CRISE NA IMPRENSA
Google na berlinda
David Drummond, vice-presidente sênior e chefe da divisão legal do Google: ‘Não venho armado. Não disparem contra mim’, disse ele no início de sua palestra no 62º Congresso da Associação Mundial de Jornais e Novos Publishers
Quase três anos atrás, em março de 2007, Bill Gates, então presidente da Microsoft, discursando para uma plateia de executivos e donos de empresas de comunicação na reunião da Sociedade Interamericana de Imprensa, em Cartagena das Índias, na Colômbia, previu um horizonte curto para os jornais impressos. ‘Nos próximos três anos, não mudará muito’, mas a revolução digital já a caminho em poucos anos resultaria, na opinião de Gates, na chegada das informações ao leitor por meio digital e a internet seria não uma ameaça, mas uma importante ferramenta para uso de todos.
Neste início de dezembro, perto de 900 donos e editores de jornais reunidos em Haiderabad, na Índia, para o 62º Congresso da WAN-Ifra, a Associação Mundial de Jornais e Novos Publishers – que representa mais de 18 mil publicações de 3 mil companhias em cerca de 120 países – continuaram a mostrar sua perplexidade diante das rápidas mudanças tecnológicas e sociais que vêm desestruturando seus negócios. Mas suas conclusões não endossam integralmente o futuro previsto por Gates.
O jornal impresso, para um público formador de opinião e disposto a pagar por ele, ainda deve conviver por muitos anos com os serviços noticiosos na internet e ainda deverá ser a principal fonte de receita das empresas jornalísticas. A perda de assinantes e de receita das publicações está sendo atribuída não a um desinteresse dos leitores por notícias e análises de jornalistas que trabalham para empresas de informação conceituadas, mas à perda de controle dos conteúdos produzidos por essas empresas quando seus leitores estão migrando para a internet. Nesse espaço, os jornais veem seus direitos autorais flagrantemente desrespeitados e não conseguem faturar com o uso do material que produziram e aproveitar a chancela de credibilidade que sua marca imprime ao conteúdo, que continua a ser procurado na web.
As informações apuradas pelos jornalistas hoje chegam a um público inimaginável para jornais impressos, mas as receitas de publicidade, embora ainda pouco expressivas na internet, não são apropriadas por quem paga os jornalistas para produzir conteúdos. Sem contar que o impresso também perde receita de circulação, pois quem pagará pelo que pode ser obtido de graça na internet? Pior ainda, as receitas de publicidade devem cair em termos globais.
Os números dizem tudo. Pesquisa da PricewaterhouseCoopers aponta que, de um total de US$ 182 bilhões em publicidade no ano passado, a receita dos jornais no mundo digital foi inferior a US$ 6 bilhões e as previsões para 2013 mostram que elas vão crescer pouco, para não mais que US$ 8,4 bilhões. Como a queda da receita de publicidade dos jornais impressos deve cair a uma taxa de 4,5% ao ano até 2013, a expectativa é que, somadas, as receitas publicitárias do impresso e do digital serão até lá inferiores às de 2008.
Segundo a consultoria de mídia ZenithOptmedia, neste ano, em razão da crise financeira global, os gastos com publicidade no mundo caíram 9,9%. Para os jornais, a receita de publicidade caiu 17% e para as revistas 20%. Mesmo na Ásia, onde os jornais continuam a crescer em número de leitores, o faturamento com anúncios caiu 11%. Nos Estados Unidos, no primeiro trimestre, a redução foi de 29% no segmento de publicações impressas e cerca de 17% nas plataformas digitais.
Contraditoriamente com a expectativa de que a internet mataria os jornais, sua circulação cresceu 1,3% em 2008 e 8,84% nos últimos cinco anos. Mesmo com toda a crise, 34% da população mundial lê um jornal por dia, índice bem maior do que os 24% que usam a internet para se informar. Os números mascaram uma realidade: que a expansão se dá na Ásia. Somados, Índia – hoje o maior mercado do mundo para jornais -, China e Japão respondem por 60% do total de circulação. Em mercados emergentes, a circulação dos jornais continua a aumentar, mas na América do Norte e Europa…
Ganhos de receita só vão para o Google, afirmou Timothy Balding, copresidente da WAN, que já no primeiro painel deu o tom dos debates que se seguiriam nos três dias do congresso em Haiderabad. ‘Apesar das previsões sobre a morte dos jornais, eles continuam a crescer em circulação.’ Ele reconheceu, porém, que as edições impressas progridem em circulação de maneira desigual, com queda nos mercados maduros. Nesses mercados cresce a leitura de jornais em plataformas digitais, o que significa também uma expansão muito maior do número de leitores. Mas a divisão da receita de publicidade está crescentemente privilegiando os que não são geradores de conteúdo. Google e Yahoo se apropriaram de 27% do total da receita, tendo, juntos, 65% do mercado de busca.
O debate sobre os responsáveis por esse cenário avançou com cenas de aparente autocrítica. ‘O Google já foi chamado de vampiro digital, de cleptomaníaco de notícias [e de plagiador e pirata]. Ele está no centro dessa crise da imprensa. Mas a indústria [de jornais] é o principal arquiteto de sua crise. Estamos entregando o nosso trabalho a esses integradores de busca’, disse Les Hinton, presidente da Dow Jones, prosseguindo na cruzada à qual se tem dedicado o controlador da companhia, o empresário australiano Rupert Murdoch. Ele não estava em Haiderabad, mas seu nome foi lembrado muitas vezes para reforçar a crítica ao não pagamento às empresas jornalísticas dos direitos autorais sobre as notícias.
‘Como é possível que a internet tenha oferecido tantas promessas e tão poucos benefícios para a indústria?’, questionou Hinton. A resposta veio também no discurso de vários palestrantes. A indústria deixou que as empresas e em especial agregadores de conteúdo como Google fizessem o discurso da revolucionária democratização da notícia, e ele mesmo se tornasse um gigante graças a um mundo de acesso grátis e de conteúdo obtido gratuitamente. ‘Hoje somos mais virais, mas menos rentáveis. O gratuito é extremamente caro’, afirmou Hinton.
A ideia de que sites na web apoiados em publicidade eram o futuro não passou de ilusão, constatam as empresas jornalísticas. Mesmo o fenômeno de audiência YouTube ‘não atrai publicidade com famílias dando banho em cachorros. O YouTube já está gastando para adquirir vídeos de qualidade. Quanto tempo vai passar até que comece a cobrar de seus seguidores?’, questionou o executivo da Dow Jones. Da mesma forma como o Google deve chegar a essa conclusão, os jornais devem encarar o fato de que a publicidade não será suficiente para pagar as despesas da produção de conteúdo, observou. A saída é cobrar do leitor por conteúdo de qualidade e melhorar também os padrões de impressão, inclusive da tinta – algo em que a indústria dos jornais pouco investiu nos últimos anos. E, claro, cobrar do Google ou obrigá-lo a impedir o acesso grátis ao conteúdo dos jornais.
‘Quero dizer que nós não estamos advogando caridade aqui. Nós, publishers, não queremos que o Google nos permita colher as migalhas que caem de sua mesa. Queremos um posicionamento claro do Google sobre direitos do autor’, defendeu, com veemência, Gavin O´Reilly, presidente da WAN e CEO do Independent News & Media plc, grupo de comunicações de Dublin, na Irlanda, que expandiu seus negócios para Austrália, Índia, Inglaterra, Nova Zelândia e África do Sul. O título do painel era sugestivo: ‘O que fazer sobre o Google? O grande debate’.
‘Não venho armado. Não disparem contra mim.’ Assim o vice-presidente sênior e chefe da divisão legal do Google, David Drummond, iniciou sua participação no painel. Reclamando da agressividade do título do painel, o desenvolto executivo foi bombardeado de todos os lados. E devolveu. ‘Imaginem que estamos em 2015, eu posso ler periódicos, revistas [pela web] e sabem quem eu sou e do que necessito. Alguns artigos serão pagos, outros não… Os anúncios serão dirigidos para aquilo que eu posso pagar… sempre serão editores que vão decidir o que será mantido no Google ou não, o que será controlado ou não… Estamos convencidos de que os jornais são centrais para as democracias e sabemos das dificuldades para eles se rentabilizarem. Nesta semana falaram em vampiro, cleptomaníaco, isso não vai resolver nada, além de ser uma grosseria.’
Seu discurso não comoveu uma plateia que busca luzes para a sobrevivência de seu negócio. ‘Até agora o Google não aceitou discutir [a questão do direito autoral e pagamento], dizendo que o conteúdo grátis gera tráfego. Mas por que tenho que aceitar o modelo de negócio do Google? A qualidade do conteúdo, as notícias e as análises são caras, e para garantir que sigam sendo feitas é preciso um diálogo com o Google sobre direito do autor. É a lei. Espero que o Google comece a entender que isso tem que ser justo para ambas as partes. Não quero massacrar, quero convidar o Google a vir negociar. O que fazer sobre o Google? Fazê-lo aceitar que o direito autoral é importante’, afirmou O´Reilly.
Drummond tentou a paz, observando gentilmente que o conteúdo do jornal é valioso e importante para o Google. Mas quando questionado se não seria justo, já que o conteúdo é importante, que o Google pagasse por ele, que participasse da solução para a mídia, Drummond saiu pela tangente, argumentando: ‘Nós temos que investir muito. O Google não é só notícia, damos, por exemplo, as condições para os jovens colocarem seus vídeos na web’.
Mas que porcentagem das receitas do Google provém das notícias?, questionou alguém da plateia. ‘Muito pouco’, respondeu Drummond. E ouviu a réplica: ‘Mas, se é pouco, por que o Google não nos exclui?’ E mais: ‘O Google vai nos ajudar ou vai nos confrontar em nosso pedido à União Europeia para proteção de conteúdo?’ Drummond ainda tentou argumentar que o mecanismo recém-anunciado First Click Free é um avanço no sentido de garantir a proteção de conteúdo dos jornais.
Mas Dae-Whan Chang, chairman do Maeil Business Newspaper & TV, da Coreia, conclamou os jornais à insubordinação. ‘Na Coreia, o Google só tem 5% do mercado, ante 95% na Holanda.’ Chang preside a Associação dos Jornais Coreanos. Do total da receita publicitária coreana, 73% vai para portais, 27% para jornais e somente 4,7% para Google e Yahoo. Lá, 73 jornais se puseram de acordo para colocar notícias em um mesmo portal, em tempo real. Esse portal, gratuito, tem 62% da receita publicitária. ‘Queremos convencer todos os jornais a criar um portal conjunto na Coreia.’ A ideia é que os jornais sejam eles próprios o agregador de seu conteúdo e explorem as possibilidades de receita da web. ‘Talvez devêssemos criar um portal mundial’, sugeriu.
‘O que não queremos é resolver esse problema com o Google nos tribunais e enriquecer advogados. No momento em que começamos a envolver políticos, juízes e advogados, tudo fica muito confuso’, disse O´Reilly.
Apesar dos ataques, publishers e Google devem caminhar para a negociação. Os jornais porque, com a queda da receita de publicidade prevista para os próximos anos, vão tentar tudo para buscar novas fontes de faturamento. O Google porque a ele não interessa essa ‘guerra’, que pode favorecer a aliança da mídia com seus rivais, como a Microsoft. Nesta semana, o Google anunciou um projeto com ‘The New York Times’ e ‘The Washington Post’. O Living Stories pretende tornar mais fácil a busca de notícias dos dois jornais sobre um mesmo assunto. Só que o Google continua a não pagar os jornais para exibir seu conteúdo.
Célia de Gouvêa Franco, de Haiderabad (Índia)
Jornais sob medida para atender ao gosto do freguês
Para Gavin O´Reilly, presidente da Associação Mundial dos Jornais, a questão-chave da mídia hoje é poder cobrar pela produção de conteúdo seja qual for o veículo em que ele é divulgado, inclusive na internet
Uma experiência heterodoxa de ‘criação’ de jornais individualizados, feitos sob medida para atender ao gosto do freguês, iniciada no mês passado em Berlim, chamou a atenção dos participantes do Fórum dos Editores, realizado em paralelo ao 62º Congresso da WAN-Ifra, a Associação Mundial de Jornais e Novos Publishers, em Haiderabad, na Índia, na primeira semana deste mês. Nos quatro dias do encontro, houve ao menos uma dezena de relatos de projetos diferenciados para se ganhar dinheiro lançados por grupos de comunicação ou jornalistas que se transformaram em ‘empresas de uma pessoa só na internet’, mas a proposta da Niiu tocou corações e mentes por parecer ir ao encontro exatamente do que muitos do setor gostariam de ver acontecer – a perpetuação dos jornais impressos.
A proposta da empresa alemã Niiu, conforme o relato de uma das suas diretoras, Oliwia Serdeczny, nasceu de uma obviedade: todo leitor de jornal segue mais ou menos o mesmo ritual todos os dias, desprezando determinadas seções, artigos ou cadernos inteiros da publicação e dando preferência a outros. Um grupo de jovens empreendedores alemães resolveu apostar na ideia – por que não prover o leitor exatamente do que ele gosta? Com a utilização de um software que permite as escolhas do assinante, a Niiu oferece um jornal, entregue na sua casa, com o conjunto das suas preferências: a cobertura de política de um jornal, a seção de cultura de outro, artigos de determinados analistas e sem o material desprezado, nada sobre esportes ou economia, por exemplo. Com isso, também a publicidade pode ser direcionada para leitores com um certo perfil socioeconômico que mais obedeça às especificidades de um determinado anunciante.
Na República Tcheca, outro grupo, chamado PPF, iniciou, também neste ano, um projeto piloto igualmente inovador, também baseado em um princípio aceito quase universalmente no mundo dos jornalistas – o de que os leitores tendem a se conectar com as publicações que o informam sobre o que lhe está mais próximo. Segundo o depoimento de Roman Gallo, a empresa tcheca criou três semanários e cinco sites para contar as histórias dos habitantes de pequenas cidades. E muito desse material surge da convivência dos moradores das cidades com os jornalistas em um café! A empresa abriu um café no centro de uma cidadezinha como uma forma de seus repórteres tomarem conhecimento dos fatos da rotina dos seus habitantes. A meta é chegar a 2011 com 150 jornais semanais, mil sites e 89 cafés – mais do que a rede McDonald´s tem na República Tcheca.
Essas duas iniciativas são muito recentes para que sejam tiradas conclusões se são, de fato, caminhos viáveis para aumentar o faturamento dos jornais. Outras tentativas de elevar o faturamento da mídia impressa passam pelo uso mais intenso da internet como canal de vendas, com a utilização da marca do jornal para dar credibilidade ao serviço e atrair o consumidor que existe em cada leitor. Um exemplo dessa tendência, citado por Francisco Amaral e Iñaki Palacios, da Cases i Associats, de Barcelona, é o do jornal italiano ‘La Gazzetta dello Sport’, que criou um site especialmente para vender produtos esportivos. Outro caso é o da revista americana ‘People’, que passou a oferecer roupas (vestidos em particular) e acessórios usados por celebridades em festas e eventos, como a premiação do Oscar, já no dia seguinte a essas cerimônias. Ou ainda o ‘Daily Mirror’, da Inglaterra, que passou a oferecer um bingo em um site vinculado ao jornal. ‘A chave para ser bem-sucedido nessas iniciativas é usar a marca do jornal’, disse Amaral, que acredita que, ao usar esses serviços, o leitor se torna mais ‘engajado’.
Em uma linha muito diferente de reação à queda na receita com publicidade e com a venda de exemplares e também redução do prestígio diante da concorrência da internet, especialmente entre o público mais jovem, algumas empresas jornalísticas têm usado ferramentas tecnológicas mais modernas para ajudar na apuração de histórias.
Paul Johnson, do ‘The Guardian’, de Londres, por exemplo, apresentou três reportagens em cuja apuração os jornalistas contaram com a ajuda de blogs e do twitter, que passaram a ser usados para investigar e não apenas como veículos para divulgação de comentários. Nesses casos, a aposta das publicações é que a qualidade e a exclusividade das informações serão atrativos fortes o suficiente para atrair leitores e, portanto, anunciantes em volume suficiente para continuar bancando as despesas dos jornais impressos.
A preocupação da indústria de jornais com a redução no faturamento não é uniforme no mundo, com alguns países em situação muito mais crítica do que outros. Mas, como resumiu Gavin O´Reilly, presidente da WAN, ‘ser capaz de obter um retorno financeiro é essencial para justificar os investimentos em conteúdo – seja em que setor for, jornalismo, educação ou entretenimento -, e isso depende de se poder decidir como o conteúdo é distribuído, usado e pago’. Nos últimos anos, muitos jornais cortaram suas despesas de forma severa como consequência da diminuição das receitas. De forma geral, há menos jornalistas trabalhando em jornais hoje.
Ou como constatou Nick Davies, repórter especial do ‘The Guardian’, em um estudo transformado recentemente em livro. Com a ajuda de estudantes, ele mediu (literalmente) o tamanho dos textos escritos por todos os repórteres dos cinco principais jornais de qualidade da Inglaterra em 1995 e agora. E constatou que hoje cada um escreve três vezes mais do que no passado. Com menos tempo para dedicar à apuração de histórias exclusivas e com mais interpretação, contextualização e análise, os jornais tendem a oferecer um conteúdo mais parecido com o que há nos sites de notícias na internet.
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