TELEVISÃO
Caçadores de cafonas
‘Do cabelo acaju de Gugu Liberato aos vestidos espalhafatosos de Hebe Camargo – para não falar dos ternos mexicanizados de seu dono, Silvio Santos –, o SBT sempre assumiu sua cafonice com orgulho. Pois é essa emissora que agora vai dar lições de elegância ao cidadão (aliás, cidadã) comum. Versão brasileira de uma produção da rede inglesa BBC (que deu origem a um similar americano exibido no canal pago Discovery Home & Health), o reality show Esquadrão da Moda, que estreou na última terça-feira, submete mulheres de visual desastroso a um banho de estilo.
Indicadas por parentes ou descobertas por olheiros, as vítimas do Esquadrão da Moda são abordadas com estardalhaço, em locais públicos, pelos apresentadores – a modelo paulista Isabella Fiorentino e o estilista pernambucano Arlindo Grund. Uma das mulheres foi chamada num bar, com um megafone, de cafona. Para compensar o mico, anuncia-se que a participante ganhará 10.000 reais para renovar o guarda-roupa. Antes, porém, terá de passar por um ritual depurativo, no qual suas roupas velhas são jogadas no lixo. Isabella e Grund esmeram-se nas comparações ofensivas: já disseram que uma advogada riponga de saião verde parecia uma acelga. E uma corretora que vestia um conjunto amarelão era um ‘quindim ambulante’.
Surgido em 2002, o Esquadrão da Moda original desbravou um filão da TV paga – o das atrações que promovem a redenção dos sem-estilo. O mote é explorado hoje em Guru de Estilo (do Discovery Home & Health), do consultor americano Tim Gunn, e Glamour Superstar (do mesmo canal), do produtor de moda Jay Manuel. Esses programas oferecem esperança a todas as mulheres (afinal, até as acelgas e quindins acabam bem alinhadas) e dão dicas práticas para consumir moda sem gafes. No Esquadrão da Moda do SBT, por exemplo, ensina-se que tecido de oncinha pode ou não ser brega – tudo depende do uso. ‘A participante ideal é a consumidora voraz que entra na melhor loja e só compra itens que lhe caem mal’, diz o diretor Aldrin Mazzei.
Silvio Santos foi convencido a investir no formato por sua filha Daniela Beyruth. A emissora gastou 100.000 reais nos cenários e camarins, que ocupam a locação onde um dia se produziu o Casa dos Artistas. Os dois apresentadores embolsam cerca de 50.000 reais mensais. Isabella tem seus ganhos ampliados, ainda, pela participação em merchandising. Nas gravações, ela e o parceiro se divertem debatendo as melhores formas de alfinetar as participantes do programa. Mas eles retêm o veneno na hora de avaliar os colegas da casa (os consultores entrevistados por VEJA para avaliar o estilo das estrelas do SBT foram mais rigorosos, como se pode ver no quadro da página ao lado). Na semana passada, durante entrevista da dupla em seu programa, Hebe Camargo vestia uma bata preto-e-branco esvoaçante com uma gola colossal. Parecia um poncho indígena. Isabella e Grund acharam Hebe ‘chiquérrima’.’
HISTÓRIA
Abraham Lincoln, escritor
‘Abraham Lincoln, o 16º presidente americano, quase não tem rivais na quantidade de escritos que inspira. Mais de 14 000 livros sobre ele já foram catalogados. Estima-se que apenas Jesus Cristo e o imperador francês Napoleão Bonaparte disponham de bibliografia mais alentada. Em 2009, comemoram-se os 200 anos do nascimento de Lincoln (que morreu assassinado em 1865). Só em fevereiro, mês do bicentenário, cerca de sessenta títulos dedicados à sua memória foram lançados nos Estados Unidos (sem falar nas contínuas referências do novo presidente americano, Barack Obama, ao seu ídolo confesso). Essa ‘segunda vida’ nos livros certamente teria agradado a Lincoln. Ele dava um imenso valor às palavras. Em 1859, ao apresentar uma palestra sobre o tema Descobertas e Invenções, nem sequer mencionou os muitos avanços tecnológicos do momento – do elevador às ceifadeiras mecânicas. Concentrou-se na única invenção, já velha de alguns milênios, que parecia entusiasmá-lo: a escrita. Mas Lincoln não foi somente um leitor das palavras alheias. Um filão de estudos cada vez mais sólido demonstra que, ao lado de suas conquistas na política – a abolição da escravatura nos Estados Unidos e a preservação da unidade nacional em meio à Guerra de Secessão (1861-1865), uma das mais sangrentas guerras civis de que se tem notícia –, ele também realizou um feito extraordinário no plano intelectual. Autor do recém-lançado The Biography of a Writer (A Biografia de um Escritor), o historiador Fred Kaplan resume a idéia: Lincoln foi tanto um brilhante estadista quanto ‘um gênio da linguagem’.
Como todo homem público de sua era, Lincoln tinha de se submeter continuamente ao teste da tribuna. Seu sucesso como orador era apenas relativo. Apesar de muito alto, com 1,93 metro, ele não tinha uma presença sobranceira. Sua face era encovada, seu olhar cinzento, seus gestos desajeitados e a roupa sempre um pouco torta. Para os observadores, faltava-lhe refinamento. Impressão acentuada pelos seus discursos, cuja dicção direta destoava do padrão, cheio de enfeites e condoreirismos, a que estavam acostumadas as audiências. O grande exemplo do descompasso que havia entre Lincoln e a plateia foi o discurso que, em 1863, ele proferiu em Gettysburg – palco de uma batalha cruenta convertido em cemitério para honrar os mortos da Guerra Civil. Seu colega no palanque, Edward Everett, discursou por duas horas. Lincoln falou dois minutos – foi tão breve que o fotógrafo que deveria registrar o momento não teve tempo de armar seu tripé. Nos dias seguintes, alguns jornais reconheceram a força peculiar daquelas duzentas e poucas palavras, que culminam numa definição imortal de democracia (‘um governo do povo, pelo povo, para o povo’). Só muito mais tarde, porém, o pronunciamento seria visto como uma obra-prima estilística.
Quando Lincoln foi eleito presidente, pareceu improvável a muitos que ele fosse capaz de redigir documentos de estado. Sabe-se hoje, contudo, que entre os presidentes americanos só ele traçou, de próprio punho, todos os textos que levam seu nome. Lincoln dispensava até mesmo as sugestões de seus assessores mais próximos. Fazia muito tempo que escrever, para ele, era um exercício cotidiano – e não é por outro motivo que seus textos reunidos preenchem oito gordos volumes (hoje disponíveis na internet). Seu talento literário começou a ser levado a sério em meados do século XX. Um dos primeiros a ressaltá-lo, no fim da década de 50, foi o crítico Jacques Barzun, para quem havia chegado a hora de reconhecer o Lincoln ‘artista, criador de um estilo único na prosa em inglês’. Pouco depois, Edmund Wilson afirmava que, ‘único entre os presidentes americanos, é possível imaginar Lincoln, nascido em circunstâncias diferentes, tornando-se um escritor renomado, e não apenas no campo político’. Nos anos 80, coube ao romancista Gore Vidal insistir que o presidente era um mestre da língua inglesa: ‘A estranha música de suas frases não se parece com a de ninguém mais’.
Recentemente, a análise minuciosa dos escritos de Lincoln ganhou uma nova dimensão. Há volumes inteiramente dedicados a destrinchar cada aliteração ou figura de linguagem de discursos individuais – como o de Gettysburg ou o da segunda posse presidencial. Há também livros que explicam como Lincoln se formou como escritor, lendo, antes de mais nada, a Bíblia na versão inglesa do rei James e as obras de Shakespeare. Lincoln conhecia tão bem peças como Ricardo III e Macbeth que não tinha apenas citações sempre na ponta da língua: com frequência ele repetia, em suas frases, a mesma métrica dos versos shakespearianos.
Nos Estados Unidos, Lincoln pode ser alvo de uma idolatria ingênua. Às vezes é louvado como uma espécie de santo – embora tenha mantido, por muito tempo, uma atitude ambígua em relação à escravidão, o câncer moral de sua época. Aqueles que põem em destaque sua paixão por palavras mostram que a busca pelo termo preciso, pela formulação mais exata nos debates em que se envolveu como político, levou Lincoln a clarificar para si próprio, e depois em textos lapidares, os princípios de uma sociedade democrática ‘dedicada à proposição de que todos os homens são criados iguais’. Depois, em seus discursos de guerra, ele pôs seu talento literário a serviço do futuro – da ideia de que, apesar da carnificina, ‘um renascer da liberdade’ ainda era possível. ‘A habilidade e o compromisso em usar a linguagem de maneira honesta e consistente desapareceram em grande parte de nosso discurso político’, diz Fred Kaplan. A história do Lincoln escritor é um lembrete contra isso.’
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