Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fim da Primeira Leitura, um recomeço

Os jornalistas Reinaldo Azevedo e Rui Nogueira anunciaram, na segunda-feira (19/6), o encerramento do site e da revista Primeira Leitura. Segundo a informação divulgada em uma nota que permanecerá no site por algum tempo (clique aqui para ler o texto), o PL fecha as portas por falta de suporte financeiro para a sua operação.


A revista Primeira Leitura nasceu em 2000, capitaneada pelo economista e ex-ministro das Comunicações Luiz Carlos Mendonça de Barros. Até a posse de Lula na presidência da República, revista e site faziam críticas ácidas ao que qualificavam de ‘malanismo’ – a política econômica que prevaleceu sem contestações internas no final do governo Fernando Henrique Cardoso, ao qual Mendonça de Barros servira como ministro. Durante a campanha eleitoral de 2002, Primeira Leitura assumiu a preferência pela candidatura de José Serra à presidência da República, mas apresentou discordância com parte da estratégia adotada na campanha. Desde a posse de Lula, site e revista vinham se dedicando a criticar, sempre com eloqüência, o mandato do presidente petista. A violência da crítica, porém, se limitava ao campo das idéias: não foram poucas as vezes que os jornalistas do Primeira Leitura ‘advertiram’ sobre a inteligência de Lula e a precariedade das idéias de muitos dos ‘quadros’ envolvidos na campanha do tucano Geraldo Alckmin.


Em 2004, Mendonça de Barros decidiu deixar o projeto e o Primeira Leitura passou para o comando dos jornalistas Rui Nogueira e Reinaldo Azevedo. Há quem tenha visto nesta mudança o marco de uma guinada do site e revista à direita, com o aprofundamento das críticas ao governo Lula, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e à esquerda em geral.


O jornalista Reinaldo Azevedo esteve desde o início do Primeira Leitura e era a alma do projeto. Católico, conservador e independente, Azevedo chegou a expor publicamente as divergências com o então acionista Mendonça de Barros. Seus textos opinativos, publicados com freqüência quase diária na seção Entenda do site, eram um bom guia não apenas para os conservadores, mas também para esquerdistas curiosos para saber em detalhes os argumentos de seus adversários. Ali também não faltou ‘fogo amigo’ contra o ex-governador e presidenciável Geraldo Alckmin: Azevedo se posicionou favoravelmente à candidatura de José Serra à presidência por julgá-lo mais apto a bater o presidente Lula nas urnas.


Na entrevista a seguir, Azevedo explica por que o Primeira Leitura não conseguiu conquistar, com sua leitura da realidade, corações e mentes (e o dinheiro, naturalmente) de pelo menos uma parcela das elites econômicas que os textos do site e revista visavam defender. Reinaldo também fala, com a franqueza que lhe é peculiar, de jornalismo e política.


***


Em outubro de 2004, o Primeira Leitura anunciou a saída do economista Luiz Carlos Mendonça de Barros do projeto. Desde então, a revista e o site foram comandados por jornalistas – você e o Rui Nogueira. Menos de dois anos após a saída do sócio-capitalista, vocês anunciaram o fim do site e da revista. O que não deu certo? O Mendonça de Barros anteviu os problemas, chegou a advertiu vocês sobre as dificuldades de viabilizar o projeto?


Reinaldo Azevedo – Não teve antevisão nenhuma. O Luiz Carlos iria se dedicar a outras atividades que achou incompatíveis com a manutenção de um site e de uma revista. Nem sabíamos exatamente da viabilidade comercial dos produtos porque, por conta de sua origem – ter participado do governo –, ele preferia não apelar para agências de publicidade e afins. Já imaginou se uma das empresas de telefonia anunciasse em Primeira Leitura quando ele dono [da revista]? Ou alguma outra que tivesse feito negócios com o BNDES? Afinal, o PT já não gostava da revista e do site. E todos sabemos que essa gente, os petistas, é muito correta, muito moralista. Diante da simples suspeita de que alguém possa estar fazendo algo errado, esses caras reagem porque o seu senso de dever e de amor à causa pública é de tal sorte exacerbado que todos temos de ter muito cuidado. Para assuntos como estes, o meu moralista predileto é José Genoino, aquele que disse que ‘uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa’. Não sei se estou conseguindo me fazer entender.


Os números apresentados na nota de despedida que está no site sobre a audiência do Primeira Leitura e sobre tiragem da revista podem ser considerados bastante competitivos. Não ocorreu a vocês algum tipo de reestruturação do projeto para que site e revista não fechassem? Ou fechar apenas a revista e preservar o site?


R.A. – Os números são aqueles e podem ser verificados. O que sempre me deixou emparedado em A Escolha de Sofia, de Styron, é que escolher, mesmo naquela situação-limite, era um gesto imoral, embora pudesse corresponder à ética do mal menor. Não existe ética do mal menor que possa me levar a uma escolha que atinja a minha moral. Primeira Leitura não foi emagrecendo, desaparecendo, dependendo da boa vontade de estranhos, da compreensão do leitor com as nossas dificuldades. Site e revista chegam ao fim inteiros. Foram o que conseguiram ser até o último dia.


Também na nota de despedida, vocês citam a confusão que muita gente faz a respeito do Primeira Leitura ser um veículo tucano e ‘provam’, com o fechamento, que de fato não havia financiamento partidário no projeto. O Primeira Leitura, no entanto, vocaliza o pensamento de uma parcela significativa do próprio PSDB e de outros partidos conservadores. É lícito supor que este pensamento seja ainda hoje majoritário no meio empresarial. Na sua opinião, por que os empresários não se interessam por financiar um veículo que expresse pontos de vista que eles provavelmente gostariam de ver defendidos? Preferem o ‘estilo Veja‘?


R.A. – A sua pergunta traz uma afirmação de que discordo. O PSDB não é um partido conservador. Se fosse, estaria combatendo a agenda estabelecida pelo petismo, como nós, no Primeira Leitura, combatemos. O PSDB pensa alguma coisa sobre cotas? O PT pensa. É favorável. Eu penso: sou contrário. E os tucanos? O PSDB pensa sobre a política econômica exatamente o quê? Talvez, nesse caso, fôssemos um tantinho mais progressistas do que a média do partido. O PSDB pensa o que sobre a Bolsa-Miséria de Lula? Nós pensamos. Quanto aos empresários, não sei o que pensam, se é que têm um pensamento unificado, o que não me parece. Uma parte está satisfeitíssima com a política econômica de Lula. E apóia as revistas que cantam as glórias do petismo. O grande empresário no Brasil chama-se Estado. E alguns preferem não brigar com o gerente: o governo.


No último número de Primeira Leitura há um belíssimo texto de Hugo Estenssoro sobre a trilogia do profeta, de Isaac Deutscher. Talvez o empresariado não se interesse por isso. Ou prefira não comprar a briga que nós compramos sobre o remendo de reforma sindical que o governo Lula quer promover. Uma coisa é certa: havia sinais claros que o poder não gostava da gente. Mas atenção: não veja nisso nada de heróico. Não somos heróis de porcaria nenhuma. Só tínhamos um ponto de vista que não interessava. Há muitos ‘neste país’, como diria o outro, que não se importam de ser chamados de ladrões porque acham que todo mundo é. Mas não suportam ser chamados de totalitários. Aí eles se ofendem. Não entendo exatamente o que você quer dizer com ‘estilo Veja‘. Eu gosto muito da Veja. Se fizesse uma revista semanal, gostaria que ela fosse como a Veja.


Você não acha o jornalismo de Veja simplificador, para dizer o mínimo? Mas voltando à questão inicial e perguntando de outra forma: você acredita que uma publicação mais sofisticada como era a revista Primeira Leitura não tem espaço no mercado editorial brasileiro?


R.A. – Não acho, não. Não como regra. Talvez já tenham simplificado uma coisa ou outra. Em Primeira Leitura já saíram matérias ou comentários que achei ‘simplificados’ ou simplistas. Eu poderia lhe dizer que acho ‘simplificar’ a questão dizer que a Veja faz jornalismo simplificador… E isso me remete, sem jamais abandonar a primeira parte da pergunta, à segunda: revistas têm seu público. Você acha mesmo que, se eu fosse o diretor de Redação da Veja, daria três páginas para uma reedição do ‘Triologia do Profeta’, sobre a vida de Trotsky? Muito provavelmente, não. Quantos dos, sei lá, quase 5 milhões de leitores de Veja se interessam pelo assunto? Talvez aqueles pouco mais de 30 mil que liam Primeira Leitura. Estamos falando, atenção, de 0,6% do leitorado de Veja. Então, é natural que a receita de uma revista semanal e a atenção a certos temas sejam diferentes dos de uma pequena revista mensal voltada para política, teoria política e macroeconomia. Ora, se eu vendia, numa tiragem de 25 mil exemplares, 18 mil revistas, isso me faz supor que havia e que há público para revistas mais ‘sofisticadas’, como você diz. Se um site que não falava uma linguagem exatamente muito fácil tinha mais de 2 milhões de page views, isso me faz supor que exista o público. Mas não basta isso, não é? É preciso também que essa revista e que esse site possam se financiar no mercado. Não serei eu a pedir a ‘Embrarevistas’ ou a ‘Revistabras’ para que os pobres financiem as minhas tiradas inteligentes… Deixo isso para a Petrobras fazer com os cineastas, que não sabem se amam mais o povo ou os patrocínios.


Há espaço e público para revistas diferenciadas? Acho que sim. Mas é óbvio que ninguém anuncia numa revista de 25 mil exemplares para vender mais carros, mais relógios ou conquistar mais clientes para o seu banco. O máximo a que se pode aspirar é associar a marca a um produto com reputação de ser inteligente, sofisticado etc. Ocorre que a patrulha de esquerda fez o seu trabalho direitinho: pespegou a pecha de ‘direitista’ na revista. Em tempos politicamente corretos, isso gera receio. Afinal, todo mundo no Brasil é progressista, não é mesmo? O sujeito pode estar mamando nas tetas do governo ou lucrando na ciranda financeira, mas é claro que é muito melhor gastar dinheiro com uma ONG que faz cafetinagem de pobre a anunciar numa revista que chama as coisas pelo nome.


Só um registro: pode ser também que os publicitários achassem a revista uma merda. Pronto! A chance de que boa parte deles não entendesse o que lia não é pequena. E pode ser, finalmente, que a revista fosse, de fato, uma merda, cultuada por alguns leitores que não eram assim intelectualmente tão exigentes quanto os de publicações de esquerda que vivem recheados de anúncios de estatal e de gigantes da empresa privada. É uma pena eu não acreditar em reencarnação: gostaria de voltar, numa próxima vida, esquerdista, bom, bacana e generoso. Com essas qualidades, obviamente, eu me tornaria, em breve, também muito rico. Dedicaria minha vida a fazer caridade com adjetivos subsidiados pelas estatais.


E arremato com Veja: discordo de muitas opções que eles fazem. Mas já discordei também de Eça de Queiroz, Machado de Assis, Bento 16 e de Tati Quebra-Barraco. E concordo com muita coisa. O inegável é que a revista assumiu uma posição corajosa no que diz respeito a estes tempos. E foi bastante ousada, sem temer seu leitorado. É o caso da posição assumida no plebiscito sobre a proibição da venda de armas legais. Eu também defendi o ‘Não’ em Primeira Leitura. Mas é preciso ter muito mais peito e coragem para defender o ‘Não’ em Veja, especialmente porque, à época, as pesquisas de opinião indicavam ampla vantagem do ‘Sim’. Especialmente porque, à época, todos os bacanas que gostavam de Chico Buarque, comida japonesa e feng shui eram a favor da paz votavam ‘Sim’.


Sendo Estado e o governo o que são, é certo que, como negócio, a revista mais perdeu dinheiro do que ganhou assumindo a postura que assumiu em relação ao governo Lula. Que não foi, não, de oposição sistemática. A partir da quebra do sigilo do caseiro [Francenildo Santos Costa], acho que a revista decidiu que havia o suportável e o insuportável numa democracia. Não é um fato desprezível o principal veículo do país estabelecer uma linha e dizer: ‘Não vamos transigir com isso’. É uma grande revista, e isso não é um pedido de emprego. Quando e se precisar, pedirei pessoalmente.


O Primeira Leitura existia desde 2000 – metade deste tempo foi durante o segundo mandato de Fernando Henrique e a outra metade sob Lula. Houve alguma diferença entre os dois governos do ponto de vista de anúncios estatais para a revista e/ou site? E em relação aos governos estaduais, como foi a relação comercial com a PL?


R.A. – Não corremos atrás de anúncio nos anos FHC pelos motivos já expostos. Nos anos Lula, as estatais muito raramente anunciaram, contam-se nos dedos. Tivemos anúncios do governo de Minas, do PSDB; de Pernambuco, do PMDB, do governo do Distrito Federal, também do PMDB. E da Nossa Caixa. Todos eles conquistados em agência. Estes últimos geraram polêmica. Como se um site com 2 milhões de page views e uma revista com 25 mil exemplares não pudessem comportá-los. A própria agência, a Full Jazz, já veio a público para dizer que fomos uma indicação dela, agência, para o cliente.


Esta questão da Nossa Caixa provocou uma polêmica grande, com direito à reportagem na Folha de S.Paulo, um jornal em que você já trabalhou. Tendo em vista a sua experiência nesses últimos seis anos em um veículo ‘alternativo’, que avaliação faz do jornalismo praticado pela chamada grande imprensa hoje no Brasil?


R.A. – Na verdade, faz 10 anos que estou em veículos que não pertencem às grandes empresas de comunicação: desde 1996, quando pedi demissão da Sucursal de Brasília da Folha para integrar, em São Paulo, a equipe que fez a revista República e, no ano seguinte, a Bravo! – hoje na Abril –, ambas da Editora D´Avila. São dez anos, não seis. Eu rejeito o ‘alternativo’ para o que eu fazia. O termo está excessivamente ligado à imprensa de esquerda, que eu nunca fiz. Eu adoraria ser de esquerda porque é muito mais bacana, e isso logo lhe confere uma espécie de distinção moral. Mas eu não sou… E os ‘alternativos’ costumam achar que viram o periquito verde da verdade. Eu não vi. Em muitos aspectos, o jornalismo que eu fazia seria establishment se Dona Zelite existisse. Mas Dona Zelite, coitada, ou deve para o Banco do Brasil ou está mendigando dinheirinho subsidiado no BNDES e faz tudo o que Lula mandar.


Acho o jornalismo praticado pela chamada grande imprensa, na média, bom. Excessivamente petista, é verdade. Ou, mais genérico do que petista: ele é, no geral, esquerdista. Um esquerdismo soft, meio burraldo, desinformado, sem leitura, meio cretino ideologicamente. Mas há uma saudável cultura comprometida com o princípio de publicar o que se tem. Trabalhei na Folha em duas oportunidades: entre 1992 e 1996, com uma interrupção de sete meses entre os extremos. Na editoria de Política. Jamais, nem de forma velada ou oblíqua, houve qualquer interferência da direção de Redação ou da Secretaria para mudar o viés dessa ou daquela reportagem. No tempo em que fiquei ali, nunca um repórter com uma boa história deixou de publicar o que tinha apurado. Se tivesse acontecido, saberia. Era editor adjunto de Política e depois fui coordenador de Política da Sucursal de Brasília.


A esquerda sempre fantasiou essa história de manipulação. E isso continua a ser dito nas escolas de jornalismo para os coitadinhos que estão lá estudando. Geralmente sai da boca de gente que jamais pisou numa redação e que seria incapaz de fazer um lead ou um texto no tempo em que a indústria exige. Isso não lhe tira autoridade acadêmica, é claro. Mas não pode pontificar sobre como é uma redação. É óbvio que existem chefes idiotas em todos os lugares. Mas também existem subordinados idiotas. O mal da grande imprensa está menos no eventual adernamento ideológico dos chefes (ou dos donos dos jornais e revistas) do que no dos jornalistas.


Dou um exemplo para estimular a polêmica: bastaria fazer um levantamento e se constataria que a maioria dos coleguinhas defende distribuição de seringas gratuitas e esterilizadas para viciados, dentro da política de redução de danos (nome politicamente correto), mas acha um absurdo que alguém do Opus Dei, ou qualquer outra corrente religiosa, possa usar, por vontade própria, o cilício. Acho, por exemplo, absurdo que se possa ser a favor da pena de morte, mas contra o aborto. Sou contrário a ambos. A larga maioria das pessoas contrárias à pena de morte, não obstante, chama o abordo de ‘direito’. Não deixo de invejá-las. Também eu queria ter a certeza que elas têm sobre quando começa a vida. Há uma cultura da militância burra por aí. Há uma espécie de lista do que é e do que não é permitido pensar. Huuummm, pensando bem, acho que a gente era mesmo um tanto alternativo, não? Uma das poucas alternativas à vulgaridade.


Em alguns artigos você criticava bastante a mídia e os colunistas que considera chapa-branca. O ex-presidente Fernando Henrique sempre teve boa relação com os barões da imprensa brasileira, ao passo que Lula é pessoalmente brigado com um deles e desprezado pela maioria dos demais. Você acha que a imprensa brasileira trata Lula melhor do que tratava FHC?


R.A. – A questão nem é de achar. Os barões da imprensa brasileira não escrevem nos seus veículos. Os colunistas, sim. Assim como acredito que você não é um pau-mandado, acho que os outros também não são. Não sei se empreguei, alguma vez, ‘jornalismo chapa-branca’. Se o fiz, acho a expressão imprecisa para designar o que aconteceu. Sim, existe o chapa-branca, o governista por opção, definição e escolha, que será sempre governista, mas é residual. No caso do PT, a questão é mais complexa: é de alinhamento com o partido. Basta ler o noticiário pré-mensalão ou pré-Waldomiro. A crítica havia sumido ou, claro, era feita pelo viés da esquerda: havia a turma que queria Lula ‘cumprindo’ suas promessas. Ainda bem que não cumpriu. Antes um bravateiro do que um maluco. O PT já havia proposto coisas gravíssimas, como considerar sessões do finado Conselhão como se fossem sessões do Congresso, para impor um rito sumário às reformas. E houve quem apoiasse. Afinal, diziam, era a modernidade. A nossa abordagem, como sabe, sempre foi outra. O principal conteúdo do PT está, de fato, na forma como ele entende a política. Não é uma doutrina, um conjunto de valores. Trata-se de um projeto de poder que institui o presente eterno e elimina a memória e a história, a sua e a dos outros.


Vamos a FHC. No começo, houve certo deslumbramento por seu aporte intelectual, seu charme pessoal, por causa do controle da inflação etc. Mas acabou bem cedo a adesão, e ele ficou entregue a essa sanha politicamente correta. O fato de ser intelectual passou, de ativo político, a defeito. Começaram a tachá-lo de cínico. Depois veio aquele misto de bobagem e mentira do ‘esqueçam o que escrevi’. Quem sustenta que ele disse aquilo já leu o que ele escreveu? É claro que não. Esquecer por quê? Sua atuação foi absolutamente coerente com a sua versão, dentre outras, da teoria da dependência. Basta ler Dependência e Desenvolvimento na América Latina. Claro, já se passaram 40 anos, muita coisa mudou. Se FHC tivesse escrito O Colapso do Populismo, do Octavio Ianni, aí, sim, era o caso de ele pedir que esquecessem. Mas não. Ambos foram coerentes. FHC foi presidente do Brasil e inseriu o país no capitalismo contemporâneo, fato de que Lula se beneficia, e Ianni morreu chamando de ‘revolucionário’ o terrorismo islâmico.


Já derivei. Volto: FHC começou a ser tratado com ressentimento porque era um intelectual. Acusava-se a sua vaidade. Bem, nunca o vi ser rude com um subordinado ou um colega. Quem poderia dizer o mesmo de Lula? Será que até a lhaneza no trato e o bom humor de FHC devem ser postos na conta de sua suposta arrogância? Imagino como ele não teria sido tratado se um caso como este do mensalão tivesse explodido em seu governo. Apanhou mais do que Lula por conta do Caso Eduardo Jorge, que nunca existiu. Foi uma invenção de um celerado. Sim, a mídia foi, comparativamente, muito mais dura com FHC do que é com Lula. E a razão é ideológica e psicológica. Ideológica porque se julgava que FHC tinha ido para a ‘direita’ por opção – já Lula, coitadinho, foi forçado… E é psicológica também porque se imagina, de forma preconceituosa, que Lula é mais mixuruca do que o antecessor. E os jornalistas, você sabe, são seres para os quais a Justiça vem em primeiro lugar, nem que seja aquela que eles fazem no teclado. É um traço nosso: adoramos torcer para aqueles que julgamos mais fracos até em Copa do Mundo. Se os EUA jogarem contra o time de qualquer ditadura africana, é claro que a maioria vai torcer para a ditadura africana…


O e-Agora, site mantido por quadros do PSDB ou ligados ao partido, vive hoje um processo de ‘desidratação’ e foi praticamente abandonado por seus idealizadores. Você acha que a pouca competitividade da candidatura de Geraldo Alckmin até aqui pode ter provocado um desânimo e/ou resignação não apenas na militância antilulista, mas também no empresariado que poderia se interessar por financiar veículos críticos da gestão petista?


R.A. – O que acho é que a pergunta cria, no contexto, uma vinculação entre o que você chama de ‘desidratação’ do e-Agora e o fim de Primeira Leitura. Não há. Não sei os problemas que eles enfrentam. Parece-me que nascem de divergências políticas, intelectuais, com corte talvez até ideológico. Ora, tudo indica que o PSDB vai governar ao menos Minas e São Paulo. É um PIB e tanto, não? Acho que a perspectiva de poder, se estivéssemos dispostos a ser porta-vozes, talvez nos fosse favorável. Mas nada nos foi oferecido nem nós pedimos nada. Acho que mais o PSDB se incomoda em ser associado ao Primeira Leitura do que o contrário: nós nunca demos a menor bola para isso. Se fosse levar a sério todas as vezes em que fui chamado de tucano, direitista, reacionário ou sei lá o quê, não faria outra coisa a não ser responder. Agora eu me importo, sim, se me chamarem de ladrão. Mas há quem, ‘neste país’, ache isso tudo normal. Ainda sobre o PSDB, o teste é muito fácil: se alguém chamar um tucano de direitista, ele reage, bravo. E tentará provar que não é. Se alguém me chamar de direitista, acho que pode ser o princípio de uma boa conversa se o sujeito não for um botocudo. E não tentarei provar que não sou porque não dependo da boa vontade de ninguém para pensar o que penso.


Quantos jornalistas trabalhavam no Primeira Leitura nesta fase final? Qual foi a reação deles ao saber da decisão pelo fechamento?


R.A. – Não houve fase final. Jornalistas, incluindo eu e Rui Nogueira, éramos 13 pessoas, fora os colaboradores e correspondentes no exterior. E havia mais 9 pessoas entre área técnica do site e da revista e administrativa.


Na carta de despedida, ficou prometido para breve a sua estréia na chamada blogosfera. Quando é que o blog entra na rede? E qual é a sua expectativa para esta nova mídia? Você terá algum suporte técnico e equipe ou vai ‘blogar’ sozinho mesmo?


R.A. – Ainda não sei. Preciso ver direito o que quero fazer e como. Estou colaborando com artigos para O Globo e o Estado de S.Paulo. Vamos ver que cara dou ao blog. Certamente falarei especialmente de política, mas também sobre outros assuntos, literatura, cinema, cultura, áreas sobre os quais escrevia com certa regularidade. Em princípio, será coisa minha mesmo. Blogs pessoais valem pelo enfoque e pelo texto, quero crer. Se você quer saber o que está acontecendo, minuto a minuto, já conta com muitos serviços. Afinal, não dá para concorrer nessa área com Estadão, Folha, Globo. Há excelentes serviços de sites de jornais estrangeiros gratuitos. Ou o blog tem uma personalidade e exercita um estilo, traz um aporte novo para o leitor, derivado da formação intelectual do blogueiro, ou não serve para nada. É o que todos fazíamos em Primeira Leitura. É o que continuarei a fazer no blog.