‘A anterior crónica do provedor motivou uma carta de Manuel Pinto (M.P.), professor de Ciências da Comunicação de Universidade do Minho, que suscita questões sobre o exercício deste cargo e sobre a defesa dos princípios do jornalismo, pelo que vale a pena regressar aos temas abordados.
A carta debruça-se sobre duas ocorrências que o provedor analisou mas sobre as quais não emitiu parecer ou recomendação. Uma delas foi a aparente desproporção dada à notícia ‘Auditor interno da EDP sai contra alegada manipulação dos lucros’, manchete de 13 de Março. Observava o provedor: ‘Não deixa de suscitar dúvidas o relevo dado ao tema (…). Mas, sendo a notícia autêntica, trata-se de uma opção legítima do jornal, que apenas importa à relação que este mantém com os seus leitores, os quais podem identificar-se ou não com tal tipo de destaques noticiosos. Disso, contudo, não cuida o provedor.’ Comentaria M.P.: ‘Disso não cuida o provedor?, pergunto eu. Para mim não é nada claro que o destaque dos assuntos não seja matéria do âmbito das competências do provedor. Não será que um jornal pode enviesar profundamente a cobertura da actualidade mediante a enfatização desequilibrada em torno de um determinado assunto? Deverá essa matéria ficar apenas remetida ao gosto ou adesão dos leitores?’
Desde início deixou o provedor claro que não procurava – nem possuía esse direito – condicionar ou interferir na liberdade de escolha do jornal quanto às suas opções noticiosas, a não ser que esteja em causa a violação de um pequeno núcleo de valores essenciais do jornalismo enumerados no Estatuto Editorial do PÚBLICO, como sejam o rigor, a independência, o sensacionalismo ou a ‘exploração mercantil da matéria informativa’. Não foi o que o provedor concluiu do caso vertente. A informação foi apresentada com rigor, que ninguém pôs em causa, e com isenção, ouvindo-se as ‘partes com interesses atendíveis no caso’ (para usar uma expressão do Código Deontológicos dos Jornbalistas Portugueses), e dificilmente se poderá considerar sensacionalista ou mercantilmente oportunista a notícia da demissão do auditor de uma empresa.
O provedor aceita a razão do leitor ao considerar que um jornal (ou qualquer outro órgão de informação) pode distorcer a importância de um tema da actualidade aumentando ou diminuindo o relevo que lhe atribui, mas em regra essa intenção só é detectável ao longo de várias edições, para se concluir se existe ou não um espírito de campanha em volta do assunto em causa. Pontualmente, é difícil ou impossível extrair esse tipo de conclusões, porque os critérios de projecção dada a uma notícia isolada contêm sempre elementos de interpretação subjectiva, quando não são resultantes de factores ocasionais (no caso, pode ter acontecido que o dia tenha sido ‘fraco’ e a redacção não fosse capaz de produzir uma notícia considerada mais importante para manchete). Por conseguinte, mesmo que possa não estar de acordo com a hierarquização de certas informações, o provedor deve ter o cuidado de não exercer qualquer tipo de constrangimento numa competência que o conceito de liberdade de informação atribui integralmente aos jornalistas.
Quanto à sua alusão ao ‘gosto ou adesão dos leitores’, entende o provedor que, mesmo que não faça disso razão de existência, nenhum projecto comunicacional pode alhear-se da receptividade do público – e essa será certamente uma ponderação a ter em conta ao elaborar-se a primeira página de um jornal. Qualquer órgão de informação se compõe de notícias de que o público precisa e de notícias que o público quer. Não procurado esse equilíbrio, pode-se estar a caminhar para a irrelevância ou o olvido, com graves consequências para esse projecto.
A outra ocorrência que o provedor se limitou a constatar consistiu na produção de uma falsa capa do PÚBLICO na edição de 30 de Março, constando de publicidade redigida e arranjada graficamente de modo a parecer-se com as habituais primeiras páginas do jornal. Criticou M.P.: ‘Relativamente à queixa de um outro leitor por o PÚBLICO ter feito uma capa toda de publicidade, criando confusão nos leitores (ainda que assinalando o facto de se tratar de publicidade), conclui o provedor: ‘Perante a actual crise económica e a diminuição do investimento publicitário, julga o provedor que a decisão de aceitar este anúncio terá sido motivada pelo pragmatismo. Uma vez que a crise vai prolongar-se, é melhor os leitores prepararem-se para outras surpresas do género’. O seu comentário não será, ele também, excessivamente ‘pragmático’? Não querendo ser idealista em excesso, temo pela teoria subjacente: a crise autoriza práticas pouco éticas. Como quem diz: ‘Em tempo de guerra não se limpam armas’. Mesmo admitindo que há aqui um terreno ambivalente, em que se confrontam juízos de valor e ponderações de natureza diversa, não seria de esperar de um jornal como o PÚBLICO que, ao menos, falasse connosco, dando conta dos critérios e motivações que estão por detrás da opção tomada? Até por causa da tal segunda parte na norma que cita (‘… que evite confusões ou associações ambíguas à mancha informativa’). De outro modo, o provedor deveria recomendar que se acrescentasse às normas internas do jornal algo como: ‘Esta norma pode ser flexibilizada em tempos de crise económica’.’
Este provedor, tendo já exercido funções de responsabilidade noutros órgãos de imprensa, de que foi forçado a demitir-se ou de que foi mesmo despedido por, em certos momentos, entre o interesse jornalístico e o interesse do respectivo grupo empresarial ou do seu proprietário, ter dado prioridade ao primeiro, não se considera contudo um fundamentalista, muito menos um talibã do jornalismo. Pelo contrário, defende, desde que se preserve o tal núcleo de valores essenciais da actividade, a necessidade do mencionado pragmatismo nas escolhas e orientações a que um órgão de informação deve sujeitar-se, pois muitas muitas vezes pode estar em causa a sua própria viabilidade, e os jornalistas (sobretudo os que têm responsabilidades numa redacção) são também em certa medida gestores, já que administram os seus próprios recursos e distribuem, na tábua rasa posta à sua disposição, a matéria que produzem ou lhes chega às mãos. Podem os jornalistas de um extinto periódico ficarem de bem com a sua consciência por não terem cedido em certos aspectos. E depois? Ganharam eles e o público com isso, se por acaso uma maior flexibilidade em questões não capitais tivesse permitido manter a publicação?
Agora que se comemora Darwin, é bom lembrar que os media também habitam uma ecologia onde só sobrevivem os mais aptos, aqueles que evoluem sabendo adaptar-se às novas condições, extinguindo-se os restantes, muitas vezes por não terem sabido praticar o mesmo jogo de cintura.
A atitude do provedor perante o caso da capa publicitária teve em linha de conta este enquadramento. Estava salvaguardado o princípio que em seu entender não admitia recuo – a devida menção com a palavra ‘Publicidade’ (e cuja obrigatoriedade em idêntica circunstância já há cerca de um ano havia recomendado, perante a sua ausência pura e simples) –, pelo que a questão da eventual confusão gráfica, de carácter mais subjectivo, lhe pareceu secundária. Aliás, já na edição de 10 de Outubro último ocorrera situação semelhante, sem que tivesse suscitado reclamações. E deve também pormenorizar-se que a imagem dessas falsas primeiras páginas não é em tudo similar às autênticas (sendo por exemplo diferentes o tipo e corpo de letra em títulos e textos), pelo que um segundo olhar, mais atento, permitirá dissipar a ambiguidade intencionalmente pretendida pelos publicitários.
A simples menção a tal tipo de situações constitui, já em si, uma chamada de atenção, não julgando o provedor necessário, pela avaliação efectuada nesses casos, ir mais longe. Reservemo-nos para o que é realmente crucial e constitui a matriz da filosofia editorial do PÚBLICO.’