Vira-e-mexe, a grande mídia brasileira faz algum seminário, nacional ou internacional, sobre liberdade de imprensa. Convidados do Brasil e do exterior vêm falar sobre o tema, enfatizando este ou aquele fato, exemplificando como as liberdades de imprensa podem ser censuradas nas sociedades democráticas. E, quase sempre, o grande algoz, aquele que mais reprime as liberdades, é o Estado. Através dos aparelhos de repressão policial, pressões econômico-financeiras – publicidade estatal, por exemplo – ou até mesmo usando o Judiciário – processos na Justiça etc. –, o Estado é ou tem sido o grande bandido nesta história.
A bem da verdade, o Estado, quando não reprime diretamente, tem seus mecanismos para dificultar ou mesmo impedir que notícias sejam veiculadas. Talvez o maior exemplo desta realidade é a sociedade norte-americana sob a administração Bush. Desde o 11 de setembro que a mídia dos EUA tem sido abjeta, covarde e cínica quanto ao seu papel de informar. Ela é cúmplice de tudo que tem acontecido no país, na medida em que bancou as mentiras que o governo americano criou para invadir e ocupar militarmente o Afeganistão e o Iraque. Manipulou, mentiu, aceitou a censura imposta pelo governo e os militares, tudo sob o argumento da segurança nacional, de combate aos terroristas em qualquer parte do mundo. E pior: são poucos os jornalistas e os veículos nos EUA que aceitam esta situação. A grande maioria ainda hesita em divulgar os fatos como eles acontecem sob o argumento de que chocariam as pessoas. É só ver o que tem sido feito no caso do Irã e as supostas bombas atômicas. O caminho tem sido o mesmo. Mentiras e manipulações, tudo em nome da grande pátria, preparando o país para mais uma guerra.
A matéria ‘Pentágono tem fotos que podem provar massacre em Haditha’, publicadas no jornal Folha de S. Paulo, Caderno Mundo, no dia 9, escrita pelo repórter Sérgio Dávila, mostra muito bem esta situação hipócrita da grande mídia norte-americana.
‘Trinta imagens digitais da morte de 24 civis iraquianos – homens, mulheres e crianças – vistas pelo correspondente no Pentágono da emissora de notícias CNN contradizem a versão dos fuzileiros navais americanos investigados pelo chamado massacre de Haditha, cidade iraquiana a noroeste de Bagdá, em novembro de 2005. Segundo os soldados, eles respondiam a fogo de insurgentes após seu comboio ser atingido por um explosivo que matou um marine. Mas, de acordo com dezenas de relatos obtidos primeiro pela revista ‘Time’ a partir de um vídeo amador feito por um iraquiano e depois por outras organizações jornalísticas, os soldados resolveram vingar a morte do colega, matando os civis, alguns com tiros na nuca e à queima-roupa… As fotos a que o jornalista teve acesso nesta semana teriam sido feitas por um time de inspeção de outro grupo de fuzileiros, que chegou à cidade para registrar a cena do crime.
São provas da investigação para apurar as responsabilidades do ocorrido. O Pentágono confirma a existência das imagens, mas não comenta seu teor nem autoriza sua divulgação, por se tratar de indício de prova de investigação em andamento. Segundo o jornalista Jamie McIntyre, as cenas são ‘grotescas’ e mostram corpos em roupas civis, com números vermelhos marcados na testa. Alguns têm tiros no rosto ou na cabeça. Uma mulher e uma criança, talvez mãe e filha, foram executadas contra uma parede. Outra mulher e criança, na cama. Uma mulher de mais idade teve seu pescoço quebrado, talvez pela força do disparo de um projétil.
Para o Pentágono, a exibição das imagens pode ter o mesmo efeito no mundo árabe do escândalo da tortura de iraquianos por americanos na prisão de Abu Ghraib, que veio à tona em 2004: o de incitar um sentimento antiamericano. Seria, portanto, uma ‘ameaça à segurança nacional’… Mesmo se divulgadas, as imagens poderiam sofrer outro tipo de bloqueio: a autocensura a qual se submete hoje a grande imprensa dos EUA. Fotos de outro massacre de civis, em março, na cidade de Ishaqi, feitas pela agência de notícias France Presse, foram distribuídas a emissoras e publicações, mas virtualmente ignoradas no país. A justificativa foi a de que fotos de alguém morto brutalmente chocariam a audiência. A mesma audiência que via ontem imagens do corpo do terrorista Abu Musab al-Zarqawi.
Enquanto isso, jornalistas americanos que vêm ao patropi a convite da grande mídia brasileira, para falar sobre liberdade de imprensa, usam e abusam da mídia dos EUA como parâmetro de como a imprensa deve se comportar para manter as liberdades. No mínimo é muita hipocrisia querer manter a lenda de que a mídia americana é a campeã das liberdades. Independente da honestidade profissional do jornalista, enquanto a mídia americana continuar na mesma toada, qualquer consideração sobre imprensa livre em qualquer parte do mundo que venha dos EUA precisa ser devidamente peneirada. Enquanto os veículos de imprensa americanos não fizerem profunda autocrítica, a mídia dos EUA é hoje o maior exemplo de imprensa falsa e manipuladora, que antes de divulgar informações faz propaganda. Um triste fim para aqueles que desvendaram o caso Watergate, que resultou na renúncia do presidente Richard Nixon, em agosto de 1974.
Questão de tempo
No entanto, nos seminários sobre liberdade de imprensa no Brasil, muito pouco tem se falado sobre o papel da mídia em relação a si própria. Quase nada é debatido sobre as pressões econômicas que os veículos sofrem das grandes corporações para que determinados assuntos não sejam veiculados. Ou das pressões político-partidárias que originam verdadeiras campanhas contra determinados políticos, partidos e ou governantes. O atual caso brasileiro é bem emblemático. A maior parte da grande mídia do país está em campanha contra o governo Lula. Independente das posições político-ideológico-partidárias de cada um, seja um cidadão ou uma empresa – afinal, todos têm direito à livre manifestação nas sociedades democráticas –, o que tem acontecido é lamentável sob qualquer ponto de vista.
Jornais, TVs, rádios etc. procuram de todos os meios potencializar ao máximo qualquer denúncia contra o governo ou o partido do presidente Lula, o PT, em praticamente tudo o que acontece. Nada escapa à sanha dos jornalistas e dos veículos de imprensa. Sejam verdadeiras ou não as informações, primeiro vem a divulgação e depois, em alguns casos, a verificação da veracidade do fato. Há uma simbiose maléfica para a liberdade de imprensa no Brasil quando a mídia, partidos políticos e empresas privadas passam a fazer proselitismo e campanhas políticas. O que se assiste neste período eleitoral é um acirramento do que vem acontecendo há quase dois anos, desde o escândalo de Waldomiro Diniz. E tudo em nome das liberdades de imprensa e pela democracia. Muita hipocrisia…
É claro que qualquer denúncia tem de ser investigada até o fim. Esse é o principal papel do jornalismo. Reportagem é antes de mais nada uma profunda investigação de um fato. Só assim é possível chegar o mais próximo possível do que aconteceu. E mesmo assim sabendo que muitas coisas não serão desvendadas, dependendo das dificuldades da pauta. Nada é perfeito, afinal. Agora, o mais honesto seria que os veículos da grande imprensa deixassem claras suas preferências político-ideológico-partidárias, que projeto de sociedade defendem etc. Ela, a mídia, pode e deve se manifestar quanto a suas preferências. Por que não? O que impede essa atitude? Muito pior é ficar manipulando grosseiramente as informações, fingindo posição neutra, uma pretensa defesa da liberdade de imprensa, da democracia. O leitor, ouvinte ou telespectador poderia escolher melhor e com mais segurança em quem acreditar e a quem dar crédito. Do jeito que está, fica difícil, cada vez mais difícil, haver credibilidade na imprensa brasileira. E a continuar nessa situação, a exemplo da mídia dos EUA, a imprensa do Brasil ‘vai pro brejo mesmo’, é só questão de tempo.
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Jornalista