições anteriores. A IstoÉ chegou às bancas praticamente com a prisão de Gedimar Passos, Valdebram Padilha e os R$ 1,7 milhão, que seriam usados justamente para ‘comprar’ um dossiê fajuto contra o tucano José Serra. A partir daí, surgiu uma sucessão de fatos – e capas – evidenciando as diferentes correntes editoriais de cada veículo. Aos poucos as revistas foram se despindo das armaduras e cada uma escolheu o seu lado na disputa partidária em curso mais do que acelerado.
A Veja, que há tempos já tinha assumido uma postura de cobertura implacável em qualquer deslize do governo petista, foi incisiva no caso. Na edição de 27 de setembro, três dias antes da eleição, deu capa com a caricatura de Lula e a faixa presidencial vedando-lhe os olhos. Uma imagem, sem nenhuma palavra, que mostrava com todas a letras de que lado estava.
Briga coletiva
O ponto mais instigador, no entanto, estava nas páginas internas, na coluna de Diogo Mainardi. O ácido articulista, desafeto declarado de Luiz Inácio Lula da Silva, não poupou tinta no título-trocadilho de seu artigo: ‘IstoÉ, a mais vendida’. Nele, Mainardi faz a seguinte narrativa, que Veja destacou: ‘Fim de agosto. Base aérea de Congonhas. Lula se encontra com Domingo Alzugaray, dono da IstoÉ. O encontro está fora da agenda presidencial. Alzugaray se lamenta dos problemas financeiros da revista. Lula pergunta como pode ajudá-lo…’ E por aí se segue, ao bom estilo incendiário do colunista.
Era ainda o primeiro turno e, mesmo a essa temperatura, pouca gente imaginava que poderia haver um segundo. Mas ele veio, e com muito mais cara de round, entre os candidatos, e a imprensa, claro. Prova disso foi a capa da Veja de 11 de outubro, que foi buscar no boxe a definição do seu candidato: ‘O desafiante’. Convenhamos, consegue imaginar algo mais oportuno? Bem, se a Veja está com Alckmin, IstoÉ está com Lula, ora. Pelo menos é isso que parece aos leitores. Contra o entusiasmo do ‘desafiante’ da editora Abril, a IstoÉ cuidou de mostrar que o presidente, titular do cinto, está preparado para o embate, com o título ‘Lula vai ao ataque’, capa de 18 de outubro.
Veja e IstoÉ não estão sozinhas nessa briga. Na Carta Capital, o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira assina a matéria ‘A trama que levou ao segundo turno’, na qual diz que ‘a mídia, em especial a Globo, omitiu informações cruciais sobre a divulgação do dossiê Vedoin’.
Polêmica desordenada
Era o que faltava para lançar luzes ao ringue eleitoral da imprensa. Desde então, a posição de cada veículo vem sendo discutida e debatida por profissionais do meio e fora dele. É, sem dúvida, um momento especial da imprensa brasileira. Foram raros os momentos em que os veículos, em especial as revistas, se viram tão comprometidos com suas posições ideológicas. O enfrentamento está aberto e escancarado. Só não vê quem não quer.
No calor desse embate, fica evidente até para perceber quem tenta ficar fora de confrontos. A Época, por exemplo, esverdeou. Na efervescência do clima eleitoral, preferiu sair com uma capa chamando a atenção sobre a questão da preservação do verde, com a capa ‘Pense verde’. Se fosse no primeiro turno, é claro que acusariam a publicação do grupo Globo de tentar favorecer a turma de Fernando Gabeira (como Veja o fez, no Rio). Mas não foi. A edição chegou às bancas em 12 de outubro, quando o PV já estava fora de combate. Mesmo assim, a revista não ficou isenta das críticas. Afinal, como dizem alguns, não era hora de esverdear, muito menos de amarelar.
No pano de fundo de todas essas tendências está um dos mais antigos preceitos do jornalismo – a imparcialidade, assunto tão polêmico como apontar quem é o melhor para o Brasil: Lula ou Alckmin. Uma discussão, aliás, muito pertinente. Pena que seja travada de forma tão desordenada e em clima emocional de arquibancada.
Guerra e dilema
Os ânimos andam tão à flor da pele que o blogueiro Reinaldo Azevedo, do site da Veja, assumidamente eleitor de Geraldo Alckmin, desafiou a colunista de O Globo, Tereza Cruvinel, a fazer o mesmo: revelar seu candidato, procedimento que causa urticária na maioria dos jornalistas. Azevedo ficou enfezado depois que a colega endossou, a seu ver veladamente, a estratégia petista de associar Alckmin a privatizações. ‘O terrorismo eleitoral só funciona quando a experiência, ou mesmo o discurso, lhe conferem credibilidade’, escrevera a colunista de O Globo. Azevedo rebateu: ‘Cruvinel sabe que é mentira que Alckmin, se eleito, vai privatizar a Petrobras ou o Banco do Brasil. Mas não tem coragem de dizê-lo. A exemplo do PT, prefere propagar a suspeita de que há essa possibilidade. Eu voto em Alckmin. Por que Cruvinel não diz em quem ela vota?’.
O calibre dos interlocutores mostra bem a dimensão do embate. É chumbo grosso. O leitor que se proteja. Pode ser vítima de uma bala perdida.
Em tempo: tomei emprestado o título do artigo do filme de Roger Spottiswoode (EUA, 1983), que traz como protagonista o ator Nick Nolte, no papel do fotógrafo Russel Price. Cobrindo a guerra do governo da Nicarágua contra os rebeldes sandinistas, ele se vê dividido entre ter objetividade jornalística e tomar partido. Uma analogia muito interessante para o dilema do jornalismo praticado hoje na cobertura eleitoral. Vale a pena ver – ou rever.
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Jornalista, editor da revista Viu! e professor da Faculdade Prudente de Moraes (Itu), São Paulo