Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia, jornalismo, política e astronáutica

O recente pedido de passagem para a reserva feito pelo astronauta brasileiro – o tenente-coronel Marcos Pontes – abordado em artigo publicado na semana passada neste Observatório (‘O astronauta e a frustração‘), levantou uma batelada de questões por parte de leitores que, certamente, justifica uma retomada de considerações.

A história toda começou com uma série de matérias publicadas pelo jornal O Estado de S.Paulo, a partir da edição do dia 24 de maio passado, assinada pelos repórteres Lígia Formenti e Herton Escobar. No dia seguinte à primeira das matérias, o próprio Pontes publicou uma longa carta em seu site. Uma cópia dessa carta foi enviada a este Observatório pelo leitor Cid Elias, de Fortaleza, por sugestão de outro leitor, o professor Janio Ferreira, de Vitória (ES). Um terceiro leitor, Nicolau Werneck, de Campinas (SP), enviou link do site.

Comecemos pela carta.

Num texto de quase 600 linhas Pontes fala de ‘aproveitadores do momento’ ao referir-se a críticos de seu vôo e seu pedido de aposentadoria precoce. Aponta ainda quem considera as ‘pessoas corretas’ para serem ouvidas quanto à sua iniciativa e lamenta que muita gente tenha desejado que sua nave ‘explodisse’ no espaço.

Com base na carta-defesa do astronauta não se avança na discussão envolvendo a necessidade de o Brasil ampliar e consolidar seu programa espacial. E esta deve ser a preocupação maior neste momento.

Caricatura grosseira

O programa espacial brasileiro, deflagrado em 1961 pelo presidente Jânio Quadros, não atingiu a maturidade desejável e necessária ao fim de 45 anos – e o vôo de Pontes, imaginado como uma solução capaz de divulgar amplamente o projeto junto à sociedade nacional, ao que tudo indica não produziu estes resultados.

Parte das cartas dos leitores do Observatório reflete exatamente essa frustração, como se não houvesse alternativas à vista. A aposentadoria precoce de Pontes, inegavelmente, contribuiu para este resultado num ambiente de ceticismo e desconfiança política crescentes. Mas atribuir ao astronauta toda a responsabilidade por essa frustração, mesmo em relação a seu pedido de aposentadoria, aos 43 anos, não faz sentido. Aqui talvez seja interessante retomar as palavras do filósofo espanhol Jose Ortega y Gasset, quando fala do ‘homem e suas circunstâncias’.

Pontes foi um astronauta solitário, não o membro de uma equipe de astronautas como ocorre nos países envolvidos com programas espaciais. Como astronauta solitário não teve o apoio necessário – e certamente a compreensão da burocracia – para desenvolver suas tarefas que, sem dúvida, exigem muito em termos psicológicos.

E Pontes foi um astronauta solitário devido a intervenções indevidas do oportunismo político em projetos que não deveriam sofrer essas influências, ao menos na escala em que ocorreu aqui. Pode-se dizer, por exemplo, que a conquista da Lua, nos anos 1960, não passou de uma queda de braços entre os Estados Unidos e a ex-União soviética, no contexto da guerra fria, o que em boa parte é absolutamente verdadeiro.

A decisão – tomada no governo Fernando Henrique Cardoso – de enviar um astronauta ao espaço, no entanto, é uma grosseira caricatura do que se pode entender como intervenções políticas, ou influências políticas, no contexto de um projeto científico-tecnológico.

Resistência crítica

Um leitor (Mario Ramos, engenheiro de Curitiba), queixa-se de que no texto ‘O astronauta e a frustração‘ ‘houve menções a governos passados (até do Jânio!), mas nenhuma ao do PT, que pagou a conta estratosférica’, e pergunta com ar de desconfiança: ‘Por que será?’.

Talvez o engenheiro Ramos seja um desses leitores apressados, que passam os olhos rapidamente sobre um texto e tiram logo suas conclusões. Há, no artigo, uma clara referência ao oportunismo dos líderes políticos brasileiros e o atual presidente certamente não é nenhuma exceção a esta regra quase histórica.

O fato, no entanto, é que, independentemente de oportunismos políticos e de outra natureza, Pontes deveria voar agora. E deveria voar porque a maior parte dos gastos (entre 15 milhões de reais a 20 milhões de reais, segundo dados da Agência Espacial Brasileira) já haviam sido feitos em treinamentos junto à agência espacial norte-americana, a Nasa.

Talvez este seja o exemplo clássico de um tiro que saiu pela culatra. Se FHC não conseguiu mandar um brasileiro para o espaço durante seu governo de oito anos (especialmente pelo último acidente de um ônibus espacial americano). Lula tentou tirar partido desta publicidade e também não teve êxito.

Ou seja, a questão é bastante mais complicada que sugere a versão quase acusativa do leitor.

A mídia brasileira sem dúvida ressente-se de uma série de problemas sistematicamente apontados nas edições deste Observatório. Não pelo prazer da crítica ressentida, mas como contribuição intelectual responsável e profundamente necessária ao bem-estar social, para usar uma expressão mais pragmática.

Estimular a acuidade crítica dos leitores certamente é parte deste processo. Abordagens sumárias e maniqueístas certamente não são promissoras para o debate intelectual mais amplo e profundo, capaz de oferecer respostas mais inteligentes aos desafios que enfrenta um país com as características geopolíticas do Brasil.

Escrita em termos quase pessoais, a carta de Marcos Pontes, referida no início deste texto, de fato mais confunde que ajuda na compreensão das questões mais profundas nos bastidores do programa espacial brasileiro. Em relação aos compromissos internacionais, no entanto, expressa frustração com o não cumprimento de obrigações firmadas na década passada, especialmente a produção de certos subsistemas para a Estação Espacial Internacional (ISS).

Certamente é interessante lembrar que à época em que esses acordos foram firmados houve resistência crítica por parte da comunidade científica brasileira relacionada à exploração espacial. Os custos, à época em torno de 120 milhões de dólares, foram considerados elevados e sem potencial de retorno, mesmo com direito a um astronauta em órbita, a título de compensação.

Jornalismo alienante

Críticas como as que aparecem na carta de Pontes são freqüentes nos meios militares. Mas a verdade é que, de certa forma, este foi um legado dos próprios governos militares. A Transamazônica, para lembrar uma das imagens ufanistas do general Emílio Garrastazu Médici, hoje não passa de um enorme atoleiro, nem sombra da estrada que rasgaria a selva e poderia ser observada da Lua.

O próprio programa espacial sofreu as conseqüências de uma militarização que teve a intenção de fazer do foguete lançador de satélites (o VLS) um míssil capaz de transportar uma ogiva nuclear. O brigadeiro Hugo Piva, um dos pais do VLS que ainda não voou, homem inteligente, simpático e de franqueza absoluta, nunca negou esta intenção.

Que o programa espacial brasileiro deve avançar e consolidar-se é uma perspectiva que não pode ser perdida de vista pela sociedade nacional, sob pena de pagarmos ainda mais caro por este erro de avaliação. Lamentações, acusações e erros não reavaliados para o encontro das soluções desejáveis não ajudam em nada. E, neste sentido, a imprensa brasileira tem sido de uma omissão irresponsável.

Relatos eventuais da mídia referem-se, quase sempre, a questões isoladas envolvendo o programa espacial. Ou a casos de impacto como foi o acidente na base de lançamento em Alcântara (MA), há três anos. Raramente – ao que tudo indica os diretores de redação ainda continuam trabalhando à base de ‘ganchos’, acontecimentos capazes de ‘dizer a que veio’ um ou outro assunto abordado em cada uma das edições – tem-se uma preocupação maior em informar a sociedade sobre programas promissores e o ritmo em que se desenvolvem.

O jornalismo de ganchos é o exemplo mais clássico do que se pode chamar de jornalismo alienante, porque independe da inteligência analítica. Está submetido a um fluxo quase a-histórico dos acontecimentos.