VENEZUELA
Tarja vermelha
‘A destruição da Venezuela é um projeto que tem consumido todas as energias de Hugo Chávez e seu plano de poder nacional-populista. Reconheça-se que, infelizmente, ele tem sido bem-sucedido. A economia foi à lona com nacionalizações e congelamento de preços. O Judiciário foi completamente engolido. Persistentemente minados, todos os organismos de estado seguiram o mesmo rumo. A liberdade de imprensa já é item em extinção. Em 2007, Chávez retirou arbitrariamente do ar o canal mais popular do país, a RCTV, pelo crime de não adesão. A RCTV migrou para a televisão por assinatura para manter uma pequena fresta na couraça do autoritarismo. Mas sua morte estava anunciada e, na semana passada, Chávez calou, por fim, a voz incômoda. Outros cinco canais semelhantes tiveram o mesmo castigo (e três, depois, cederam), sob o patético pretexto de não transmitirem os discursos incansavelmente proferidos por ele, El Supremo. Para quem ignora os mecanismos da lógica totalitária, perseguir canais a cabo, de alcance limitado, soa como capricho tolo, que só serve para esgarçar os fiapos de democracia que ainda pairam em torno do chavismo e provocar inevitáveis protestos – desta vez, houve duas mortes de estudantes universitários, um antichavista e outro pró. Chávez, ao contrário, conhece muito bem como funcionam as coisas no universo dos caudilhos: tem de mostrar que manda em tudo, o tempo todo, que faz brilhar o sol e faz chover.Embora, ultimamente, o assunto chuva seja delicado.
Se a atual estiagem continuar, o setor elétrico da Venezuela caminhará para o colapso total. Os venezuelanos já sofrem com apagões constantes e podem literalmente mergulhar nas trevas. Preocupado em ajudar países camaradas como Bolívia, Cuba e Nicarágua, o governo Chávez não investiu em novas usinas hidrelétricas e termelétricas. Além disso, todas as companhias de eletricidade que caíram sob a praga da gestão chavista tiveram queda na produção por falta de manutenção, corrupção e aumento escandaloso do número de funcionários. As falhas internas do setor elétrico eclodiram com a repetição do fenômeno climático El Niño, que secou as represas. Se não chover até maio, a hidrelétrica de Guri, que responde por 60% da geração nacional, precisará desligar as turbinas. No pior cenário, o país poderá ter eletricidade dia sim, dia não. Tripudiando sobre as dificuldades da população, Chávez propôs o ‘banho socialista’ de três minutos e prometeu contratar cientistas cubanos para bombardear as nuvens e fazer chover nos lagos das hidrelétricas. ‘Vou lá de avião e, se uma nuvem me atravessar o caminho, eu lanço um raio nela!’, bradou com o habitual histrionismo. Até agora, não produziu nem garoa.
Outra nuvem no horizonte do chavismo é a eleição para a Assembleia Nacional, marcada para setembro. Desde 2005, quando a oposição se absteve das eleições legislativas em protesto pelos abusos, os representantes do povo se limitam a aplaudir as loucuras de Chávez. Agora, no entanto, pesquisas mostram que apenas um em cada três venezuelanos pretende votar em um candidato indicado pelo presidente. A máquina assistencialista vai ter de esquentar. Com a desvalorização da moeda nacional, no início do ano, ela ganhou fôlego. Mas a manobra também deve empurrar a inflação para perto dos 40% e diminuir o poder aquisitivo da população em 12% neste ano. ‘Antes disso, ainda tínhamos a esperança de que um aumento no preço do petróleo ou uma redução nos gastos do governo pudesse resolver a crise’, disse a VEJA o economista Asdrubal Oliveros, diretor da consultoria econômica Ecoanalítica, em Caracas. ‘Agora, não vemos mais como a economia possa se recuperar.’’
TECNOLOGIA
O fenômeno Avatar
‘Na segunda-feira, quando as salas de cinema estiverem terminando de computar a frequência do fim de semana, a única dúvida do estúdio Fox será: com que margem Avatar, de James Cameron, ultrapassou a marca dos 2 bilhões de dólares na bilheteria mundial? Que será o primeiro filme da história a fazê-lo, é certo. Na quinta-feira, havia fechado as contas com o total de 1,9 bilhão, em preparação para seu sétimo fim de semana consecutivo como o filme mais popular em cartaz. Um único outro título conseguira até hoje reunir recordes tão impressionantes: Titanic, também de Cameron, que foi a primeira produção a cruzar a marca do 1 bilhão de renda e, durante doze anos, deteve o posto de campeão absoluto, com a soma final de 1,843 bilhão. Essa, Avatar ultrapassou na segunda-feira 25, com a mesma facilidade com que o corredor jamaicano Usain Bolt rompe as linhas de chegada e deixa para trás, na poeira, adversários que até seu advento tinham todo o direito de se considerar quase que super-homens. Como Bolt, Avatar é um velocista de uma categoria até aqui inédita. Levou dezessete dias para alcançar um recorde que, a Titanic, tomara três meses. Em mais 22 dias, acumulou a diferença que o separava do campeão. Com discrição supersticiosa, os executivos da Fox não especulam sobre o número final com que Avatar vai subir ao pódio. Alguns observadores arriscam a cifra de 2,5 bilhões de dólares. Mas, em vista do ritmo com que ele atrai pagantes aos cinemas – até aqui, amealha a média diária de 45 milhões -, essa pode ser uma estimativa conservadora.
O que faz um filme ir tão completamente ao encontro das expectativas do público é um segredo cuja chave Hollywood pagaria qualquer preço para possuir. Às vezes ela cai em suas mãos e resulta em ícones culturais (e contábeis), como …E o Vento Levou, E.T. – O Extraterrestre e a série Star Wars. Mas quase sempre ela se perde de novo: nada é mais difícil do que replicar um sucesso aproveitando-se de sua fórmula. Até porque ‘fórmula’ é uma palavra que se deve usar com reservas. Chumbo não pode ser transformado em ouro, como queriam os alquimistas e desejam os imitadores contumazes que podem ser encontrados em qualquer estúdio de cinema. O que os grandes fenômenos de Hollywood, entre eles os filmes de James Cameron, mostram é que só ouro vira mais ouro. Não apenas no sentido do dinheiro farto para produzir um enredo com todo requinte técnico disponível. As substâncias preciosas que deflagram essa reação química entre público e filme são de outra ordem: criatividade, talento no narrar de uma história e a habilidade para captar os impulsos que afetam uma sociedade em certo instante e traduzi-los na forma de imagens, personagens e tramas. Esse é um dom raro. Ele está para a criação artística assim como está para a química o unobtainium (palavra que é brincadeira corrente entre aficionados da ciência e significa ‘o que não pode ser obtido’), o minério singular que os seres humanos garimpam na lua Pandora, cenário de Avatar.
Cameron iniciou sua carreira com uma produção barata, que imediatamente se integrou à cultura pop graças a esse dom – O Exterminador do Futuro, uma cristalização das angústias então ainda vagas provocadas pela escalada tecnológica e bélica que marcou a década de 80. Desdobrou o tema com estrondo comparável em Aliens – O Resgate e em O Exterminador do Futuro 2. Tomou um tombo com O Segredo do Abismo, um filme instigante, mas que poucos apreciaram. E depurou esse seu talento até um ponto que parecia ser insuperável com Titanic, uma explosão de grandiosidade e romantismo numa Hollywood que andava, em fins dos anos 90, apequenada e exaurida. Em número de ingressos vendidos, Avatar ainda está longe de Titanic – não só o preço real do bilhete aumentou desde então, como os ingressos para as sessões 3D são mais caros, e é deles que vem a maior parte da arrecadação de Avatar. Mas o unobtainium da sintonia com a plateia está lá, cintilando nos recordes que ele vem quebrando.
Avatar tem um componente primordial de interesse para o público contemporâneo: a inovação tecnológica, expressa aqui em um salto substancial na aplicação do formato 3D, que o diretor usa não como truque, mas como recurso de imersão no mundo de Pandora. Essa experiência sensorial sem paralelo responde por muito do apelo do filme. Mas, se ele resiste ao esgotamento do aspecto novidadeiro e se mantém firme em sua ascensão, é porque o que Avatar tem a dizer ressoa junto ao espectador. O filme tem uma mensagem ecológica que, claro, está em voga. Prega-a com simplismo irritante: o povo nativo de Pandora, os Na’vi, pertence à natureza e é parte dela (inclusive, liga-se a ela por meio das estranhas fibras de suas tranças, o que rende um punhado de cenas meio embaraçosas). Isso, diz o filme, é certo. Errado é violar essa relação telúrica com propósitos comerciais, como faz a corporação industrial-militar que extrai minério em Pandora.
É inegável, contudo, que Cameron faz a plateia – inclusive a parte dela que se irrita com seu ecossentimentalismo – amar Pandora e desejar estar lá, como seu protagonista, o ex-marine paraplégico Jake Sully (Sam Worthington), que, quando ocupa seu avatar, pode correr livre por cenários de beleza estupefaciente. O diretor, um narrador habilíssimo, leva quem vê essas paisagens a sentir a embriaguez de Jake. Ele é, em muitos sentidos, o avatar do espectador em outro mundo.
Cameron é um aficionado da ciência que detesta ser pego em erros. Em Avatar, cercou-se de especialistas em áreas tão diversas quanto a linguística, a botânica e a astrofísica para que o mundo de Pandora, ainda que fantasioso, fosse hipoteticamente possível. Muitos dos aspectos do roteiro que podem parecer invenção pura têm na verdade sólidos fundamentos científicos (veja as explicações nos quadros que acompanham esta reportagem). Não por acaso, o diretor é simpático aos personagens que têm ligação com a ciência, como a botânica interpretada por Sigourney Weaver. Mas Cameron é um entusiasta também da tecnologia, e não só da que serve ao cinema. Já foi consultor da Nasa em projetos de exploração de Marte. Pode-se deduzir, portanto, que não é contrário à presença humana em mundos intocados. Alguns deles, os das profundezas dos oceanos, já visitou várias vezes. Em Avatar, entretanto, tudo o que seja associado à tecnologia é carregado de negatividade (um traço que está no cerne também de O Exterminador do Futuro e Titanic). Existe aí um paradoxo. Cameron, que vai a extremos em tudo o que faz, é um apaixonado pela natureza e um obcecado pelo aprimoramento tecnológico. É, assim, também ele um avatar de qualquer um de nós, desejosos de todo avanço e ao mesmo tempo nostálgicos de uma natureza que, nessa corrida, tratamos de massacrar. O cineasta, enfim, é um homem cindido por uma contradição – mas ela é a contradição essencial do seu tempo. Por isso tantas pessoas sentem que ele lhes fala de perto, e pagam para ver o som, a fúria e a beleza que ele sabe criar.’
André Petry, de São Francisco
A nova mágica de Jobs
‘Os rumores começaram há dois anos. Criadora das mais fabulosas inovações tecnológicas recentes, a Apple estaria desenvolvendo um novo produto digital revolucionário. Primeiro, as especulações sobre a novidade tomaram os sites e os blogs de aficionados de tecnologia. Depois, transbordaram para todos os meios de comunicação, do Financial Times à CNN, do Wall Street Journal ao USA Today. No último mês, atingiram um ritmo selvagem. Seria um tablet, aparelho portátil maior do que um celular mas menor do que um netbook e perfeito para leitura de livros e jornais? Terá tela futurista de Oled (sigla em inglês para diodo orgânico emissor de luz), garantia um especialista. Poderá ser recarregado por um emissor de eletricidade sem fio, especulava outro. Vai sair com um sistema operacional inteiramente reescrito para ele, assegurava um terceiro. Como se chamaria? TabletMac, iSlate, iPad? Custaria 600 ou 1 000 dólares? Ninguém sabia nada ao certo, mas a aposta era uma só: Steve Jobs, o gênio fundador da Apple, estava criando outra vez um produto fenomenal, que viraria o mercado de cabeça para baixo e seria a salvação dos jornais, financeiramente asfixiados pela avalanche da internet. No dia 18 de janeiro, a Apple mandou um enigmático convite à imprensa, dizendo apenas que anunciaria sua ‘última criação’ no dia 27 de janeiro, em São Francisco.
Os coraçõezinhos dos tecnófilos quase se arrebentavam de expectativa quando, na manhã da quarta-feira passada, Jobs, magérrimo, rescaldo de graves problemas de saúde, mas sorridente e disposto, apareceu no palco do centro de convenções onde habitualmente anuncia seus novos produtos, o Yerba Buena Center. Foi recebido com uma ovação de pé por uma audiência que, diante de outros capitães de indústria, demonstra apenas ceticismo. O grande comunicador não perdeu tempo: ‘Vamos começar 2010 com um produto realmente mágico e revolucionário’. Mais emoção e expectativa solidamente assentadas nos números espantosos de desempenho da Apple. A empresa do logo da maçã mordida já vendeu mais de 220 milhões de iPods, 50 milhões de iPhones e 1 bilhão de programas, os aplicativos, para esses aparelhos transacionados remotamente por sua loja virtual, iTunes – que até o mês passado tinha comercializado 6 bilhões de músicas. Dois dias antes do lançamento do iPad, a empresa divulgou o maior lucro trimestral de sua história: 3,4 bilhões de dólares.
Na imensa tela ao fundo do palco, apareceram a imagem e o nome da nova aposta da Apple, o iPad. Jobs exibiu o aparelho nas suas mãos, para dar noção do tamanho (semelhante ao de uma folha de ofício) e do peso (menos de 700 gramas). O pessoal aplaudiu, alguns assoviaram, outros gritaram – mas, aos poucos, enquanto Jobs pulava de um adjetivo a outro falando do iPad – ‘extraordinário’, ‘fenomenal’, ‘incrível’ -, aconteceu algo até então inédito nessa segunda encarnação de Jobs na Apple (ele foi demitido, mas retomou o poder em 1996). A plateia aos poucos foi perdendo o entusiasmo, chegando a se perceber um clima de decepção – sensação realimentada pelos comentários instantâneos vindos dos blogs especializados. E a rapaziada desceu os tanques com a crueldade característica:
– Não tem tela de Oled? Esquece.
– Sentados ou deitados, usamos laptop ou desktop. Em pé, usamos o smartphone. Não existe uma posição anatômica ideal para usar o iPad.
– Não é nem um laptop simplificado nem um iPhone melhorado.
– Não roda Flash (formato popular de vídeos e animações), não tem câmera, a bateria é embutida… Eu não compro.
– É o iBad (o i-Ruim).
Aos poucos, a apresentação de Jobs começou a lembrar a de um mágico que, para obnubilação geral, já fizera desaparecer um cavalo no palco e agora provocava apenas bocejos entediados ao fazer sumir um elefante.
O produto em si não é novidade. A Hewlett-Packard, a Intel e a Dell já andam exibindo protótipos de tablets na praça. Para quem só quer ler livros digitais, há outras opções no mercado, como o Kindle, da Amazon, já disponível no Brasil. Diante de tudo o que se esperava, e se esperava nada menos que uma revolução, o iPad pareceu quase um blefe.
Como se sabe, não existe uma segunda chance de causar uma bela impressão inicial. Nisso nem Jobs dá jeito. Pouco importa que rumos tome sua carreira comercial daqui para a frente, o iPad será sempre lembrado pela fria recepção da semana passada. Pela genialidade de Jobs e pela história recente de sucessos da Apple, porém, o iPad merece um segundo e mais detido olhar. ‘Ainda tenho dúvidas, sobretudo em relação ao teclado virtual. Não sei se funciona teclar numa tela de vidro. Mas acho que o iPad será um sucesso. Só não acredito que vá se igualar ao fenômeno que foi o iPhone’, diz John Markoff, veterano repórter de tecnologia do New York Times. Pode ser. Mas também pode ser que a maioria dos decepcionados esteja errada, e Steve Jobs, mais uma vez, esteja certo. Porque, quanto mais se examina o iPad, mais encantador ele parece. Ponto por ponto, ele já nasce como o melhor tablet do mercado. Graças a um chip desenvolvido especialmente para suas necessidades pela própria Apple, sua operação é veloz e consome menos bateria. Funcionando a todo o vapor com exibição de filmes em HD, por exemplo, a autonomia do iPad poderia chegar a quase cinco horas. A bateria dura dez horas em uso menos intensivo, segundo a Apple – pois nenhum dos resenhistas tecnológicos recebeu ainda o iPad para testes. A tela sensível, pelo que se viu no Yerba Buena, reage com agilidade bem maior ao toque do que as do próprio iPhone. A vantagem competitiva maior, porém, quando o iPad começar a ser vendido, em março, será o fato de o aparelho rodar os 140 000 programas disponíveis no iTunes para o iPhone.
Não se sabe como Jobs reagiu ao clima de decepção, mas é certo que, pela primeira vez, ele sentiu aquele gostinho amargo que tantas vezes passou pela boca de Bill Gates, o fundador da Microsoft. O pior momento público de Gates ocorreu há doze anos, quando, ao demonstrar uma novidade do sistema operacional Windows98, a tela do computador congelou e uma mensagem de erro apareceu. Para piorar, o evento estava sendo transmitido ao vivo pela CNN. Jobs teve seu momento Gates com o iPad. Ao acessar determinado site, apareceu na tela do iPad um quadradinho azul com um sinal de interrogação no centro. A plateia de especialistas entendeu tudo e riu meio envergonhada. Esse símbolo surge com frequência irritante quando, ao navegar pela internet pelo iPhone, o usuário encontra um vídeo no formato Flash, marca da Adobe universalmente consagrada na Web, mas que a Apple teima em não reconhecer para tentar empurrar goela abaixo dos usuários de Mac e iPhone seu próprio programa de vídeos, o QuickTime. Quando Jobs começa a ficar parecido com Gates, alguém sai perdendo – e esse alguém é o consumidor.
O modelo mais barato do iPad chegará ao mercado americano em março, por 499 dólares, e o mais caro, em abril, ao preço de 829 dólares. No Brasil, os primeiros modelos começam a ser vendidos só no segundo semestre deste ano. A questão central segue em aberto: o iPad salvará jornais e revistas americanos que andam desesperados atrás de um abrigo no mundo digital? O New York Times, com a corda no pescoço, já se associou ao empreendimento e poderá ser lido no iPad assim que o produto chegar às lojas. O Times também anunciou que, no início de 2011, começará a cobrar por seu conteúdo na internet. Pode ser um indicativo de que o iPad virá a oferecer um novo meio de vender notícias, como o iTunes criou um novo modo de vender música.
Steve Jobs é um sobrevivente. Sua mãe biológica o entregou para adoção com a exigência de que os pais adotivos tivessem cursado a universidade. Um advogado e sua mulher se candidataram, mas, na última hora, desistiram. O bebê acabou na casa de um operador de máquinas e sua esposa. O casal não tinha nem o ensino médio. Quando soube, a mãe biológica quis cancelar a adoção, mas os novos pais prometeram que o menino ingressaria na universidade. Ele foi criado no Vale do Silício, que na época era apenas um imenso pomar de damascos e ameixas. Na escola primária, só queria ler livros e caçar borboletas. Era um aluno medíocre e, pior ainda, um projeto de delinquente. Não fosse pelo carinhoso suborno de uma professora – que o comprou com notas de 5 dólares e barras de chocolate -, Jobs diz que teria abandonado a escola. ‘Eu ia acabar na cadeia, com 100% de certeza.’ Em vez disso, chegou à universidade, mas desistiu em seis meses. Ficou pelo câmpus cursando só o que lhe interessava – caligrafia, por exemplo -, dormia no chão do quarto dos colegas, vendia garrafas de plástico de Coca-Cola para comprar comida e, aos domingos, filava o jantar num templo hare krishna. Está bilionário, mas trabalha como um iniciante e deve saber muito bem o que quer com o iPad.
Diz Tim Bajarin, presidente da Creative Strategies e analista de tecnologia: ‘Com o iPad, Jobs reinventou o conceito de portabilidade’. Aqui e ali, depois de murmúrios de decepção, começam a surgir avaliações positivas. Pode ser que esteja acontecendo, mais uma vez, a mágica de Jobs.’
TELEVISÃO
Casos de polícia
‘São 10 horas da noite e os homens da Polícia Militar iniciam mais uma batida de rotina na Cracolândia, área do centro de São Paulo infestada por drogados. Ao ouvirem a sirene dos camburões, dezenas de usuários de crack correm de um lado para outro, como zumbis desgovernados. Rendidos pelos policiais, eles são enfileirados com as mãos na parede. Ao notar a presença de uma adolescente esquálida – e grávida –, o comandante da operação não contém o comentário: ‘Você aqui de novo, minha filha? Que vida é essa?’. Ele então acaba se rendendo a uma reflexão, digamos, existencial: ‘Em todo lugar, a gente vê cachorros acompanhando os mendigos. Mas aqui não. Nem os cachorros aguentam esse pessoal’. A situação mostrada no programa Operação de Risco, que tem estreia prevista para a noite desta segunda-feira na RedeTV!, resume aquilo que está na essência do trabalho da polícia: o fardo incontornável de lidar o tempo todo com a escória (às vezes, até a engravatada) e a miséria humana. E ilustra também quanto o cumprimento dessa tarefa pode ter de frustrante – pois, como se diz no jargão policial, coibir o consumo de drogas num lugar como a Cracolândia equivale a ‘enxugar gelo’. A peça central do reality show é esse dia a dia da atividade. Ao longo de 2008, seus produtores registraram as ações de diversos setores da polícia paulista, como o combate à pirataria, a investigação de homicídios e a logística para garantir a ordem em grandes eventos (veja o quadro abaixo). O cenário é São Paulo – um estado em que o índice de homicídios (10,85 ocorrências por 100 000 habitantes) atualmente é metade da média nacional. Mas, apesar das diferenças em relação à realidade de outras regiões, o flagrante dos tiras no calor das diligências traz lições que são válidas para o Brasil inteiro.
Operação de Risco não é o primeiro reality show que se propõe a retratar sem meios-tons um universo profissional na fronteira entre a vida e a morte. O E24, da Bandeirantes, explora o cotidiano dos prontos-socorros. Ao permitir que suas ações fossem transformadas em atração de TV, a polícia paulista foi movida pelo mesmo estímulo que levou os hospitais a se abrirem às câmeras: a expectativa de que isso traga benefícios à imagem da instituição e incremente a autoestima dos policiais. Recentemente, um levantamento CNT/Sensus – feito com exclusividade para VEJA – demonstrou que 62% dos policiais de cinco capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Brasília) acreditam que a população não confia em seu trabalho. Numa cidade como o Rio, em que problemas como o despreparo e a corrupção há décadas vêm dilapidando a moral da corporação, esse índice chega a 71%. Um precedente internacional sugere que programas na linha de Operação de Risco podem, sim, colaborar para uma melhoria, ainda que limitada, desse quadro. No ar há mais de vinte anos pela rede Fox, o pioneiro Cops teve tamanho impacto junto aos espectadores dos Estados Unidos que se tornou objeto de teses acadêmicas. De acordo com um estudo da Universidade de Delaware, contribuiu ainda para a diminuição da sensação de insegurança da população em certas regiões daquele país. Na sua esteira, acabou surgindo um filão de TV devotado à realidade da polícia.
O atrativo de tais programas não está somente na ação ou na adrenalina. Eles levam o espectador a se sentir menos desamparado diante da violência das metrópoles. ‘É um modo de as pessoas perceberem que a polícia existe e está fazendo seu papel, ainda que de maneira silenciosa’, diz o ex-coronel da PM paulista José Vicente da Silva Filho, especialista em segurança pública. Operação de Risco traz bons exemplos desse arroz com feijão. No primeiro episódio, a Polícia Rodoviária persegue o carro de três bandidos que tinham acabado de assaltar uma residência no interior paulista. Consegue prender um deles e recuperar os objetos roubados. Noutra ação, em que policiais civis buscam por drogas numa favela, tem-se uma ideia da complexidade da luta contra esse tipo de crime. Todos os ‘aviões’ usados pelo tráfico são crianças. O que significa que não podem ir para a cadeia ou ser processados e acabam reincidindo (um menino de 12 anos é pego em flagrante – pela quinta vez).
Um olhar cético poderia concluir que ações como essa ou a já citada batida na Cracolândia não passam de exibições de força inúteis. Mas a experiência de cidades como Nova York, que fez progressos invejáveis no combate à criminalidade nas últimas duas décadas, prova que ‘enxugar gelo’ é uma lição de casa essencial para que se alcance o sucesso. Pequenas (mas continuadas) apreensões de drogas e mercadorias pirateadas vão minando os lucros e a logística do crime. E as batidas recorrentes reduzem as oportunidades de negócios escusos, ao tumultuar seu território de ação. ‘Em todos os lugares do mundo em que se venceu o crime, isso passou por prestigiar o trabalho dos policiais anônimos que fazem parte dessa rede de coerção’, diz o ex-coronel Silva Filho.
Se Operação de Risco traz a comprovação positiva de que a polícia vem cumprindo esse dever, por outro lado também atesta deficiências – como certo desleixo na preservação das cenas dos crimes. Há, para ser justo, episódios do reality show em que o trabalho de perícia é realizado de forma exemplar. Na investigação do assassinato de um policial militar fora de serviço num subúrbio paulistano, o departamento de homicídios da Polícia Civil isolou rapidamente o carro em que ele foi executado com dois tiros na nuca. Após se analisarem impressões digitais e objetos, chegou-se ao suspeito do crime. Em outro programa, coube aos peritos do Instituto de Criminalística averiguar se um jovem encontrado morto num hotel cometeu suicídio ou foi assassinado (exames de balística comprovaram que ele próprio deu um tiro no peito). Mas esse cuidado ainda não se incorporou à rotina de todos os profissionais. Em pelo menos dois episódios, policiais civis e militares aparecem manipulando armas de crimes antes de elas passarem pela perícia – o que chamou a atenção de um especialista que assistiu aos programas a convite de VEJA.
Para captar imagens da polícia agindo de forma tão espontânea, a equipe da Medialand, produtora independente que realizou o programa para a RedeTV!, imergiu nesse universo. Cada operação foi acompanhada por no mínimo três e às vezes até seis câmeras. Todos eles passaram por treinamento nas academias das polícias Civil e Militar e tiveram de utilizar coletes à prova de bala durante as gravações. Em momentos críticos, as imagens eram feitas por meio de microcâmeras embutidas no cinto dos policiais. ‘Se um lance importante fosse perdido, não dava simplesmente para parar tudo e pedir para repetir a cena’, diz Mônica Pimentel, diretora artística da RedeTV!. Operação de Risco tem alguns problemas de ritmo e edição. Há reiterações excessivas de cenas e lacunas de informação que podem dificultar a compreensão das pessoas que não são de São Paulo. Mas, para além de oferecer uma visão inédita do dia a dia da polícia, o programa não incorre num vício arraigado do cinema e da literatura esquerdoides – o de demonizar a polícia e colocar os bandidos como vítimas da ‘sociedade injusta’. Ao condensar 2 000 horas de gravação bruta em vinte episódios com pouco menos de meia hora, o roteirista Beto Ribeiro teve o mérito de definir bem os papéis: nessa guerra, os bandidos são os vilões e os policiais, definitivamente, os heróis.’
LITERATURA
Formador de leitores
‘Jerome David Salinger foi um exímio contista, capaz de profunda observação social em poucos traços. Também tinha um ouvido afinado para os ritmos da fala cotidiana – seus personagens se expressam com um coloquialismo que poucos estilistas alcançam. Todas essas são qualidades de um bom escritor. Mas Salinger foi além. Ele pertence ao restrito grupo de autores cuja assinatura se imprime não só no campo literário, mas na cultura de seu tempo. Esse feito não se deve a seu estilo ou a uma obra em particular. A grande realização de Salinger foi a criação de um personagem: o adolescente Holden Caulfield, desajustado protagonista e narrador de O Apanhador no Campo de Centeio, lançado em 1951. Inquieto, desconfiado da autoridade adulta mas igualmente deslocado entre os colegas de sua idade, Caulfield deixa a escola de elite de onde foi expulso por causa das notas muito ruins para fazer uma peregrinação incerta e perigosa por Nova York. Errante, sem lugar no mundo, ele representava as angústias difusas dos jovens no pós-guerra. E segue encontrando leitores entre os adolescentes até hoje. Sua inquietude e sua revolta sem objeto anteciparam a cultura jovem contestadora das décadas seguintes. De J.D. Salinger, o criador de Caulfield, pode-se dizer, sem medo do exagero ou do clichê, que deu voz à sua geração – e depois escolheu se calar: por mais de quarenta anos, viveu recluso, sem publicar novos livros, em Cornish, cidade do estado de New Hampshire. Foi lá que ele morreu, na quinta-feira 28, aos 91 anos.
Uma nota da agência literária de Salinger, Harold Ober Associates, informou que o escritor morreu de causas naturais, e que, afora uma fratura na bacia no ano passado, esteve sempre com boa saúde até um súbito declínio nas últimas semanas. O isolamento de Salinger, parte indissociável de sua mística, teve início em 1953, quando o escritor, até então vivendo em Nova York, sua cidade natal, se mudou para Cornish. Depois de O Apanhador…, publicou só mais três livros – Nove Estórias (1953); Franny & Zooey (1961); e Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira e Seymour: uma Apresentação (1963). Uma das poucas declarações – se não a única – que fez à imprensa foi para justificar seu esforço para impedir a publicação de uma coletânea de contos não autorizada, em 1974. ‘Há uma paz maravilhosa em não publicar. A publicação é uma terrível invasão da minha privacidade’, disse a um repórter.
Naturalmente, esse isolamento radical fez crescer a curiosidade em torno do autor. Por muito tempo, jornais e revistas mandavam fotógrafos a Cornish, na esperança de conseguir um novo flagrante do escritor famoso – que, para se resguardar, erguera muros altos ao redor de sua propriedade. Os piores ataques à privacidade de Salinger vi-riam de pessoas próximas: uma antiga amante, Joyce May-nard, e sua filha, Margaret, escreveram livros para revelar supostas esquisitices do autor. Falavam de dietas estranhas, de uma obsessão por tratamentos de saúde ho-meopáticos e de uma confusa devoção às mais variadas religiões, da cientologia ao zen-budismo.
A inegável excentricidade de Salinger não deve obscurecer o fato fundamental: ele foi um grande escritor, reconhecido como influência fundamental por sucessores como John Updike e Philip Roth. No Brasil, Salinger foi publicado nos anos 60 pela Editora do Autor, dos escritores Rubem Braga e Fernando Sabino – ainda hoje mantida por um terceiro sócio, o advogado Walter Acosta, a Editora do Autor já está na 16ª edição de O Apanhador no Campo de Centeio. ‘Esse é um livro para formar leitores. Antes dele, não havia literatura adolescente com aquela qualidade. A gente tinha de sair de Monteiro Lobato direto para Dostoievski’, avalia o escritor Cristovão Tezza, de 57 anos. Outros símbolos da rebeldia juvenil hoje parecem datados e até um tanto ridículos (veja-se, por exemplo, o personagem de James Dean no filme Juventude Transviada, de 1955). Confuso, errante, irresponsável, Holden Caulfield ainda se mantém como uma incógnita – o que exatamente ele quer? Como pode ser tão privilegiado e tão infeliz? Só os leitores adolescentes às vezes têm a ilusão de entendê-lo.’
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