DITABRANDA
Da ditadura à democracia sem povo
‘Há muitos anos, um ilustre jornalista usou de suavidade ao falar da ditadura nativa. Comparou-a com as outras do Cone Sul e decidiu ter sido bem menos feroz por ter matado um número menor de desafetos. À época, não houve reações. Talvez o profissional em questão tenha menos leitores do que imagina e do que imagina quem lhe dá guarida.
Que lições tirar do confronto? Na Argentina, um quinto da população brasileira, morreram 30 mil pelas mãos dos ditadores. No Chile, atualmente 16 milhões de habitantes, morreram cerca de 10 mil. No Uruguai, que não chega a 4 milhões de habitantes, 3 mil. No Brasil, algo mais que 400. Como disse o juiz de um filme sobre o processo de algozes nazistas, o assassínio de um único cidadão por agentes do Estado já configura ofensa imperdoável à humanidade.
Certo gênero de comparação serve apenas a solertes revisionistas. Não cabem dúvidas de que, caso a ditadura verde-amarela julgasse necessário, torturaria e mataria muito mais. Entendeu não ser preciso. Vale, de todo modo, concentrar a análise sobre o Brasil. Assim me parece, a partir das reações a um editorial da Folha de S.Paulo que expõe a peculiar ideia da ‘ditabranda’, e da agressão cometida pelo jornal contra dois leitores indignados do porte de Maria Victoria Benevides e Fábio Konder Comparato.
Permito-me começar de longe, pela origem da perene desgraça nacional, a escravidão. Seus efeitos perduram implacavelmente. Em primeiro lugar, na pavorosa, hedionda desigualdade social, que, segundo o Banco Mundial, nos coloca no mesmo nível de Nigéria e Serra Leoa em termos de distribuição de renda. Não observo nada de novo, mas faço questão de sublinhar.
Temos uma minoria exígua de privilegiados e fatia, de fronteiras mais ou menos imprecisas, de aspirantes ao privilégio. O resto vive no limbo. Milhões e milhões ali não têm sequer consciência da cidadania. Se algum progresso houve, foi irrisório. E não apagou a ignorância, o alheamento, a passividade, a resignação da maioria.
A escravidão representou o mais autêntico estágio da educação cultural do País. No povão deixou as marcas do chicote. À minoria ensinou prepotência, ganância, desmando. Impunidade. Arrogância. O deixa-como-está-para-ver-como-fica. A leniência com os pares (aos amigos tudo) e o rigor feroz com a malta infecta (aos inimigos a lei). Etc. etc.
O jornalismo brasileiro, desde os começos, serve a este poder nascido na casa-grande, por ter a mesma, exata origem. A mídia nativa é rosto explícito do poder. As conveniências deste e daquela entrelaçam-se indissoluvelmente porque coincidem à perfeição.
Observem. Basta que no horizonte se delineiem tímidas nuvens remotamente ameaçadoras à tranquilidade da minoria e os barões midiáticos formam a mais compacta das alianças para sustar o perigo. Exemplo clássico, embora não faltem outros aos magotes, é a campanha desencadeada depois da renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961, destinada a desaguar no golpe de 64.
Por mais de dois anos, os editoriais dos jornalões invocaram a intervenção militar contra a subversão em marcha, até que o golpe se deu sem que única, escassa gota de sangue respingasse na calçada. Assim como faltou ao Brasil uma guerra de independência, carecemos de uma autêntica revolução popular. O golpe de 64 aconteceu e o povo brasileiro não saiu do limbo, de alguma forma nem se deu conta do evento. O qual só teve significado para quem, com o incentivo dos jornalões, organizava as Marchas da Família com Deus pela Liberdade.
Liberdade? A de confirmar e garantir o status quo que favorecia e favorece os eternos marchadores. Não era, digamos, a liberdade da Revolução Francesa, aquela que no Brasil não se deu (de igualdade nem sonhar). Não há dúvidas de que, em uma mesma época, podem conviver tempos históricos diferentes. Aqui, de inúmeros pontos de vista, ainda vigora a Idade Média.
Com o apoio, às vezes frenético, da mídia. A qual cuidou, in illo tempore, de sustentar a ditadura, mesmo depois do golpe dentro do golpe, perpetrado a 13 de dezembro de 1968, com o Ato Institucional nº 5. Dos jornalões, a partir de então, só o Estadão foi censurado, com regalias, no entanto, que outros não tiveram. Podia preencher os espaços cortados pelas tesouras censoriais com versos de Camões e receitas de bolo.
No caso, tratava-se de uma briga em família. O jornal da família Mesquita fora entre todos aquele mais empenhado em solicitar a intervenção militar e já tinha candidato para as eleições que se seguiriam ao fim de uma ditadura de prazo marcado para terminar a limpeza da casa: Carlos Lacerda, o governador de metralhadora em punho.
O resto da turma desta vez discordava, tinha diferente visão do futuro e dos próprios interesses da minoria. Lacerda foi cassado e o Estadão censurado. Tudo acabou em algo mais que presente. Um prêmio: o fim da censura no centésimo aniversário do jornalão, 4 de janeiro de 1975, celebrada com muita pompa e infinda circunstância.
Hoje o Estadão pretende para si o papel de vanguarda da resistência à ditadura, não registro, porém, a súbita convocação de assinaturas para um manifesto contra uma inverdade que não deixa de ser também bobagem curtida em mania de grandeza. Permito-me também chamar a atenção que até um ano atrás os jornalões cuidavam de evitar a palavra ditadura, sapecavam implacavelmente revolução em seu lugar. Ninguém protestou.
Agora a Folha de S.Paulo ofende consciências ao criar um novo vocábulo: ditabranda. Poderia dizer ditamole, soaria melhor aos meus ouvidos. Não sei quais foram os argumentos do editorial, que não li a bem do meu fígado. Talvez sejam os mesmos do remoto jornalista que comparava os números das vítimas das ditaduras do Cone Sul. Como se quem mata 400 não fosse capaz de matar 30 mil.
A Folha esteve com a ditadura, com breve exceção, de 74 a 77, quando, dirigida por Claudio Abramo, manteve digna independência. Mesmo assim, no mesmo período, a empresa de Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira não deixou de publicar diariamente um órgão policial chamado Folha da Tarde, bem como estabeleceu notórias ligações com o DOI-Codi de infame memória, aquele onde foram assassinados Vlado Herzog e Manuel Fiel Filho.
Claudio Abramo pagou por sua ousadia enquanto Frias e Caldeira apostavam na candidatura do general Silvio Frota para ditador da vez, ao terminar a temporada de Ernesto Geisel. Uma crônica de Lourenço Diaféria sobre a espada oxidada do monumento do Duque de Caxias foi o estopim de pressões do Ministério do Exército, exercidas diretamente pelo general Hugo Abreu, cabo eleitoral de Frota. Abramo, e o chefe da sucursal carioca, Alberto Dines, foram afastados dia 17 de setembro de 1977. Precipitadamente. Vinte e cinco dias depois, Geisel demitiria Frota.
O conjunto da obra não é edificante, mas seria injusto sentenciá-lo como pior do que o do resto da chamada grande imprensa. E haveria de ser de outra maneira? A mídia não alcança a ampla maioria dos brasileiros, a não ser por meio de novelas e domingões, e cuida de vender à minoria as conveniências do poder, lá pelas tantas personificado pela ditadura e hoje por uma democracia oligárquica, como define sabiamente Fábio Konder Comparato.
Cria-se o círculo vicioso, e uma mão lava a outra. A política brasileira precisa desta nossa mídia e a premia de todas as formas. E nada muda, quando não avança de marcha à ré. Como diria Raymundo Faoro, o Brasil é um país com as potencialidades de Hércules reduzido à condição de Quasímodo pelo esforço irresponsável, mas consciente, da elite nativa.
O que a mim surpreende e acabrunha não é um editorial da Folha. Aos meus ouvidos soa normal, corriqueiro, natural. Não difere, na essência, de outros editoriais dos jornalões. Quem sabe, seja mais sincero, ou menos hipócrita.
Entendo a repulsa causada em muitos leitores. De modo geral, entretanto, o que me dói é a falta de indignação diante do espetáculo diariamente encenado pela nossa mídia, recheado por preconceitos e mentiras, omissões e equívocos. Sem contar o distanciamento da contemporaneidade do mundo e a lida precária com o vernáculo.
Que aspirantes ao jornalismo busquem emprego onde podem encontrá-lo e tratem de conservá-lo quando o conseguem, isto eu entendo e justifico. Já não logro desculpar o sabujismo desbragado de profissionais experientes, sua capacidade de se converter aos ideais do patrão. E o que mais me indigna é tropeçar tão frequentemente nas páginas dos jornalões nas assinaturas de intelectuais consagrados, muitos deles a alegarem um esquerdismo de boca. Pois é, a leniência é um traço comum na minoria, exercida antes de mais nada em causa própria.
Ao cabo, pergunto aos meus perplexos botões: qual é a diferença entre ditabranda e democracia sem povo?’
TELEVISÃO
A melhor tevê está fora da tevê
‘Daniel Filho diz, com orgulho, que deixou a tevê em 1990.
A julgar pelo atual blockbuster Se Eu Fosse Você 2, a tevê recusa-se a deixar Daniel Filho.
Isso é só uma constatação. Por três décadas, Daniel Filho adestrou-se no ofício das telenovelas, dos telesseriados e dos telemusicais e seria injusto exigir dele agora, ao trocar a escala de sua tela, que viesse a renunciar ao idioma que exercita tão bem. É um karma? É. Ele mesmo se queixa: ‘Até hoje me param na rua pra comentar a novela das 8’. A maldição do plimplim – batizou Daniel Filho. Devia mais é relaxar. Ele é a prova viva, ainda que com um esgar de ironia, de que a tevê pode ser muito melhor fora da tevê.
De mais a mais, a televisão nem sempre é tão feia como a pintam. Ou como o próprio Daniel a retrata. A televisão tem, sim, o compromisso do entretenimento – por pior que isso possa soar. O ibope espreita por trás das câmeras, clamando por audiência, e a audiência é uma flor delicada a exigir, a menos que o programa seja o Big Brother ou os auditórios do SBT, do tipo irremediáveis, certo padrão de qualidade que o Daniel, tanto quanto o Boni, soube impor à Globo de outrora.
Ao se teletransportar para o cinema ele leva sua fome de público, assim como a dupla de atores maduros com a melhor química da tevê. Lá estão Gloria Pires e Tony Ramos nas capas dos tabloides. São ‘os mais amados’, ‘os namoradinhos do Brasil’. Estiveram juntos em Belíssima, de Sílvio de Abreu (ele era o grego Nikos Petrakis, ela, Júlia Assumpção), e em Paraíso Tropical, de Gilberto Braga (o casal grã-fino Antenor e Lúcia Cavalcanti). Desde Spencer Tracy e Katharine Hepburn, não há par feito tão claramente um para o outro.
Tony Ramos é um sutil ator de palco (sua atuação em Cenas de um Casamento, ao lado de Regina Braga, é de antologia), mas não consegue se livrar da fera que ele é na tevê. Mas não se queixa. Daniel Filho, ele sim. Irrita-se e esbraveja quando chamam Se Eu Fosse Você 2. de ‘televisivo’. Um sujeito que dirigiu Dancin’ Days (de Gilberto Braga), e Malu Mulher (com Regina Duarte), tem todo o direito de não querer se identificar com o lixo que hoje prolifera na telinha.
O Fantástico? ‘No gênero bicho, a National Geographic é melhor.’ Jornal Nacional? ‘A internet me conta o que acontece.’ O Big Brother? ‘É um circo humano, gente comendo gente.’ Taí um crítico que conhece aquilo de que fala.’
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