Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

José Queirós

‘A 9 de Dezembro passado, o Governo aprovou a oficialização de dois instrumentos que considerou necessários para a aplicação do novo Acordo Ortográfico. A escolha recaiu sobre um vocabulário ortográfico e um conversor automático de textos para as novas regras (denominado Lince) desenvolvidos pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), uma unidade de investigação de que são associadas a Fundação para a Ciência e Tecnologia e duas universidades. À contestação conhecida ao próprio acordo — que o PÚBLICO, como se sabe, não adoptou — vieram somar-se, na sequência dessa decisão, críticas ao conversor escolhido, formuladas por pelo menos uma das empresas privadas (a Priberam) que tinham entretanto lançado no mercado as suas próprias ferramentas informáticas de conversão ortográfica.

Dessas críticas deu conta o PÚBLICO a 15 de Dezembro, numa peça em que um administrador da Priberam questionava em que tipo de avaliação se fundamentara a opção do Governo e criticava a decisão tomada, afirmando nomeadamente que o Lince fazia substituições ortográficas com erros, que o vocabulário em que se apoiava continha palavras mal grafadas e que o próprio conversor fora o menos bem classificado num estudo académico comparativo entretanto divulgado. Sendo o Lince um programa informático descarregável sem custos — o que teria pesado na sua escolha —, acrescentava que duas empresas (uma das quais a sua) disponibilizavam também conversores gratuitos na Internet.

O ILTEC, alvo das acusações referidas, não foi ouvido para a elaboração da peça. A autora, a jornalista Maria Lopes, afirmava no próprio texto que ‘tal não foi possível até ao fecho desta edição’. Sucede que, pouco depois das 22h00 do dia 14, José Pedro Ferreira, um investigador daquele instituto, que recebera uma mensagem de correio electrónico enviada pela jornalista às 19h36, entrara em contacto com o jornal para prestar os esclarecimentos solicitados, mas foi-lhe dito que a notícia já estaria ‘fechada’, pelo que as suas explicações só poderiam ser utilizadas na edição seguinte. Mais tarde, pelas 01h30 do dia 15, o mesmo investigador enviou à jornalista uma longa mensagem em que desmentia, citando fontes verificáveis, as acusações feitas ao conversor e ao vocabulário do ILTEC. Além de negar os alegados erros, explicava que o Lince não fora sequer avaliado no estudo académico referido pela Priberam, e afirmava que as ferramentas gratuitas disponibilizadas na rede por algumas empresas ‘têm funcionalidades muito reduzidas’ e ‘servem, sobretudo, como plataforma de lançamento para os produtos pagos’ que comercializam.

Na edição de 16, o jornal publicava uma nova notícia, recordando as acusações do gestor da Priberam e citando algumas frases em que José Pedro Ferreira as contestava. O responsável do ILTEC considerou que este segundo texto mantinha ‘falsidades, confusões e imprecisões’ e, no dia 17, enviou ao PÚBLICO, em conjunto com a sua colega Margarita Correia, uma carta ao abrigo do direito de resposta, queixando-se de que a notícia inicial fora redigida sem ‘exercício do contraditório’ e de que a segunda não corrigira devidamente os erros que alegava existirem na primeira. Afirmava, ainda, que a autora dos textos ‘não honrou o compromisso’ de voltar a ouvi-lo antes da publicação da segunda peça — um compromisso que a jornalista nega, pois teria combinado só fazer esse contacto ‘caso tivesse dúvidas’. Que não teve.

A carta dos investigadores foi publicada a 23 de Dezembro, acompanhada de uma Nota da Direcção que se limitava a referir que a resposta do ILTEC, a 14, chegara quando ‘o primeiro texto já estava na gráfica’, e que a jornalista respeitara o compromisso de escrever ‘novo artigo sobre o assunto’ com a versão de José Pedro Ferreira. Considerando-se ‘lesados’ no seu ‘bom nome’ e sem a reparação devida, os responsáveis pelo Lince dirigiram-me uma extensa reclamação no passado dia 13, pondo em causa o comportamento profissional e ético do PÚBLICO neste caso. Dela dei conhecimento a Maria Lopes, que anteontem me fez chegar um igualmente longo texto de resposta, em que refuta vários argumentos dos investigadores do ILTEC e dá uma versão diferente sobre comunicações tentadas e compromissos assumidos.

É impossível citar e analisar detalhadamente neste espaço todos os argumentos e explicações de ambas as partes. Mas, por achar que se trata de um caso exemplar de como procedimentos profissionais menos recomendáveis podem fragilizar a confiança que o jornal deve merecer aos leitores, convido os possíveis interessados a consultarem esses textos no meu blogue (http://blogs.publico.pt/provedor) e formarem a sua própria opinião. E passo directamente às conclusões. Lidas as notícias em causa e toda a documentação referida, creio que o PÚBLICO falhou no ponto essencial: a procura desinteressada e leal da verdade.

Em primeiro lugar, a peça inicial sobre o Lince reporta-se a um conflito de interesses em que só é ouvida uma parte. Várias acusações que ‘justificam’ a notícia não foram verificadas, e não existiu contraditório. A ‘página fechada’ não é argumento aceitável, para mais quando os alvos de uma acusação são ouvidos tardiamente e, ainda assim, manifestam a sua disponibilidade para prestar, antes da publicação da notícia, esclarecimentos que deveriam obrigar à sua alteração. Quando está em causa a procura empenhada da verdade, uma página pode ser reformulada. E, mesmo concedendo a dificuldade técnica de o fazer em certas situações, cabe perguntar por que motivo se considerou necessário avançar naquela edição com uma notícia que seria sempre incompleta, em vez de se esperar pelo dia seguinte para confrontar a outra parte. Já aqui escrevi uma vez que as horas de fecho têm por vezes as costas muito largas. E insisto em que a rapidez na informação, quando dispensa as boas práticas, não passa de precipitação e conduz facilmente ao erro.

Em segundo lugar, a peça ‘corrigida’ é de facto insatisfatória. O papel de um jornalista não é o de se limitar a divulgar versões contraditórias, acusações e desmentidos sobre uma qualquer controvérsia de interesse público. O seu dever é procurar a verdade. Neste caso tratava-se de investigar e verificar factos, e a tarefa nem sequer apresentaria especiais dificuldades. Nada indica que esse esforço tenha sido feito. Quem tenha conhecido a polémica em torno do Lince apenas pelas notícias do PÚBLICO não pode considerar-se bem informado. E isso deveria ser sempre o mais importante.

Onze títulos, quatro erros

Duas das dezoito páginas da ampla cobertura que o PÚBLICO dedicou na passada segunda-feira aos resultados das eleições presidenciais e à sua análise eram ocupadas pelos habituais gráficos com as percentagens de votos obtidas pelos candidatos em cada um dos concelhos do país. É um serviço público de interesse indiscutível, e que os responsáveis editoriais decidiram valorizar apresentando, ao lado das tabelas com os resultados, uma coluna intitulada ‘Um olhar sobre os números’, em que eram destacados, em breves notas, onze factos considerados especialmente significativos ou curiosos sobre a distribuição territorial dos votos.

‘Boa opção editorial, pois permite chamar a atenção para algumas situações que o jornal entende que merecem destaque e que ao leitor poderiam passar despercebidas’, aplaude o leitor Carlos Queirós, do Porto. Mas o aplauso acaba aí: ‘O problema é que, em onze notas, quatro não condizem com os dados disponíveis nas tabelas publicadas mesmo ao lado’. E enumera os erros: ‘Beja [distrito] foi o melhor score de Alegre’ (segundo as tabelas, foi Portalegre); ‘Alegre só conseguiu ficar em primeiro em dois concelhos: Alandroal (Évora) e Castro Verde (Beja)’ (afinal também ganhou em Campo Maior, Portalegre); ‘Lopes ganha em oito concelhos’ (as tabelas mostram que venceu em dez); ‘Coelho consegue mais de 38 por cento na Madeira’ (nos quadros lê-se que teve 39,01 e, ‘se é verdade que 39,01 é mais de 38’, teria sido mais adequado escrever que obtivera ‘mais de 39’).

Dois destes quatro erros foram posteriormente corrigidos, na secção ‘O PÚBLICO errou’ da edição seguinte. Os outros não terão sido detectados. Embora o próprio leitor reconheça que serão ‘ainda mais complexos do que o habitual os problemas de fecho de um jornal num dia de eleições’, a verdade é que os resultados finais do escrutínio foram conhecidos cedo, e a opção de destacar e analisar alguns dados numéricos obrigava a maior rigor na transcrição e revisão dos elementos constantes das tabelas.

Foram demasiadas informações erradas em títulos, mostrando falta de cuidado. Quatro olhos em vez de dois, ou uma segunda consulta aos quadros de resultados, seriam certamente aconselháveis nestas situações. E evitariam que se questionasse, como questionou este leitor: ‘Se o olhar do jornalista conduz a quatro conclusões erradas em onze casos que seleccionou, não seria mais vantajoso deixar o leitor olhar sozinho para os números e tirar ele próprio as suas conclusões, sem ser induzido em erro?’.’