Não foi apenas o presidente que tropeçou na língua e fez a pergunta infeliz ao técnico Carlos Alberto Parreira. O treinador poderia ter apagado o incêndio ali mesmo, mas não se preparou para entrevistar ou ser entrevistado por políticos. Cuidou a vida inteira em qualificar-se para o ofício: treinar times de futebol.
Seu êxito é impressionante. Demonstrou sua competência dirigindo o pequeno Bragantino, fazendo dele campeão nacional. E aceitou o cargo mais importante do que a presidência da República treinando uma seleção que, conquanto de primeira linha no mundo, não ganhava a Copa há 24 anos! Quase matou os brasileiros de susto, apreensão, medo e desespero naquelas aflitas partidas em que ganhávamos apertadíssimo de todo mundo, culminando com a inédita disputa do título em penalidades máximas na partida final com a Itália. Enfim em 1994 o longo jejum foi quebrado.
Em 2006 parece que tudo vai bem. O Brasil tornou-se campeão duas vezes e vice-campeão uma vez nos últimos doze anos. Se perder agora, não será nenhuma desgraça. Mas brasileiro é pródigo em criar problemas onde não existem, não bastassem os tantos que nos azucrinam a existência. Então, o que fazemos? Não há problemas? Não. Então criamos alguns.
E assim os sabidos áulicos do presidente puseram o homem em duas frias na mesma semana. Certamente tudo por uma boa causa: a luta pela reeleição. Primeiro foi a entrevista de tema exclusivo, o futebol. Depois, a conversa virtual com a equipe.
Se Parreira não soube driblar a pergunta presidencial, seu comandado fez a pior jogada: dizer que o presidente gosta de uma cachacinha é a maior restrição que ele faz a Lula? Ronaldo, que não sabe cantar o Hino Nacional, como tantos colegas da seleção, aproveitou antiga brecha para ferir o presidente: a ‘marvada’ pinga. Com efeito, nosso moralismo vai longe e fundo. E não aparece um político sincero para beber um trago em público, como faz entre amigos, e romper de vez o fingimento nacional.
O misterioso Ubirajara
O presidente tem suas limitações, mas um gole não poderia repetir o episódio Larry Rohter, correspondente do New York Times no Brasil, pivô de uma encrenca que poderia ter terminado com sua expulsão, afinal suspensa, por um jornalista estrangeiro ter ousado escrever o que muitos brasileiros diziam. Se houvesse algum áulico sincero entre os conselheiros do presidente, não seria o caso de assinar um decreto que beneficiasse o povo e brindar a assinatura com um golinho de cachaça? Povo adora sinceridade.
Aliás, o que segura Lula nas alturas é que ele passa uma autenticidade raramente vista em nossos maiorais, até quando tropeça em declarações estapafúrdias. Quantos banqueiros se encharcam de uísque depois de mais uma subida nos juros e celebram alegremente a drenagem da economia nacional? Não aparece um jornalista para destacar o porre em primeira página. Ao contrário, fotos e notícias da gente fina e nobre não espelham a vida dessa gente como ela é! Não existe um Pânico na TV nos jornais e nas revistas. E o falecido Pasquim já era!
Quem tropeça não são apenas aqueles que são notícia. Também os que escrevem cometem deslizes que dão indícios de grande desatenção. Quem leu a ‘Ilustrada’ de domingo (Folha de S.Paulo, 11/6) soube que Jaime Monjardim, diretor da novela Páginas da Vida, que sucederá a Belíssima, adquiriu os direitos para o cinema da obra clássica de Erico Verissimo, O Tempo e O Vento.
A coluna ‘Outro Canal’ ia escrevendo muito bem até que o leitor esbarrou no nome dos roteiristas: os escritores Ubirajara (sic) Ruas e Letícia Wierchowski. A segunda é conhecida da televisão por ser autora de A Casa das Sete Mulheres, transformada em minissérie dirigida igualmente por Jaime Monjardim. Mas quem será Ubirajara (sic) Ruas, de quem o redator não cita livro algum, depois de acertar o mais difícil: o sobrenome da escritora?
Noventa milhões
Ubirajara (sic) Ruas é Marcelino Tabajara Gutierrez Ruas, de 64 anos, gaúcho de Uruguaiana, autor de vários romances, vários deles publicados também no exterior desde a estréia. Por viver exilado, estreou nos anos 1970 na Europa, publicando o A Região Submersa (em Portugal, pela editora Bertrand, em 1978; na Dinamarca, em 1979, pela editora Gyldental). É autor estabelecido em nossas letras, só não o conhece quem ignora a literatura brasileira. Por muito menos, o escritor João Ubaldo Ribeiro recusou-se a ir à Feira do Livro de Paraty. E olha que não erraram seu nome desse jeito. Apenas disseram que ele estaria ‘entre outros’, sem citá-lo explicitamente.
Se um jornalista, escrevendo sobre cinema, erra o nome de um escritor-roteirista que já ganhou 14 prêmios em festivais nacionais e internacionais de cinema, como é o caso de Tabajara Ruas, eleito pelo jornal Zero Hora como um dos dez maiores escritores gaúchos, e que teve seu romance Os Varões Assinalados considerado como um dos 30 melhores romances dos últimos 30 anos, que esperaremos da imprensa depois de tantas omissões e ocultamentos, propositais ou não?
Já a revista Mundo Estranho fez belo resumo num número estupendo, anunciando ‘um golaço editorial’. De fato, em apenas 82 páginas delicia o leitor com ‘recordes, curiosidades e fatos pra lá de bizarros’. Tudo certo até que na última página informa que a Alemanha está em segundo lugar no ranking mundial, perdendo apenas para o Brasil, porque ‘herdou os pontos conquistados pela extinta Alemanha Ocidental (sic)’.
Na Folha de segunda-feira (12/6), pág. A 2, o ex-ministro João Sayad, economista, de quem se deve esperar precisão nos números, sai-se com esta: ‘Na Copa de 70, éramos 80 milhões de brasileiros’. Fazia analogias sobre economia e educação. Adiante disse: ‘Gastamos 5% do PIB com juros há 12 anos e não estamos comprando nada. Se os juros internacionais sobem, a taxa de câmbio pula e a inflação volta’.
Poucos leitores poderão entender e, se for o caso, contestá-lo na segunda declaração, mas todo mundo sabe que na Copa de 70 a população brasileira estava 12% acima do que escreveu João Sayad. A menos que Miguel Gustavo tivesse incorrido em erro muito maior em 1970 quando escreveu a celebre marchinha: ‘Noventa milhões em ação/ Pra frente Brasil/ Do meu coração/ Todos juntos vamos/ Pra frente Brasil/ Salve a seleção…’.
Em algum ‘erramos’
A propósito, aliás, a revista Veja, em Veja na Sala de Aula (edição nº 1.958), sugere como o professor pode aproveitar o clima da Copa. E ensina: ‘Em 1970, o general Emílio Garrastazu Médici divergiu do técnico João Saldanha, comunista de carteirinha que havia classificado o Brasil para a Copa do México. Não por coincidência, Zagallo assumiu a vaga de treinador antes do torneio…’.
Dado o excessivo rigor com que é tratado o presidente Lula, se ele trocasse não apenas as bolas, mas a extinta Alemanha Oriental pela Alemanha atual (ex-Ocidental), errasse em dez milhões a população ‘deste país’ e atribuísse a um escritor um nome que não é o dele, a mídia deitaria e rolaria sobre os tropeços presidenciais.
Como os erros foram de jornalistas, provavelmente ficará tudo esclarecido nas próximas edições em algum ‘erramos’ divertido ou notinha em corpo 6, num cantinho qualquer. Afinal, é tradição da imprensa reconhecer erros gigantes em letras miudinhas, espelhando a humildade da vaidade no tributo que paga à modéstia… dos outros.